Apesar do Mapa da Vacinação do dia 05/02/2022 apresentar uma proporção de 71% de brasileiros totalmente vacinados, há uma movimentação diametralmente oposta dos grupos antivacinas, que reivindicam o direito de não se vacinar.
Por mais assustador que pareça, uma ideia legislativa intitulada “A não obrigatoriedade em tomar esse experimento chamado 'VACINA CONTRA COVID'” conta com mais de 34 mil apoios no e-Cidadania (portal criado pelo Senado Federal com o intuito de estimular a participação dos cidadãos nas atividades legislativas). A autora da petição escreve: “Dará liberdade para o cidadão poder escolher o que entra em seu corpo. Não é justo ser obrigada a tomar algo que não confio e ser obrigada a isso para viajar, frequentar meu trabalho, escola, universidade, restaurantes, lugares públicos em geral. Quero que a Constituição seja cumprida”. E continua: “Se, ‘a vacina’ imuniza a quem a toma, porquê obrigar quem não quer tomar se ele não passará para ninguém e se somente ele, correrá esse risco?” (sic).
O argumento é comum, mas está errado por vários motivos. O primeiro é que existem pessoas que não podem (em oposição a não quererem) se vacinar, e dependem da cobertura vacinal da população para se protegerem. Outro, que a vacinação não elimina o risco de contaminação, doença grave e morte, embora o reduza significativamente. Portanto, a presença de não vacinados em grande número é, sim, um risco para membros da maioria vacinada.
Não vacinados também são um campo fértil para a produção de novas variantes do vírus, que podem vir a escapar das vacinas existentes. Para completar, ao adoecer e evoluir para casos graves em proporção muito maior que os vacinados, não vacinados lotam hospitais e sobrecarregam os serviços de saúde.
Infelizmente, essa não é a única súplica esdrúxula sobre vacinas apresentada ao Senado. Há outros autores que acreditam que seus direitos estão sendo suprimidos, caso da ideia legislativa “Proibição a escolas de exigirem de crianças comprovante de 'vacina' 'Covid-19'”. Nesta, pede-se que escolas públicas e privadas sejam proibidas de requerer o comprovante de vacina, sob pena de perda do alvará de funcionamento e responsabilização penal dos gestores. O autor da proposta acredita que a prática é um tipo de segregação social (em violação ao artigo 5º da Constituição). O proponente acredita que a vacina expõe “crianças, que são mais frágeis e estão em desenvolvimento, a sérios riscos com uma injeção estranha”.
O texto que tenta embasar a ideia fala de mortes em massa causadas pela vacina – mortes que só existem na cabeça do autor. No Brasil, onde morreram mais de 640 mil pessoas por COVID-19, o número de mortes que têm alguma probabilidade de estarem relacionadas a alguma das vacinas contra o coronavírus era, em novembro do ano passado, 11.
Segundo pesquisa realizada pela Câmara dos Deputados e pelo Senado (2019) – publicado na “Agência Brasil” - o WhatsApp foi considerado a principal fonte de informações da população brasileira, com 79% dos entrevistados dizendo sempre receber notícias pela rede social. Este dado é particularmente preocupante, visto que o mesmo portal publicou uma pesquisa desenvolvida pela Fiocruz (2020) que constatou que 73,7% das informações e notícias falsas sobre o coronavírus circularam pelo aplicativo.
A despeito da célebre expressão proferida pelo ex-ministro de propaganda da Alemanha nazista, Joseph Goebbels, “Uma mentira contada mil vezes torna-se verdade”, isso não ocorre na ciência. Fé ou convicção não mudam fatos.
Vale destacar que a veiculação de informações falsas é uma forma da ignorância estratégica – termo cunhado pela socióloga Linsey Mcgoey que o define como “habilidade de explorar o desconhecimento para ganhar mais poder”. No caso do discurso antivacinas, desacreditar a eficácia da vacinação ao mesmo tempo em que insufla o medo com relação a possíveis eventos adversos – vide nota técnica do Ministério da Saúde que apresentava uma “tabela” que, numa inversão completa da realidade, defendia a eficácia da hidroxicloroquina enquanto indicava a falta de estudos sobre vacinas.
Por fim, fico feliz em não precisar me alongar com relação à segurança e a eficácia da vacina, visto que há diversos artigos nesta Revista Questão de Ciência escritos por pessoas muito mais competentes do que eu. Você pode lê-los aqui, aqui e aqui.
Biopolítica
Segundo NOGUEIRA, R. (2013) apud FOUCAULT: “Biopolítica” defende a hipótese de que, com o capitalismo, assistimos não à privatização da prática médica, mas à crescente presença da medicina nos espaços públicos. Tomando como objeto de sofisticadas tecnologias políticas, o corpo torna-se público, e o público “somatocrático”. Isto significa que “vivemos num regime em que uma das finalidades da intervenção estatal é o cuidado do corpo, a saúde corporal, a relação entre as doenças e a saúde, etc”. Além disso, Foucault enumera os quatro eventos responsáveis pela medicalização da sociedade:
Medicina estatal e polícia médica - essenciais para garantir e impulsionar o funcionamento estatal
Desenvolvimento da medicina urbana – medidas de higienização, saneamento e outras estratégias políticas que visam à saúde da população
Hospitais como instrumentos terapêuticos
Associação da medicina com o saber – caso da estatística, culminando em dados relativos à saúde da população
Em outras palavras, podemos constatar que as inúmeras políticas públicas no campo da saúde servem para evitar o adoecimento dos cidadãos, visto que um cidadão “doente” não afeta somente seu núcleo familiar, mas sim toda a sociedade, gerando aumento de gastos com atendimento em saúde e, dependendo da patologia, diminuindo a capacidade de trabalho. Um exemplo prático disso é o programa Pró-Iodo, ação que ocorre desde 1950 por meio da iodação do sal para aumentar o consumo do iodo, prevenindo e controlando os distúrbios ocasionados pela deficiência desse micronutriente essencial, utilizado para síntese dos hormônios tireoidianos.
Vacinação obrigatória
O estudo de GARDONI, R. (2017) verificou, na literatura, os embates entre utilidade pública e a liberdade individual no STF com relação à vacinação obrigatória. Nesse percurso, relembra a Revolta da Vacina.
Essa revolta foi um motim popular ocorrido em 1904 contra a vacinação obrigatória para varíola. Segundo José Murilo de Carvalho, houve diversos motivos que instigaram a revolta. Contudo, dois se destacaram:
Insatisfação popular com relação às medidas sanitárias propostas
Medo da possibilidade de os agentes sanitários invadirem os lares
O historiador conclui: “O aspecto moral é o principal motivo para o levante, seja como valor moderno ou tradicional: a justificação baseava-se tanto em valores modernos como tradicionais. Para os membros da elite, os valores principais eram os princípios liberais da liberdade individual e de um governo não-intervencionista. [...] Para o povo, os valores ameaçados pela interferência do Estado eram o respeito pela virtude da mulher e da esposa, a honra do chefe de família, a inviolabilidade do lar. Acontece que os dois tipos de valores, o moderno e o tradicional, eram perfeitamente compatíveis. Ambos convergiam na oposição à interferência do governo até limites desejáveis”. Em outras palavras, os contrários à vacinação tinham a convicção de que estavam assegurando a defesa dos direitos civis.
Após contextualizar os motivos da revolta, GARDONI introduz autores que abordam o tema da obrigatoriedade da vacina e que divergem com relação à liberdade individual e a “utilidade pública”.
O primeiro autor citado é Pedro Lessa, jurista, que afirmar não haver controvérsias quanto à atuação do Estado na imposição de medidas sanitárias. Para ele, se houver dados que demonstrem a eficácia e segurança das medidas profiláticas, o Estado pode obrigar pelo emprego da força, se necessário, aqueles contrários, por quaisquer motivos. Por fim, conclui que os direitos individuais não se sobrepõem ao bem coletivo.
O segundo é Augusto Olympio Viveiros de Castro, mais um jurista que defende a necessidade da vacinação como medida intervencionista do Estado. Porém, diferentemente de Lessa, afirma que a vacinação obrigatória – no sentido de “vacinar à força” – é uma medida que viola a liberdade individual. Por conta disso, ele propõe que o Estado utilize outros tipos de artifícios, como “requisito indispensável para a matrícula nos estabelecimentos públicos de instrução e para o provimento de cargos públicos”. Não sei quanto a vocês, mas nenhum agente sanitário tentou invadir minha casa ou me vacinar à força.
Essa visão de Viveiros de Castro é corroborada por “Covid-19 e vacinação obrigatória: Considerações éticas e advertências”, um documento redigido pela OPAS em 13 de abril de 2021. Neste, a Organização Pan-Americana da Saúde explica que a “vacinação obrigatória” não utiliza da força – como o nome sugere – e tampouco de medidas coercitivas para vacinar os indivíduos. Entretanto, a organização ressalta que a opção pela não vacinação acarreta limitações à vida da pessoa, como, por exemplo, impedir que frequente escolas ou trabalhe em áreas específicas. Vale destacar que a OMS argumenta que a melhor maneira de vacinar a população é por meio de campanhas de informação e disponibilização do imunizante e, em último recurso, vacinação obrigatória.
E a tal liberdade que tanto comentam?
O direito à liberdade é um dos preceitos fundamentais presentes na Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada em 10 de dezembro de 1948. A declaração apresenta 30 artigos, todos extremamente importantes. Contudo, aqueles que tratam das “liberdades individuais” são distorcidos para servir de base para a narrativa antivacina. Caso do Artigo 3, “Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”, e do Artigo 19, “Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; esse direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”.
Nossa Constituição também dispõe de artigos que tratam da liberdade, caso do artigo 5º: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes”. Contudo, vale reforçar que nem todos os direitos são absolutos: minha liberdade de estender meu punho fechado termina na ponta do nariz da pessoa ao lado. No contexto atual, reivindicar a “liberdade” de não vacinar-se é como reivindicar a “liberdade” de dirigir depois de tomar umas duas pingas.
Falando sobre legislação, não vacinar crianças pode ser visto como violação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que define como “dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária” (Art. 4). O mesmo artigo esclarece que “absoluta prioridade” compreende:
Prioridade de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;
Precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública;
Preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas;
Destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.
Por fim, o nonsense antivax também descumpre o parágrafo 1 do Art. 14 presente no Capítulo I – Do Direito à Vida e à Saúde – do ECA: “É obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias”.
Até mesmo o presidente Bolsonaro – nosso sumo-sacedorte de caráter blasonador - sancionou em 2020 a Lei 13.979, que dispõe sobre as medidas para o enfrentamento do coronavírus. O artigo 3 apresenta três medidas a serem seguidas:
Isolamento
Quarenta
Determinação de realização compulsória, este último apresenta várias frentes de atuação, caso dos testes laboratoriais e, por mais contraditório que pareça, vacinação e outras medidas profiláticas, ou tratamentos médicos específicos.
Por algum motivo o presidente entendeu que podia escolher somente uma frente de atuação e, por isso, optou por tratamentos médicos específicos (e, o que a lei não prevê, ineficazes) e desdenhou das demais ações.
Mauro Proença é nutricionista