Desentendendo a física quântica

Artigo
7 nov 2022
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gato na caixa

 

A mecânica quântica, popularmente chamada de física quântica, teve origem no final do século 19 e é bem provável que nenhuma teoria tenha sido tão testada por físicos do mundo todo, nos mais diversos ambientes e em diferentes situações experimentais. Apesar dessa confrontação diuturna – qualquer hipótese deve mesmo ser testada ad nauseam –, a mecânica quântica nunca falhou.

Ao mesmo tempo em que a mecânica quântica se mostra intrinsicamente fascinante para os cientistas e funciona como ferramenta imprescindível para compreender o Universo, suas peculiaridades têm atraído a atenção da população, principalmente por usos inapropriados, aplicados ao dia a dia, alimentados por charlatões que açambarcam termos técnicos para propagar desinformação, algo que chamei de mecânica quântica da prosperidade.

A metáfora do gato de Schroedinger, um experimento fictício criado pelo físico Erwin Schroedinger para representar um dos aspectos da mecânica quântica, mostra um gato dentro de uma caixa, com um vidro de veneno e uma substância com uma certa probabilidade de emitir radiação. A emissão da radiação faz com que o veneno seja liberado e o gato morra. Antes de alguém abrir a caixa e olhar para seu interior, o gato estaria vivo E morto ao mesmo tempo.

Se de um lado o experimento imaginário criado por Schroedinger oferece uma imagem ilustrativa das dificuldades de traduzir a mecânica quântica em conceitos da vida comum, por outro induz as pessoas a achar que a consciência ou a vontade do indivíduo, representadas pela abertura da caixa e observação do estado do gato, têm uma ação direta no resultado do experimento. Desdobramentos desse raciocínio fazem com que gurus quânticos apregoem que é possível curar doenças, e até modificar o seu DNA, somente com a “força do pensamento”.

A visão errada de que a vontade da pessoa que observa o experimento poderia de alguma forma interferir no resultado é potencializada também por uma compreensão equivocada do experimento da dupla fenda, onde a não identificação e a identificação do caminho que um elétron percorreu ao passar por duas fendas até atingir um anteparo faz com que ele se comporte, respectivamente, como onda ou partícula.

Conforme escrevi em outro texto para esta revista, a natureza e o Universo não estão nem aí para nós. A narrativa antropocêntrica, como se o ser humano fosse detentor de uma posição privilegiada na natureza, faz parte de um ecossistema fundamentado em crenças que tenta atribuir uma previsibilidade inexistente para eventos incertos. Além de enganar, esse discurso ainda tem um lado perverso de atribuir a culpa do insucesso à pessoa que “não teve um pensamento positivo”.

Apesar de estapafúrdia, a ideia do “poder do pensamento” não fica restrita somente a grupos religiosos e a filmes de ficção. O artigo Intentional Observer Effects on Quantum Randomness: A Bayesian Analysis Reveals Evidence Against Micro-Psychokinesis, publicado no periódico Frontiers in Psychology, mostra como esse assunto pode ser levado a sério por pesquisadores e editores.

Antes de explicar o que foi feito no artigo acima, vamos imaginar a seguinte situação. Um e-mail ou uma mensagem em redes sociais convida pessoas para participar de uma pesquisa científica. O experimento consiste em investigar a relação causa-efeito do pensamento das crianças e o peso dos ovos entregues pelo Coelho da Páscoa.

Ao aceitar participar da pesquisa, a pessoa recebe um link que deve ser acessado antes do domingo de Páscoa – data em que a criança receberá o ovo. Ao clicar, as pessoas têm acesso ao protocolo do experimento: um grupo de crianças verá na tela do computador imagens de coisas grandes (montanhas, planetas, monumentos etc.), outro grupo verá coisas pequenas (micróbios, formigas, um grão de areia etc.) e o terceiro grupo receberá apenas estímulos variados, grandes e pequenos. Após observar as figuras, a criança deverá mentalizar o tamanho do ovo desejado. No dia de Páscoa, os pais deverão pesar os ovos e enviar os resultados pelo formulário para que os dados sejam avaliados pelos pesquisadores.

Independente dos números que saiam da análise estatística do experimento acima, a verdade é que esse experimento parte de uma premissa absurda: a existência do Coelho da Páscoa. A partir dessa hipótese absurda, qualquer coisa que venha de experimentos associados a isso se torna, por definição, uma bobagem. O exemplo descrito aqui no contexto do Coelho da Páscoa ficou conhecido como "ciência da Fada do Dente".

A ciência da Fada do Dente consiste basicamente em estudar as características e detalhes de um fenômeno antes de estabelecer se ele existe: você pode medir a quantidade de dinheiro que a Fada do Dente deixou sob o travesseiro, se o pagamento é maior para o primeiro ou último dente ou se a recompensa é maior para um dente embalado em um plástico ou em um lenço de papel. Pode coletar dados de diversas crianças para ter uma estatística razoável sobre o comportamento e as preferências pessoais da fada. O detalhe, porém, é que a Fada do Dente não existe, e há uma explicação muito mais plausível para os resultados experimentais.

Voltando ao artigo, os autores propõem o estudo da ação da micropsicocinese – a influência do pensamento na geração de números aleatórios. Para isso, elaboram um protocolo parecido com aquele descrito no experimento do Coelho da Páscoa. Aqui, porém, são inseridas algumas etapas intermediárias.

O experimento começa com um exercício de relaxamento. Em seguida, as pessoas são expostas a sons e imagens “agradáveis” e “desagradáveis” enquanto um programa gera números aleatórios. A ideia do experimento é verificar se os estímulos causados pelas imagens fazem com que os números apresentem uma distribuição diferente daquela que seria esperada pelo acaso.

O artigo mostra uma extensa e sofisticada análise estatística e termina por concluir, categoricamente, que não foi detectado nenhum efeito de micropsicocinese. As questões que devemos responder aqui são: faria alguma diferença se este experimento tivesse indicado uma conclusão completamente oposta? O resultado deste experimento tem alguma relevância do ponto de vista científico? A resposta para ambas as perguntas é não.

Este experimento é um bom exemplo da ciência da Fada do Dente (ou do Coelho da Páscoa). Nenhum dos pesquisadores é ligado a um departamento de física e, de fato, parecem imbuídos de um interesse genuíno para investigar um fenômeno que, ainda que houvesse alguma plausibilidade teórica de existir (não há), necessitaria de um arranjo experimental cuidadoso e sofisticado para que os efeitos da mecânica quântica não fossem destruídos pelas interações com o ambiente.

Seria muito interessante verificar algo tão surpreendente como mover e criar coisas somente com o “poder do pensamento” – isso, sem dúvida, sairia na capa das principais revistas científicas do mundo. O fato, porém, de o estudo de mecânica quântica ser publicado em uma revista de psicologia com frases sem sentido (“a entropia contra-ataca o efeito original de micropsicocinese. A sua interação mútua produz uma oscilação harmônica amortecida”) mostra que o trabalho não vai muito além do que olhar para o céu e ficar procurando significados escondidos no formato das nuvens.

 

Marcelo Yamashita é professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência

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