A estreia da série “The Last of Us”, baseada no jogo do mesmo nome, onde um fungo provoca uma pandemia que transforma as pessoas em zumbis e altera seu comportamento, trouxe para o imaginário popular a questão: isso poderia acontecer de verdade? Convenhamos que para quem acabou de passar por uma pandemia onde o discurso político negacionista transformou parte significativa da população em zumbis verde-amarelos, a perspectiva de uma nova pandemia onde o próprio microrganismo devore o cérebro das vítimas é bastante assustadora.
A série começa com um programa de entrevistas dos anos 1960, onde um cientista defende que vírus e bactérias não são tão preocupantes para o futuro da Humanidade, deveríamos mesmo é temer os fungos, pois alguns são capazes de controlar o comportamento de insetos, e com o aquecimento global, eles “facilmente” poderiam se adaptar a uma temperatura mais próxima do corpo humano, e nos infectar. E então estaríamos perdidos, pois não há como desenvolver medicamentos ou vacinas para fungos.
O que tem de fato por trás dessa ficção? Realmente há fungos que infectam e alteram comportamento de insetos. Foi em um destes, o Ophiocordyceps unilateralis, que inspirou o criador de “Last of Us” (o jogo). Conhecido popularmente como Cordyceps, o fungo produz esporos – isto é, as células reprodutivas – que infectam formigas e começam a se desenvolver na hemolinfa, o sangue dos insetos. Após alguns dias, as formigas começam a exibir mudanças de comportamento.
Estudo publicado pelo grupo do professor David Hughes, que atuou como consultor para o jogo e para outros filmes de zumbi, explica bem este processo: as formigas infectadas afastam-se do formigueiro, apresentam espasmos musculares e sobem em folhas ou galhos a aproximadamente 25 cm do chão, onde fincam suas mandíbulas e permanecem ali, enquanto o fungo as devora por dentro, e forma filamentos que vão produzir mais esporos. Com a formiga “possuída” pendurada por cima do caminho onde os insetos saudáveis passam, a probabilidade de novos esporos caírem em cima de mais formigas é grande.
Esta estratégia altamente especializada é fruto de uma coevolução entre parasita e inseto que ocorreu ao longo de milhares de anos antes de atingir tamanho sucesso – para o fungo, claro, porque ficar pendurada com a mandíbula travada em uma folha enquanto outro bicho controla seus músculos não me parece muito bom para a formiga. A seleção natural aqui garantiu a maior chance de reprodução para o fungo. Por exemplo, o fato de as formigas infectadas saírem do formigueiro para se pendurar em local próximo é essencial. Se mostrassem sintomas da doença ainda dentro dos formigueiros, elas provavelmente seriam descartadas pela colônia. Além disso, o ambiente ideal para o crescimento do fungo é mais frio e úmido do que o interior do formigueiro. Por fim, manter a vítima pendurada na folha garante ao fungo que seus esporos cairão nas formigas que estão passando, infectando assim um maior número de novos hospedeiros. Se a formiga morresse no chão, as chances de os esporos disseminarem-se seria muito menor.
Ainda não está totalmente claro como o fungo faz para assumir o controle do corpo do hospedeiro, mas ao contrário da ficção, o parasita não invade o cérebro. O mais provável, de acordo com estudos recentes, é que alguma substância interfira na contração muscular. O grupo do professor Hughes detectou produção aumentada de toxinas e uma maior ativação de genes relacionados à produção de alcaloides ergotamínicos, que são compostos produzidos por fungos que podem mudar comportamento, causar convulsões e alucinações. Fungos são produtores de compostos como psilocibina, e de precursores do LSD, ambos potentes psicodélicos.
Casos históricos de ergotismo, ou Fogo de Santo Antônio, causado pela ingestão de centeio contaminado com fungos são bem documentados, com sintomas de epilepsia, convulsões, alucinações e gangrena. Os alcaloides ergotamínicos são estruturalmente semelhantes a neurotransmissores como serotonina. Também causam redução do fluxo sanguíneo, e por vezes, necrose de tecidos, principalmente nas extremidades. Podem também estimular o sistema nervoso central, desencadeando uma série de alterações do estado mental, que vão desde alucinações até depressão.
Diversas “epidemias” de ergostimo estão descritas na literatura. As mais recentes são de 1928, na Inglaterra, e depois em 1951, na França, ambas causadas por pão de centeio contaminado com o fungo Claviceps purpurea. Os efeitos observados foram estado de delírio, pensamentos suicidas, e sensação de muita dor e queimadura, gangrena e perda dos membros.
Fungos zumbis que atacam cigarras da espécie Massospora cicadina valem-se de um composto alucinógeno que faz com que os insetos saiam voando loucamente, liberando esporos por aí. E isso, só depois de o fungo literalmente comer os genitais e o traseiro da cigarra! Os machos geralmente cantam para atrair as fêmeas. Os machos infectados, mesmo depois de perder os genitais, continuam a fazer música e, se conseguem atrair uma fêmea, transmitem o fungo. O comportamento do macho também fica alterado: ele bate as asas de um modo que imita as fêmeas, atraindo assim outros machos incautos que também acabam se infectando. O fungo é tão bem-sucedido que consegue espalhar seus esporos não só aproveitando o voo das cigarras, mas também sua atividade sexual.
Seria possível, então, um fungo zumbi que infectasse humanos? Graças talvez às mudanças climáticas, como sugere o cientista na série?
É pouco provável. Esses parasitas são altamente especializados, ou seja, uma espécie de parasita infecta apenas uma espécie de hospedeiro. Fungos que infectam certas formigas não são os mesmos que infectam lagartas, ou cigarras. Não são nem os mesmos que infectam outras espécies de formigas. Lembre-se de que o parasita precisa de milhares ou milhões de anos de coevolução para conseguir dominar o hospedeiro.
Além disso, o aquecimento do planeta parece ser bem desfavorável para o parasita.
O Cordyceps de formiga não é o único fungo deste tipo. Existem centenas de espécies de Cordyceps que infectam diferentes insetos, e mais de 30 que provocam mudanças de comportamento. Um tipo bastante conhecido, que se tornou popular por motivos bem diferentes, é o Ophiocordyceps sinensis, chamado “viagra do Himalaia”. Este fungo, que parasita lagartas, é usado em medicina tradicional chinesa como um afrodisíaco e remédio para impotência sexual, mas também supostamente para curar câncer e diabetes. Também encontrado em lojas de suplementos naturais como energético (sua eficácia para qualquer coisa, além de parasitar lagartas, nunca foi confirmada pela ciência). Como movimenta um mercado milionário, chega a custar US$ 125 o grama. A demanda e o aquecimento global, no entanto, colocaram o fungo na lista de espécies ameaçadas. O parasita cresce em temperaturas baixas, e com a mudança climática e a exploração predatória, seus números caíram muito.
A série acertou ao atribuir a origem da pandemia a grãos contaminados com o fungo. Mas alterou o modo de transmissão dos esporos, que na natureza é por dispersão, para mordidas e comportamento agressivo dos zumbis humanos. Os insetos infectados pelos fungos não apresentam comportamento agressivo, e a única coisa semelhante a uma mordida é a trava mandibular da formiga que fica presa na folha. Mas os esporos são dispersados pelo ar e caem no solo. Neste sentido, a infecção da série parece mais com o vírus da raiva do que com os fungos zumbis. Os criadores da série justificaram esta mudança (no jogo, os esporos são dispersos pelo ar mesmo) para evitar que os atores tivessem que usar máscaras o tempo todo.
Outra previsão apocalíptica do epidemiologista na série é que certamente perderíamos uma guerra contra fungos, porque seria “impossível” desenvolver uma cura. É verdade que nossas células são muito mais parecidas com as de um fungo do que com uma bactéria, o que dificulta desenvolver um medicamento que mate o fungo mas preserve as células humanas. Existem poucos antifúngicos no mercado. Mas certamente não é impossível dados os incentivos corretos – como uma emergência sanitária global – encontrar ou inventar mais. E a solução talvez venha de outro fungo.
Pesquisadores que trabalham com o fungo zumbi de formigas descobriram recentemente duas espécies de fungo que infectam o fungo zumbi. O mecanismo ainda não está bem elucidado, mas os pesquisadores relatam que o Cordyceps é consumido pelos fungos parasitas, e que em alguns casos, o novo fungo “castra” o Cordyceps, deixando-o incapaz de se reproduzir, e depois o devora. Fungos e bactérias competem por espaço e nutrientes, e não é raro produzirem compostos que matam os concorrentes. Foi assim que descobrimos grande parte dos antibióticos, produzidos por bactérias.
Enquanto a pandemia de zumbis fica só na ficção, o aquecimento global pode sim tornar o mundo mais propício para doenças emergentes, não causadas por fungos altamente especializados, mas muito mais provavelmente por vírus transmitidos por mosquitos que podem se tornar endêmicos em regiões que antes eram muito frias, ou simplesmente por facilitar o encontro entre espécies que podem trocar microrganismos.
As regiões do mundo onde mosquitos podem existir confortavelmente estão em expansão, com várias possibilidades para que insetos transmissores de doenças como dengue, zika, febre amarela, chicungunha e malária tornem-se endêmicos em novos locais. O aquecimento global também reduz o habitat de espécies acostumadas a climas mais amenos, que tendem a migrar para regiões mais favoráveis. O encontro de várias espécies que antes eram separadas geograficamente pode favorecer a passagem de vírus e bactérias – e fungos – de uma espécie para outra, aumentado a quantidade de hospedeiros possíveis.
Criação animal confinada facilita a transmissão de doenças, e o contato com humanos facilita o “pulo” dos microrganismos para que se adaptem a nós. Assim foi com a gripe aviária e a gripe suína. Os mercados ilegais de animais silvestres também nos colocam em contato com espécimes que podem ser reservatórios de microrganismos, e que dificilmente encontraríamos na natureza.
O apocalipse, se vier de uma pandemia incontrolável e muito mais agressiva do que foi a COVID-19, tem muito mais chance de resultar deste conjunto de atitudes irresponsáveis do ser humano do que de um zumbi que explora formigas.
Natalia Pasternak é microbiologista, presidente do Instituto Questão de Ciência, professora adjunta em Columbia University, professora convidada da FGV-SP. É membro do Committee for Skeptical Inquiry (CSI), colunista do jornal O Globo e coautora de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, e “Contra a Realidade” (Papirus 7 Mares)