O Universo não liga para suas intenções

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14 jul 2022
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intenções

 

Linus Pauling, um químico brilhante, ganhou sozinho dois prêmios Nobel: um de química, em 1954, “por sua pesquisa sobre a natureza da ligação química e sua aplicação na elucidação da estrutura de substâncias complexas”, e outro da paz, em 1962, “por sua luta contra a corrida armamentista nuclear entre o Oriente e o Ocidente”. Pauling ficou fissurado pela vitamina C e defendeu fervorosamente que a ingestão de doses cavalares desse nutriente poderia evitar e curar cânceres e resfriados. Apesar de ambas as hipóteses serem falsas, a associação, na cultura popular, entre vitamina C e resfriados ainda é muito comum.

Na página pessoal de Travis Taylor no LinkedIn consta que ele tem um doutorado em ciência óptica e engenharia, um doutorado em engenharia de sistemas aeroespaciais, um mestrado em física e um mestrado em engenharia aeroespacial pela Universidade do Alabama. Travis também participa do programa de TV Alienígenas do Passado, escreveu um livro e apresentou um TEDx defendendo bizarrices envolvendo a mecânica quântica. Um artigo publicado na Science em 22 de junho de 2022 conta que Travis Taylor liderou uma análise sobre UFOs para o governo dos Estados Unidos.

Poderíamos encher páginas e mais páginas com exemplos de que títulos e prêmios não impedem ninguém de falar besteira. Recorrer a argumentos de autoridade, dizer que algo é verdade só porque foi dito por um prêmio Nobel, por exemplo, é uma falácia argumentativa bastante comum. Nessa toada, alguns físicos, como Fritjof Capra e Amit Goswami, utilizando uma linguagem científica e, talvez, a formação que têm em física, ganharam visibilidade ao publicar obras promovendo um campo pseudocientífico que ficou conhecido como misticismo quântico.

A mecânica quântica se iniciou um pouco antes dos anos 1900. Esta teoria, testada e verificada por inúmeros grupos do mundo, explica uma série de fenômenos que ocorrem predominantemente em escalas atômicas e subatômicas[i]. O desenvolvimento dessa teoria mostrou, entre muitas outras coisas, que algumas grandezas não podem assumir qualquer valor: assim como os números que representam canais de TV não têm valores fracionários (não existe uma infinidade de canais intermediários, “50,1”, “50,2”, “50,3”, etc., entre o 50 e o 51, por exemplo), as pesquisas que levaram à teoria quântica mostraram que algumas grandezas da física também não podem apresentar valores intermediários. No jargão técnico, dizemos que esses valores são “quantizados”.

Diversos efeitos do cotidiano (lasers e lâmpadas fluorescentes, por exemplo) só podem ser explicados pela mecânica quântica, mas a imensa maioria das coisas do dia a dia é contemplada pelo arcabouço teórico da chamada física clássica. Diferentemente do mundo quântico, onde a precisão de medidas simultâneas de posições e velocidades estão correlacionadas e tem um limite estabelecido pela natureza, e partículas podem ser descritas como ondas, nada impede que, conhecendo as condições iniciais, saibamos com uma excelente precisão a velocidade de uma bola de futebol e onde ela vai cair.     

A fascinação frente ao comportamento peculiar descrito pela mecânica quântica, somada aos exemplos que se tornaram populares, como o gato de Schrödinger, o experimento da fenda dupla e a dualidade onda-partícula, dá origem a interpretações equivocadas e desdobramentos pseudocientíficos trazidos por “picaretas quânticos”. Ideias erradas de que o pensamento pode direcionar o resultado de medidas são transportadas para a vida das pessoas criando uma espécie de “mecânica quântica da prosperidade”: através do pensamento seria possível (não é) modificar o DNA e se tornar rico. Para entender de onde surge a ideia equivocada de que somente a “força do pensamento” seria capaz de modificar a realidade das coisas, é necessário explicar o famoso experimento da fenda dupla.

Imagine um experimento simplificado composto por três elementos, fonte-barreira-tela, nesta sequência. A fonte pode emitir uma partícula elementar, um elétron ou um fóton, por exemplo, que será lançada em direção à barreira. Na barreira existem duas fendas por onde a partícula pode passar. Ao atingir a tela, a partícula deixa alguma marca que pode ser detectada.

Vamos supor que estamos usando um fóton, e que ele é, de fato, uma partícula – imagine uma esfera microscópica rígida. Neste caso, ele deve passar por uma ou outra abertura. Não é possível que uma esfera rígida solitária passe, ao mesmo tempo, pelas duas aberturas.

Considere agora, porém, que o fóton seja uma onda. Nesta situação, a onda pode passar pelas duas aberturas simultaneamente – a figura formada na tela é uma superposição das ondas que emergem de cada uma das fendas. Temos, portanto, dois padrões distintos que permitem dizer se o fóton é uma partícula ou uma onda.

A natureza, porém, muito bem descrita pela mecânica quântica, é fascinante, e as coisas podem não ser tão simples como parecem: o fóton apresenta um padrão de interferência – se comporta como onda – se não houver possibilidade de determinar por qual fenda ele passou. Caso contrário, se tivermos meios de saber qual fenda serviu de passagem, o fóton se comporta como uma partícula, e não existe mais interferência.

O comportamento dual da partícula elementar (às vezes se comporta como onda e outras, como partícula), influenciado pelo tipo de medida que é realizado no experimento, pode dar margem à interpretação errada de que a pessoa que observa o experimento poderia influenciar a natureza do fóton usando “força de vontade”. Essa interpretação estapafúrdia deu origem a crendices como “a lei da atração” ou “o Universo conspira para [qualquer coisa]” – somente pela sua vontade, seria possível modificar a realidade das coisas para ficar rico ou curar doenças, por exemplo. O seu pensamento atrairia coisas boas ou ruins.

A verdade é que essa visão antropocêntrica não está correta – o Universo ou natureza não estão nem aí para você. Isso não quer dizer que as pessoas não possam, por meio de ações bem planejadas, afetar diretamente questões práticas, como reduzir a emissão de gases de efeito estufa para combater o aquecimento global, por exemplo. O que está em jogo aqui são tentativas de influenciar a realidade usando pensamentos mágicos, como tentar levitar o Pentágono em protesto contra a guerra do Vietnã. Mas voltemos ao experimento da dupla fenda.

Note que em alguns parágrafos acima foi escrito que a possibilidade de detecção destrói o comportamento ondulatório do fóton. Essa possibilidade pode ser criada através de um fenômeno chamado de emaranhamento quântico. (A explicação a seguir sobre o que é um estado emaranhado foi publicada, originalmente, aqui).

Um sistema quântico emaranhado é uma composição de dois ou mais estados quânticos que simplesmente não existem individualmente (antes da medição não é possível rotular os estados). Apesar de não haver nenhum análogo clássico para exemplificar o que seria esse estado emaranhado, podemos tentar entendê-lo através de uma metáfora.

Imagine que temos dois dados, mas que você só tenha acesso à soma total dos dois, por exemplo, 7. A combinação dos valores individuais dos dados poderia ser qualquer uma dessas duplas (6,1), (5,2), (4,3), (3,4), (2,5) ou (1,6). Um sistema emaranhado é parecido com a situação colocada aqui: você conhece o resultado da soma, mas não conhece os estados individuais. Porém, uma vez que você meça qualquer um dos dois componentes do sistema, você descobre qual é o valor do outro.

De maneira análoga, podemos produzir dois fótons emaranhados onde somente o resultado da superposição é conhecido. Imagine, então, um experimento composto por fótons emaranhados. Os fótons agora são produzidos aos pares: sempre que um fóton é emitido em direção às fendas, existe um outro que parte no sentido oposto.

O resultado surpreendente é que mesmo que esse fóton lançado no sentido oposto à tela nunca seja detectado – sua detecção permitiria deduzir o caminho do fóton disparado rumo à tela e, consequentemente, por qual fenda ele passou –, o padrão que aparece na tela é de partícula. Não se observa mais o comportamento ondulatório do fóton (o artigo original do experimento ao qual eu me refiro é um pouco mais complicado e pode ser acessado na revista especializada ou na versão gratuita).

Como dito pelo professor George Matsas, uma partícula fundamental se propaga como onda, mas se revela como partícula. Porém, a mera possibilidade de revelação já faz com que o comportamento ondulatório seja eliminado – ela não precisa de fato ser revelada. Além desta ser uma descoberta incrível, ela ainda mostra que o resultado do experimento independe de qualquer ação telepática. Não importa se você se concentra com toda força ou nem desconfia de que o experimento existe – a natureza não está nem aí para o que você acha ou pensa.

A utilização de termos relacionados à quântica tem sido feita de maneira inapropriada nos mais diversos contextos, invadindo inclusive a Academia, como foi o caso da disciplina "Perspectiva Quântica para o Cuidado de Enfermagem/Saúde" para o curso de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Embora isso tenha ocorrido na FURG, mais exemplos inaceitáveis de desinformação envolvendo termos da física podem ser encontrados em muitas outras universidades.

Marcelo Yamashita é professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência

 

NOTA

[i] Embora exista sempre uma referência ao tamanho das coisas para se determinar os limites de aplicabilidade da mecânica quântica, a unidade física correta que deve ser considerada é chamada de momento angular – a constante de Planck tem essa unidade.

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