Cada um de nós, seres humanos, tem alguns trilhões de células diferentes, e dentro de cada uma destas células há várias organelas, regiões dentro da célula com aparência e função específica. Dentre estas organelas, as mitocôndrias se destacam por vários motivos: são numerosas e ocupam um espaço significativo da célula (cerca de 20-25%% na maioria dos tipos celulares). Vêm em diversos formatos, variando de fios alongados a pequenos grânulos (de onde deriva seu nome: a palavra grega “mitos” significa fio e “khondrion” é o diminutivo de “khondros”, que significa “grânulo”; a imagem acima mostra um par de mitocôndrias do tecido pulmonar de um mamífero). São a única parte de nossas células, fora o núcleo, com DNA próprio que, no caso da mitocôndria, vem das nossas mães. Podem controlar a vida e a morte celular programada, um processo chamado apoptose.
A função mais reconhecida das mitocôndrias é ser o centro do metabolismo energético, agindo como se fossem baterias das nossas células. Lá transformamos as moléculas que comemos (carboidratos, lipídios e proteínas) em gás carbônico e água, ao mesmo tempo que usamos a energia dessas reações para sintetizar a moeda energética principal das células, a molécula de ATP (adenosina trifosfato). ATP é usada para todo trabalho que nossas células fazem: pensar, contrair músculos, sintetizar moléculas, manter sais e água na célula nas concentrações corretas, etc. Para isso, cada molécula de ATP é quebrada e reconstruída constantemente, fornecendo energia cada vez que se quebra, e formando-se novamente nas mitocôndrias. Estas organelas supertrabalhadoras sintetizam mais de 50 kg de ATP todos os dias em cada um de nós, processo que consome mais de 500 litros do oxigênio que inspiramos diariamente, e que resulta na formação de cerca de um quilo de gás carbônico, que eliminamos na expiração todo dia.
Dado seu nome simpático e memorável, além das funções que envolvem fornecer energia e coordenar grande parte do metabolismo, com palavras-chave que sempre atraem a atenção do público (“energia” e “metabolismo”), não é surpresa que as mitocôndrias chamem a atenção de pseudocientistas tentando vender terapias ou dietas para, supostamente, otimizar as mitocôndrias. Esta revista já descreveu anteriormente uma suposta “dieta das mitocôndrias”, desmascarando-a como anticientífica.
O mais novo modismo pseudocientífico mitocondrial é, aparentemente, a “terapia endovenosa para estresse mitocondrial”. Trata-se de uma conjunção de palavras com muito apelo para os desavisados e desentendidos. “Terapia” é sempre algo que procuramos – queremos tratar nossos problemas e resolvê-los. “Endovenosa”, que se refere à administração na veia, tem dois aspectos apelativos: o primeiro é que não é algo que dá para fazer em casa, e requer serviço especializado, sendo, portanto, algo pelo qual se pode cobrar mais caro, o que interessa aos profissionais envolvidos. O segundo é que, justamente por envolver colocar algo diretamente nas veias, parece mais sério e científico. Na verdade, o fato de ser endovenoso me preocupa mais ainda do que outros modismos pseudocientíficos, pois traz mais riscos de infeção, superdosagem, resposta alérgica e várias outras complicações.
“Estresse mitocondrial” também parece para os desavisados algo científico e importante. De fato, existe um processo biológico chamado estresse do retículo endoplasmático, que diz respeito a outra organela intracelular com ligações físicas e funcionais com a mitocôndria. Também existe o termo “estresse oxidativo mitocondrial” em trabalhos científicos, embora esteja caindo em desuso, substituído por descrições mais precisas. Por fim, existe um teste de estresse mitocondrial, que nada tem a ver com mitocôndrias cansadas: é o nome abreviado de um experimento complexo de laboratório de pesquisa para avaliar aspectos relacionados à síntese de ATP em células cultivadas, buscando entender melhor essas organelas e sua relação com a célula. Está longe de ser um exame médico, e certamente não é um “tratamento”.
Fica claro que os termos no nome do suposto tratamento não têm nenhum significado científico particular, mas também podem facilmente confundir alguém que não conhece a área e tentar fazer uma busca pessoal a respeito, pois algumas destas palavras e expressões estão ligadas a estudos científicos reais. É isso que a pseudociência faz: se disfarça de ciência para trazer apelo e enganar os desavisados.
O fato é que a “terapia endovenosa para estresse mitocondrial” é indubitavelmente uma pseudociência. A maioria das terapias questionáveis tem um ou outro artigo científico de qualidade duvidosa sugerindo que funcionam. Há boa e má ciência, infelizmente. Mas ao fazer buscas nas bases de dados para publicações científicas Scopus e Pubmed, onde são listados todos os artigos sobre terapias avaliados por pares e publicados em revistas científicas reconhecidas, descobri que há exatamente zero publicações sobre o tal procedimento. Esta pseudociência verdadeiramente não existe! Tem médico por aí cobrando para aplicar na veia um soro com conteúdo desconhecido, sem nenhuma fundamentação científica, algo que deveria chamar a atenção de órgãos como o Conselho Federal de Medicina (CFM). Infelizmente, porém, o CFM não possui um histórico estelar em seus posicionamentos científicos ou éticos.
Mas então o que podemos fazer se nos sentimos cansados, sem energia? De modo geral, a grande maioria das pessoas não tem deficiências na formação de ATP mitocondrial, que é regulada, muito corretamente, por mecanismos biológicos complexos que nossos corpos desenvolveram durante bilhões de anos de evolução. Há algumas exceções bem particulares, como doenças genéticas em que componentes mitocondriais específicos não funcionam bem (cada uma com suas características e tratamentos) e deficiências de vitaminas e minerais importantes para as mitocôndrias funcionarem. Um exemplo é a anemia por falta de ferro. Este mineral é importante para a função das mitocôndrias, e sua falta na dieta, ou perda por sangramento excessivo, pode comprometer o funcionamento da organela. Mas não adianta uma pessoa normal tomar ferro só para se garantir na sua função mitocondrial – como quase toda vitamina ou mineral, o excesso de ferro também é ruim, e pode aumentar a produção de radicais livres lesivos, piorando a função mitocondrial.
Na verdade, fornecemos mais energia para nossas mitocôndrias toda vez que comemos, pois é a partir dos nossos alimentos que vêm as moléculas que elas degradam para gerar ATP. Aí também, o excesso tem efeito claro: sabemos que se comemos demais, engordamos. Isso acontece porque as mitocôndrias são reguladas para produzir ATP nos níveis necessários. Quando há ATP suficiente, elas produzem os precursores das moléculas de gordura, que servem como uma maneira de armazenar energia para usar mais tarde. Sendo assim, é cientificamente impossível que um suposto soro para melhorar suas mitocôndrias ao mesmo tempo forneça energia para elas e promova emagrecimento, como propagandeado por pseudocientistas.
A sensação que muitos de nós temos, de cansaço e falta de energia, na realidade pouco tem a ver com a energia química da ATP nas nossas mitocôndrias, sendo um efeito cognitivo. Vivemos tempos difíceis, em que as pessoas estão constantemente bombardeadas de informações em excesso, muitas vezes antagônicas, confusas, ou simplesmente erradas, vindas de várias mídias sociais. Nossos cérebros estão sobrecarregados de informação, o que gera a sensação de estresse. O tratamento para isso é se desligar das fontes de informações sem curadoria, como as mídias sociais, e se informar através de fontes de qualidade, como jornais, revistas e livros de boa procedência. Usar menos as redes sociais comprovadamente traz bem-estar, e não custa nada. Além disso, nós que buscamos combater as pseudociências agradecemos aos que o fazem, pois isso evita que se espalhem absurdos como essa tal “terapia endovenosa para estresse mitocondrial”.
Alicia Kowaltowski é professora de Bioquímica do Instituto de Química da Universidade de São Paulo