Pegada de carbono e o sujo falando do mal lavado

Artigo
10 jan 2022
Autor
vacas

 

Quando eu era criança e os netos começavam a perturbar muito minha avó dizendo que “fulano isso” ou “sicrano aquilo”, respondia ela que era “o sujo falando do mal lavado” (isso, claro, quando não lançava logo que todos tínhamos “titica de galinha na cabeça!”). E foi justamente a primeira frase que me veio à mente quando vi a notícia de que pecuaristas brasileiros realizaram “churrascos de protesto” na frente de agências do Bradesco, país afora, neste início de ano. Os ruralistas reclamavam de fala de um trio de “influencers” em redes sociais estimulando a adesão ao movimento “Segunda sem carne”, em uma campanha contratada pelo bancão para divulgar novo aplicativo que permite a seus clientes calcular sua chamada “pegada de carbono”.

“A criação de gado contribui para a emissão dos gases de efeito estufa, então, que tal se a gente reduzir o nosso consumo de carne e escolher um prato vegetariano na segunda-feira?”, sugeria uma integrante do trio no vídeo.

“É isso mesmo @Bradesco, o pasto não entra nesse cálculo? Vocês não pensaram em consultar EMBRAPA ou alguma instituição séria p (sic) saber se o pasto captura carbono na atmosfera e compensa os gases da pecuária?”, respondeu no Twitter José Medeiros, deputado federal (Podemos/MT) da bancada ruralista no Congresso Nacional, pautando a reação do setor.

Noves fora que para promover churrascos hoje no Brasil, ao preço que está a carne de boi, só sendo dono de banco (contém ironia), este é um exemplo de discussão em que os dois lados erram na propagação de discursos sobre a emergência climática, ainda que com níveis diferentes de “sutileza”.

 

O agro é sujo

Comecemos pelo argumento do deputado Medeiros, um exemplo da conhecida tática de desinformação que consiste em usar uma meia-verdade para defender uma posição e rebater críticas. Explico: historicamente, mudanças no uso da terra são a principal fonte de emissões brutas de gases do efeito estufa do Brasil. Mais que o setor de energia – o que inclui transportes, isto é, todos os caminhões, carros e motos circulando por estradas e ruas de todo país, e os aviões cruzando seu céu –, mais do que as indústrias, mais que a gestão de resíduos, mais que as emissões diretas do próprio agronegócio (historicamente, o segundo maior emissor nacional). Geralmente, mais até que todos estes setores somados, com poucas exceções entre 1990 e 2020, período coberto pelo Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG), iniciativa do Observatório do Clima, rede que reúne instituições da sociedade civil brasileira para discutir as mudanças climáticas, que calcula os números seguindo diretrizes do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU (IPCC), com base na metodologia dos Inventários Brasileiros de Emissões e Remoções Antrópicas de Gases do Efeito Estufa do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI).

Acontece que o agronegócio é justamente o principal motor por trás das mudanças no uso da terra no Brasil. Na maior parte das vezes, via desmatamento, em sua maioria ilegal, em biomas como o Cerrado e a Amazônia. Em geral, primeiro para conversão da floresta em pastos, que num segundo momento se tornam nova fronteira agrícola, mas também para liberar diretamente áreas cultiváveis, em esquemas de grilagem de terras públicas. Assim, contabilizadas as emissões por atividade econômica, a agropecuária é de longe, mas muito longe mesmo, a maior emissora bruta de gases do efeito estufa do país, responsável pelo lançamento de quase 1,6 bilhão de toneladas de CO2 (dióxido de carbono) equivalente na atmosfera em 2020, ou cerca de 74% das emissões totais brasileiras estimadas para aquele ano, de 2,16 bilhões de toneladas de CO2 equivalente, de acordo com o SEEG.

Mas Medeiros falou de “captura de carbono” pelo pasto, então deve estar se referindo às emissões líquidas. Isso, no entanto, depende da forma como este solo transformado em pastagem é manejado. E este processo, embora tenha melhorado muito nos últimos anos, está longe de compensar as emissões da pecuária no Brasil, como argumentou o deputado. Ainda com base nos dados do SEEG, em 2020 a chamada “fermentação entérica” dos animais – isto é, seus arrotos e peidos ricos em metano, um gás muito mais “eficiente” que o CO2 para gerar efeito estufa – e seus dejetos responderam pelo lançamento de quase 400 milhões de toneladas de CO2 equivalente na atmosfera, enquanto o manejo adequado das pastagens resultou em uma remoção de 105,5 milhões de toneladas de CO2 equivalente, pouco mais de um quarto deste total, e os sistemas integrados lavoura-pecuária-floresta, ou agroflorestais, removeram cerca de 50 milhões de toneladas de CO2 mais. Com isso e levando em conta outros fatores, como as remoções da “floresta em pé”, em termos de emissões líquidas a situação da agropecuária fica ainda pior, e os dados do SEEG colocam o setor como o maior emissor líquido nacional em todos os anos desde 2008 até 2020, última estimativa disponível.

Mas estes números dizem respeito em grande parte ao setor agropecuário como um todo, pode-se argumentar. Assim, e quanto ao rebanho bovino, isoladamente? Mais uma vez, os números do SEEG não são nada favoráveis. Lar do maior rebanho bovino comercial do planeta (só perde em tamanho para a Índia, onde os animais, considerados sagrados, em geral não são explorados comercialmente), que chegou a cerca de 218 milhões de cabeças em 2020 – o que dá praticamente um boi, ou vaca, para cada brasileiro -, o Brasil tem só nestes animais uma importante parcela de suas emissões totais de carbono, apontou estudo de pesquisadores do Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora) de 2018. De acordo com o levantamento, foram 392 milhões de toneladas de gases de efeito estufa em 2016, 17% de todas as emissões de CO2 equivalente do país naquele ano, ou 79% de tudo o que foi emitido pelo setor de agropecuária então (sem contar a parte das mudanças no uso da terra via desmatamento). Fosse um país, o gado brasileiro sozinho teria o 17º maior impacto climático do planeta em 2016, à frente de nações como Ucrânia.

“Embora a agropecuária seja o principal motor da economia brasileira, o passivo climático deixado por ela é muito grande. E a falta de políticas públicas voltadas para o setor, que poderiam criar estímulos às boas práticas, amplia a discussão para que haja uma mudança significativa, para uma gestão de eficiência, que olhe de maneira mais assertiva e trate de soluções para as propriedades”, afirmou Ciniro Costa Junior, pesquisador da área de Clima e Cadeias Agropecuárias do Imaflora e um dos responsáveis pela análise, em comunicado quando de sua divulgação.

 

Diversionismo mal lavado

Agora que falamos do “sujo”, tratemos do “mal lavado”. Claro que evitar comer carne e outras atitudes do chamado “consumo sustentável” reduzem a pegada de carbono individual, e assim o impacto ambiental de cada pessoa, colaborando no combate às mudanças climáticas. Afinal, se todo mundo consumir como um americano, com sua ânsia por energia, alimentos e tendência ao desperdício, o chamado Dia de Sobrecarga da Terra – que marca o momento em que a demanda da Humanidade por recursos naturais e serviços ecológicos supera a capacidade do planeta se regenerar, e que vem caindo mais “cedo” a cada ano, nas últimas décadas – não esperaria nem o carnaval chegar.

vaca

Mas focar o discurso neste tipo de ação individual tem sido apontado por cada vez mais especialistas como uma tática diversionista patrocinada por grandes emissores, como a indústria dos combustíveis fósseis, justamente para desviar a atenção do público das necessárias ações coletivas que realmente podem estancar a crise climática, como uma efetiva transição energética que atingiria duramente seus negócios. Não é por menos que o próprio termo “pegada de carbono”, e a primeira “calculadora” para seu levantamento individual, são fruto de uma campanha de relações públicas contratada pela gigante petroleira British Petroleum (BP) junto à agência Ogilvy & Mather em 2004, relatou o repórter Mark Kaufman no site de notícias Mashable.

Esta estratégia de transferência de responsabilidade também não é novidade. A indústria do tabaco, pioneira na desinformação, também fez isso, com um longo trabalho em que, com ajuda de cientistas contratados, procurava apontar a personalidade e emoções dos fumantes como verdadeiras causas de seus cânceres e outras doenças, e não as milhares de substâncias tóxicas em seus produtos.

Pior, tampouco as mudanças de hábitos individuais trazem impacto suficiente para conter as mudanças climáticas. Mesmo que todos nós passássemos a ir ao trabalho de bicicleta, parássemos de comer carne e adotássemos um outro sem fim de atitudes “sustentáveis”, sem mudanças de processos nos setores agrícola e industriais, por exemplo, a queda nas emissões não seria suficiente para evitar que o aquecimento global supere o limite ideal de 1,5 grau Celsius até o fim do século.

E uma demonstração disso veio com a pandemia de COVID-19. Mesmo com todos os lockdowns, restrições à mobilidade, queda nas viagens nacionais e internacionais, recessão econômica etc, as emissões globais de carbono caíram apenas 6,4% em 2020 na comparação com 2019, com um impacto “desprezível” sobre o processo de aquecimento global. Para manter o aumento da temperatura do planeta abaixo do limite de 1,5 grau Celsius até o fim do século seriam necessárias reduções da ordem de 7,6% todo ano, de 2020 a 2030, diz o IPCC.

 

Roto e esfarrapado

 

Assustado com a reação dos ruralistas, o Bradesco nem esperou os “churrascos de protesto” para remover o vídeo das influenciadoras de suas redes sociais, o que fez ainda em 23 de dezembro, e também não sem antes se desculpar. Em uma “Carta aberta ao agronegócio brasileiro”, o bancão lembrou o apoio que sempre deu ao setor ao longo de seus 79 anos de história.

“Contudo, nos últimos dias lamentavelmente vimos uma posição descabida de influenciadores digitais em relação ao consumo de carne bovina, associadas à nossa marca. Importante dizer que tal posição não representa a visão desta casa em relação ao consumo da carne bovina. Pelo contrário. O Bradesco acredita e promove direta e indiretamente a pecuária brasileira e por conseguinte o consumo de carne bovina”, diz o texto.

E assim, com a união do sujo e o mal lavado, é o planeta que segue cada vez mais roto e esfarrapado…

 

Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência

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