Quando Terrence McCoy, correspondente do Washington Post no Rio, e sua mulher Emily pegaram COVID-19, em fevereiro, ligaram para seu médico em Washington que recomendou repouso, hidratação e um antitérmico, se tivessem febre. Repórter, porém, é bicho teimoso, e McCoy resolveu ligar para meia dúzia de médicos brasileiros que recomendaram que o casal tomasse “imediatamente” o tal kit Covid. Seis. McCoy comprou o vermífugo e a hidroxiclorocoisa, mas graças a uma conversa com o pneumologista João Pantoja, desistiu do kit. Ambos estão bem, obrigada, e McCoy, claro, escreveu matéria sobre o “milagroso” coquetel anticovid endossado pelo governo, e que tem no presidente Jair Bolsonaro seu “garoto propaganda”.
Bolsonaro, aliás, detesta indígenas, mas adora pajelança. Para quem não se lembra, nos tempos da fosfoetanolamina, “que curava todo tipo de câncer” (só que não), Bolsonaro e seu grande amigo Marco Feliciano apresentaram projeto de lei que, passando por cima da Anvisa, liberava o uso da fosfocoisa. O Congresso aprovou o absurdo, que a então presidente Dilma Rousseff sancionou, e a coisa só não foi adiante porque a Associação Médica Brasileira (AMB) recorreu ao Supremo Tribunal Federal (STF), que pôs um ponto final na sandice.
Nesta semana, o folclórico e ultracloroquinista senador Luis Carlos Heinze (Progressistas), popularizado nas redes sociais como o Senador Mostarda, “superou-se a si mesmo” atribuindo à clorocoisa e à hidroxiclorocoisa a recuperação dos 16.388.847 brasileiros que tiveram COVID-19, como sempre sem provas ou evidências. Sou louca para saber como a Excelência explica as 164.863.262 pessoas mundo afora que tiveram COVID-19 e recuperaram-se sem tomar clorocoisa.
Sessão da CPI sim, outra também, o ilustre senador lê a mesma papelada, tropeça na pronúncia dos nomes de cientistas estrangeiros que ele nem sabe quem são e, de quebra, volta a mencionar a tal ex-atriz pornô da tal pesquisa fraudada que apareceu na Lancet, à qual ele atribui o posicionamento da Organização Mundial da Saúde (OMS) contrário ao uso da cloroquina.
Senador, por favor, a OMS se baseou em 10 estudos para tomar a decisão. Vá se informar, tente entender. Se começar agora, com um pouco de sorte, dentro de um mês chega lá. Heinze levou quatro dias (96 horas) para perceber que havia sido alvo de momentos de fina ironia durante o depoimento da presidente do Instituto Questão de Ciência, Natalia Pasternak, na CPI. Esse foi o mesmo tempo que precisou para se dar conta de que Natalia não é médica, embora ela tenha dito isso várias vezes durante a audiência. A turma de senadores cloroquinistas lembra muito aqueles colegas de classe que todo mundo teve, que passam a maior parte da aula no mundo da Lua e pouco antes de bater o sinal perguntam aquilo que todo mundo já perguntou e entendeu.
Trio de três
Vamos combinar que esses dias de culto à cloroquina na CPI não foram fáceis. O Trio Parada Dura (de aguentar), formado por Heinze, Eduardo Girão (Podemos), que dia sim, outro também, reclama que a CPI é tendenciosa, e Marcos Rogério (DEM), que a esta cronista lembra muito o personagem Alberto Roberto, do saudoso humorista Chico Anísio, ficou furioso na última sexta-feira, 18, quando o relator Renan Calheiros (MDB) comandou a saída de vários senadores da sala, recusando-se a ouvir dois ilustres desconhecidos, ambos médicos cloroquinistas. Heinze, inclusive, assumiu seu lado bedel, cobrando presença dos ausentes, que considerou “desrespeito aos cientistas que deram uma verdadeira aula”. Girão e Marcos Rogério reclamaram que não estavam na GloboNews, já que a emissora se recusou a exibir o festival anticiência.
Fazia tempo que eu não usava a palavra “culto” num texto, a última delas ainda nos tempos do Café na Bancada, quando eu, Natalia, Carlos Orsi e amigos fomos a um suposto encontro “científico” sobre a fosfoetalonamina, abençoado pela presença do mito de São Carlos, Gilberto Chierice.
Para quem não se lembra, Chierice fabricava manualmente, em ambiente imundo, as tais cápsulas que prometiam curar todo tipo de câncer, desde que o paciente abandonasse quimio e radioterapia. Dizia ter curado milhares de pacientes ao longo dos anos, mas não tinha nomes, dados, exames que confirmassem que essas pessoas tiveram câncer e nem que foram curadas. A história causou comoção, e transformou o país em piada em publicações científicas internacionais.
Os dois cloroquinistas de jaleco, Ricardo Zimmermann e Francisco Cardoso Alves, este último do quadro do prestigiado Instituto de Infectologia Emílio Ribas, desfiaram números, falaram de pesquisas, mas, como quase todos cloroquinistas, também se dizem contrários a isolamento social, lockdowns e posam de coitadinhos: “Sou alvo de ataques”, disse Alves, pouco antes de acusar o pesquisador Marcus Lacerda, da FioCruz Amazônia, de assassinato de pacientes que teriam recebido “dose letal” de cloroquina em estudo coordenado por ele. Por causa de acusações irresponsáveis como essa, Lacerda recebeu ameaças de morte e teve de receber proteção da Polícia Federal. Isso é ser "alvo de ataques".
Esse estudo, publicado no Journal of American Medical Association (JAMA), foi fundamental para mostrar a ineficácia e os riscos do produto, o que despertou a ira dos Bolsonaros, Jair e Eduardo, e cloroquinistas em geral. Lacerda deve depor na CPI.
É interessante notar que Alves ficou afastado do hospital (que renega suas ideias sobre tratamento da COVID-19) por dois anos, tendo sido reintegrado no início deste ano. Afirma ter tratado mil pacientes com a clorocoisa: resta saber onde, porque no Emílio Ribas não foi.
Terra plana
Na terça, foi a vez de outro negacionista médico, Osmar Terra (Plana), uma espécie de Mãe Dinah que não acerta uma previsão e nem assim revê suas ideias. Terra, que é ortopedista, diz que isolamento social e lockdowns comprovadamente não funcionam porque “seis, sete pessoas se aglomeram em casa e isso promove o aparecimento de variantes e disseminação da doença”.
Bom, no século XIV, quando a peste negra atingia Florença, Boccaccio escreveu o Decameron, com cem histórias contadas por 7 moças e 3 rapazes isolados num castelo em Fiesole. Isolamento para evitar contágio em epidemias está longe de ser novidade. Cem anos atrás, quando houve a pandemia da Gripe Espanhola, várias cidades impuseram máscaras e isolamento, mas, como agora, afrouxaram essas medidas assim que a incidência da doença caiu. Resultado? A transmissão da doença voltou com força. Lockdown nunca vimos por aqui. No máximo uma ou outra cidade baixa medidas restritivas quando a ocupação de leitos de UTI ultrapassa os 90% e são rapidamente afrouxadas quando os índices retornam àqueles assustadores 90%.
Terra é tão, mas tão negacionista, que nega a existência do tal gabinete paralelo, que todo mundo viu, martelou a tecla de que foi o Supremo quem impediu Bolsonaro de agir no combate à pandemia – esse pessoal tem problemas sérios de intelecção de texto –, disse que nenhum país importante fechou escolas por mais de 90 dias, mentiu quando disse que, após a primeira onda, a cidade de Manaus não registrou nenhum caso de Covid, afirmou que em nenhuma outra pandemia houve variantes de vírus, falou que a “imunização natural” é mais eficaz porque decorre do contato com “vírus vivo” e foi por aí abaixo. Terra afirmou que só dá sua opinião a respeito da pandemia quando Bolsonaro pede.
Foi o veterano Tasso Jereissati quem resumiu:
Tasso Jereissati: O sr. previu que a pandemia mataria menos que H1N1?
Osmar Terra: correto.
Jereissati: Em outra oportunidade, o sr. previu 900 mortes na pandemia.
Terra: Correto.
Jereissati: O sr. falou para esquecer a vacina porque não fariam vacinas durante a pandemia?
Terra: Disse que a vacina viria só depois da pandemia.
Jereissati: O sr. afirmou que não haveria segunda onda no Amazonas. O sr. errou?
Terra: Sim.
Jereissati: O sr. disse que a pandemia acabaria entre maio e julho de 2020. O sr. errou?
Terra: Sim.
Jereissati: O sr. disse que em pandemia não haveria variante. O sr. errou também?
Terra: Sim.
Jereissati: Não está na hora, com todo respeito, em função da enorme influência que o senhor tem junto ao presidente e aos seus seguidores, de o senhor parar de dar opinião?
Osmar Terra disse que não, que vai continuar a dar sua opinião, que Bolsonaro vai repetir feito papagaio no dia seguinte.
Na expectativa de que as sessões cloroquina tenham terminado, já separei a pipoca para sexta-feira acompanhar os depoimentos de Luis Claudio Fernandes Miranda, deputado federal do DEM, e seu irmão Luis Ricardo Fernandes Miranda, funcionário concursado do Ministério da Saúde, onde responde pelas importações. Luis Ricardo sofreu pressões “anormais” para a compra da indiana Covaxin, vacina que o governo pretende adquirir com formas de pagamento no mínimo suspeitas. A dupla de irmãos foi inclusive ao Palácio da Alvorada denunciar a situação a Bolsonaro, que prometeu investigar, mas parece que cruzou os braços. O clássico follow the money se aplica. Tanto que o Planalto colocou o flexível Onyx Lorenzoni para dizer que as acusações são falsas, levianas e que Bolsonaro quer que a Polícia Federal investigue os dois irmãos (o deputado é bolsonarista-raiz), mas não a denúncia. Vou fazer um panelão de pipoca.
Ruth Helena Bellinghini é jornalista, especializada em ciências e saúde e editora-assistente da Revista Questão de Ciência. Foi bolsista do Marine Biological Lab (Mass., EUA) na área de Embriologia e Knight Fellow (2002-2003) do Massachusetts Institute of Technology (MIT), onde seguiu programas nas áreas de Genética, Bioquímica e Câncer, entre outros