A doutrina homeopática postula que o poder medicinal de uma substância amplia-se à medida em que é diluída. Diluições homeopáticas comuns vão além de 12C, o que, na notação especial de seus fundamentos, significa aproximadamente uma parte de soluto – o suposto princípio ativo – em cem sextilhões de partes de solvente.
Um sextilhão não é pouca coisa. É mais que um milhão, um bilhão, um trilhão, um quatrilhão e um quintilhão. Todos estes números grandes iniciam com o dígito 1, depois seguido de vários zeros. Um milhão tem seis zeros, um bilhão, nove, um trilhão, doze, um quatrilhão, quinze, um quintilhão, dezoito, e um sextilhão, vinte e um.
É importante saber que números da ordem de sextilhões existem na natureza. Tome como exemplo uma pedrinha de carbono puro, que alguns chamam de carvão: apenas dois gramas contêm cem sextilhões de átomos de carbono. Cem sextilhões corresponde a cem vezes um sextilhão, ou seja, o digito 1 seguido de vinte e três zeros, um número muito, muito grande, que pode ser escrito em notação científica como dez elevado à potência 23. Apenas para comparação, os astrônomos Pieter Gerhardus van Dokkum (holandês, n. 1972) e Charles Francis Conroy (norte-americano, n. 1983) estimaram existirem por volta de 300 sextilhões de estrelas no universo.[i] Importante ressaltar que esta é a ordem de grandeza envolvida em soluções homeopáticas, seguindo qualquer bula de procedimento dito farmacológico – que, no entanto, não se baseia em qualquer fundamento científico, e que pode ser verificado por simples contas matemáticas, como as apresentadas a seguir.
Em ciência, há um número da ordem dos sextilhões que é tão relevante que recebeu nome próprio: Avogadro, em homenagem ao advogado italiano Lorenzo Romano Amedeo Carlo Avogadro (1776 – 1856), que se tornou um extraordinário professor de física e química[ii], e cujo retrato ilustra este artigo. O número representa uma quantidade fundamental para o estudo e a manipulação da matéria, e recebeu também o nome mol pois, em latim, mole significa quantidade.
Em suas pesquisas de 1811, Avogadro estabeleceu primeiramente que o volume de qualquer gás (a uma dada pressão e temperatura) é proporcional ao número de átomos ou moléculas, independentemente da natureza desse gás. E concluiu: “volumes iguais de gases diferentes, à mesma temperatura e pressão, contêm o mesmo número de átomos (ou moléculas, dependendo da natureza do gás)”.
Esta descoberta levou à ideia de uma constante de proporcionalidade que permitisse calcular o número de partículas de uma amostra a partir de características como massa e volume, e vice-versa – a massa ou volume partir da quantidade de partículas. O número de Avogadro é essa constante, e corresponde ao número de partículas (átomos ou moléculas) presente numa massa em gramas igual, numericamente, ao peso atômico da matéria em análise.
Por exemplo: o peso atômico da molécula de água é 18, portanto podemos afirmar que em 18 gramas de água há seiscentos (e dois) sextilhões de moléculas. Outra forma de dizer isso é que a massa molar da água – isto é, a massa de água que contém um mol de moléculas – é 18 gramas. Já o dióxido de carbono tem peso atômico 44. Isso significa que para obter um mol de moléculas de CO2, são necessários 44 gramas. Depois de duzentos anos, o conceito de Avogadro atingiu as escolas, e qualquer estudante com conhecimento de química básica do fundamental se debruça com tais números. É assim que a ciência avança.
E continuou avançando. No início do século 20, a determinação do número de Avogadro foi parte importante do tema da tese do físico alemão Albert Einstein (1879 –1955). Defendida em 1905, tratava de “Uma Nova Determinação das Dimensões Moleculares”, [iii] ou seja, discutia em meras 21 páginas a existência e o comportamento de átomos e moléculas, assunto este muito questionável há um pouco mais de cem anos. Com base numa proposta inovadora e elegante, Einstein tomou dados publicados de açúcar dissolvido em água e obteve uma estimativa muito razoável das dimensões da molécula de açúcar. Seus cálculos envolveram um número próximo da hoje conhecida Constante de Avogadro.
Errando por pouco, Einstein sugeriu que tal número fosse duzentos e dez sextilhões, ao invés dos seiscentos e dois sextilhões, valor universalmente aceito pela ciência hoje. Como previsão, pode-se dizer que Einstein chegou muito perto do resultado correto, e este exemplo também derruba o mito de infalibilidade envolto em gênios como o famoso cientista alemão.
A água é o solvente mais usado, embora não seja o único, em homeopatia, por ser muito comum e barata. Credita-se ao nobre e químico francês Antoine-Laurent de Lavoisier (1743-1794), conhecido como o pai da química moderna, a compreensão sobre a composição da água, que leva em conta combinações de números de Avogadro das substancias. Para simplificar o uso de números muito grandes, os cientistas os manipulam em termos de mol. O mol é a unidade utilizada nas equações que descrevem reações químicas. Assim como a dúzia representa doze unidades e a dezena, dez, o mol representa a quantidade vinculada ao número de Avogadro. Assim, ao se debruçar na famosa reação 2H2+O2 –> 2H2O lavoisierana, pode-se perceber que são necessários dois moles de gás hidrogênio e um mol de gás oxigênio para obter dois moles de água.
Outra aplicação comum do número de Avogadro, em ciência, está vinculada ao cálculo da concentração de soluções: quando dissolvemos uma substância num solvente – água, álcool, etc. – e queremos ver como nossa solução se compara a outras, um dado muito utilizado é o da concentração molar: quantos moles de soluto existem em um litro de solução?
Se a solução original for de 1 mol/litro e pegarmos 1 mililitro, então podemos esperar encontrar um número de moléculas de soluto correspondente a um milésimo de mol. Se pegarmos esse mililitro e o jogarmos em 999 ml de água pura, teremos agora uma concentração de um milésimo de mol por litro. É possível levar esse processo adiante, diluindo as amostras mais e mais, até o ponto em que não reste mais nenhuma única molécula do soluto, e seguir adiante – em essência, diluindo água em água. Este consiste num dos insustentáveis princípios homeopáticos, o da solvência ou diluição, que não se ampara em termos práticos enquanto doutrina.
Dito de outra forma, o fato é que, partindo de uma concentração de um mol de princípio ativo, depois de uma diluição rotineira a 12C – e certos medicamentos homeopáticos, como o antigripal Oscillococcinum, conforme extensa veiculação na internet, afirmam atingir incríveis 200C (o equivalente ao dígito 1 seguido de quatrocentos zeros)[iv] – pode-se dizer que não resta nada do produto original na fórmula final. Em termos comparativos, ao se diluir um torrão de açúcar (aproximadamente 3,4 g) numa piscina olímpica, isto ainda está longe, muito, mas muito longe - da meta de diluição homeopática. Basta fazer as contas para notar que é muito inferior aos sextilhões avogadrianos.
Pode-se, portanto, concluir que a homeopatia é feita de nada, e urge dar continuidade à conscientização da população, defendendo a Campanha dos Cem Sextilhões do www.iqc.org.br, promovida pelo Instituto Questão de Ciência. Argumentações contra a prática homeopática são necessárias pois esta consiste numa terapia, na melhor das hipóteses, inócua, mas que infelizmente é reconhecida tanto pelo Sistema Único de Saúde quanto pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), causando enormes danos ao Erário.
A ciência realmente evolui em ritmo distinto de certas tradições e práticas que persistem como mitos. A proposta de Avogadro tem pouco mais de duzentos anos. Há um século ainda se discutia sobre a existência de átomos e moléculas, ao mesmo tempo que até hoje há quem acredite que apenas uma molécula diluída em sextilhões apresente algum efeito no corpo humano.
Este panorama, baseado em crenças absurdas e anticientíficas, precisa ser revisto pelo bem da saúde pública, que necessita redirecionar esforços, recursos e energias para boas práticas, testadas e comprovadas. E a matemática dos grandes números pode servir de argumento contra tais falácias.
Marcio Luis Ferreira Nascimento é físico e professor de engenharia na Escola Politécnica da Universidade Federal da Bahia, autor de “Etcetera: Engenharia, Tecnologia e Ciência” (Editora da UFBA)
NOTAS
[i] Pieter G. van Dokkum, Charlie Conroy. “A substantial population of low-mass stars in luminous elliptical galaxies”. Nature 468, p. 940 - 942 (2010).
[ii] Amedeo Avogadro. “Essai d'une maniere de determiner les masses relatives des molecules elementaires des corps, et les proportions selon lesquelles elles entrent dans ces combinaisons”. Journal de Physique 73, p. 58 - 76 (1811).
[iii] Albert Einstein. “Eine neue Bestimmung der Moleküldimensionen”. Tese. Universidade de Zurique, Zurique, 21 p. (1905).
[iv] O gugol (ou googol em inglês) corresponde ao número 1 seguido de 100 zeros, e foi proposto pelo matemático americano Edward Kasner (1878-1955) em 1938. O conhecido site de buscas Google homenageia o número de Kasner ao ‘organizar as informações do mundo e as tornar universalmente acessíveis e úteis’, que é estimado ser da ordem de petabytes, ou seja, 1 seguido de quinze zeros, ou ainda, um quatrilhão de bytes – este inferior ao número avogadriano.