"Congresso internacional" sobre COVID-19 teve ares de sociedade secreta

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4 jun 2021
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O Congresso Internacional sobre COVID-19, organizado nos dias 29 e 30 de maio de 2021 pelo Instituto Brasileiro de Perícia Médica (IBPM) e pela Prefeitura de Limeira (SP), apesar da convocação pública, tinha todo jeito de evento de sociedade secreta. Uma das coisas que caracterizava era a dupla programação. A programação pública, disponível no site e no instagram do evento, com as palestras aparentemente respeitáveis. Outra, a programação real disponível para os inscritos, que era enviada via Telegram ou WhatsApp que mostrava a composição do evento e, digamos, o proibidão.

Até para conseguir de fato acessar o evento, quem se inscreveu teve que entrar no grupo do Telegram para, aí sim, ter acesso aos links e à programação real – um acesso de duas ou três etapas. Outra coisa estranha foi a participação “clandestina” de instâncias de governo no evento. Apesar de estarem confirmadas oficialmente, tanto o Ministério da Saúde como a Prefeitura de Limeira, consultados, se recusaram a admitir ter qualquer relação com a programação do evento.

Apesar do nome “internacional”, houve apenas duas participações de fora do Brasil

Primeiro a de Philipe Parola, diretor do Serviço de Cuidados e Unidade de Pesquisa do Instituto Hospitalar Universitário Mediterrâneo de Infecção de Marselha, França. Ele apresentou o pré-print do último estudo clínico realizado por Didier Raoult et al.,  que pretende comprovar que hidroxicloroquina e azitromicina têm efeito positivo, sim, contra a COVID-19, contrariando os resultados dos estudos de qualidade realizados sobre o assunto até hoje. A professora Elizabeth Bik, uma respeitada investigadora de defeitos e fraude em pesquisa biomédica, apontou diversos problemas metodológicos desse estudo em 31 de maio, como pode ser visto aqui.

Além de Philipe, houve a participação de Peter McCullough, um professor excêntrico da Universidade de Texas que também é um dos poucos que ainda insiste no tratamento com hidroxicloroquina, em seu paper “Pathophysiological Basis and Rationale for Early Outpatient Treatment of SARS-CoV-2 (COVID-19) Infection”, publicado no American Journal of Medicine. Nesse paper, ele argumenta que Estudos Clínicos Randomizados (ECRs) não são possíveis de serem feitos durante a pandemia e por isso não podem ser critério para a utilização da medicação em tratamentos. No entanto, uma meta-análise publicada pela Cochrane analisou 14 estudos que foram possíveis realizar e não constataram benefício do fármaco. Em sua palestra no congresso, no entanto, Peter manteve o mesmo argumento do artigo, ignorando a evidência mais recente.

Com isso, se encerrou a parte “internacional” do Congresso Internacional de COVID-19.

Inicialmente, o Congresso havia anunciado em seu instagram e no seu site que haveria participação do próprio ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, às 14h de domingo. O Ministério da Saúde foi questionado a respeito dessa participação e decidiu não se manifestar. Na hora da apresentação do ministro, em seu lugar se apresentou Hélio Angotti Neto, secretário-executivo do Ministério da Saúde, que justificou a ausência do ministro e elogiou muito os palestrantes e a organização do evento. Ele falou em sua palestra das “várias ondas” da pandemia – a “quarta onda de depressão e suicídios”, por exemplo, que até agora não foi comprovada pelos estudos mais recentes –, e defendeu as ações de Mayra Pinheiro na Secretaria de Gestão e Educação em Saúde.

Fora a participação oficial do Ministério da Saúde, há que se destacar de novidade no mundo alternativo do tratamento precoce a difusão da tese por Maria Emilia Gadelha Serra, presidente da Sociedade Brasileira de Ozonioterapia, que as vacinas de COVID-19 eram testes perigosos que poderiam causar efeitos colaterais graves desde vermelhidão no local até anafilaxia, “aborto espontâneo” e “autismo” por causa da quantidade “não divulgada” de alumínio na vacina, especialmente na CoronaVac. Ora, qualquer coisa pode dar anafilaxia (reação alérgica grave), por isso qualquer bula de qualquer coisa diz que a pessoa não pode tomar um remédio se tiver sensibilidade a algum composto da fórmula. Vacinas não causam autismo. No entanto, a organização do evento e os demais palestrantes presentes concordaram, contra toda evidência disponível no mundo real, e comentaram que “de fato, a CoronaVac e as vacinas pra COVID-19 eram novas demais, experimentais e perigosas”.

As demais palestras do Congresso Internacional aconteceram mais ou menos da mesma forma: era o mundo invertido das evidências. Escolhem-se a dedo estudos observacionais ou de journals predatórios de baixa qualidade, mais a “experiência da beira do leito e da observação clínica” e  voilà: chega-se à “verdade verdadeira”, que a mídia quer esconder de você.

Só que ao contrário do mundo externo, em que se encontraria contestação e discussão dessas teses baseadas em experiências específicas e estudos selecionados a dedo, nesse espaço encontra-se confirmação e um consenso alternativo e confirmatório. Que vai pra tudo: desde a validade do tratamento precoce em gestantes para a validade do tratamento precoce em crianças e bebês, passando pela tese de Alessandro Loiola da “fraudemia”, que os números da pandemia são “exagerados”.  

Ali, no mundo paralelo, essas teses que na realidade não encontram eco e são rebatidas por evidências mais fortes, encontram acolhimento e espaço para serem reproduzidas sem questionamento, como se fossem a melhor evidência produzida até o momento.

A palestra de Roberta Lacerda, que prescreve uma verdadeira bateria de exames e medicações com baixíssimo nível de evidência, termina com essa palavra de ordem que parece uma boa síntese da subversão da prática científica que se pretendeu fazer no Congresso, com apoio tácito de algumas autoridades, da primazia da experiência individual sobre estudo sistematizado:

“Não permita que suas concepções sobre as manifestações das doenças originem-se de palavras ouvidas... ou lidas. Observe, e então, raciocine, compare e julgue. Que a palavra seja sua escrava e não sua mestra. Adquira a arte do desapego, a virtude do método e a qualidade da perfeição, mas acima de tudo a graça da humildade. Quanto maior a ignorância, maior o dogmatismo”.

Pois é um novo dogmatismo que se pretende criar aqui a partir da experiência prática e do cherry picking – seleção da evidência não pela força ou qualidade, mas pela conveniência à tese que se pretende defender – de alguns novos donos da verdade que não admitirão ser questionados, como Didier Raoult está demonstrando ser diante dos questionamentos de Elizabeth Bik, a quem está processando, conforme noticiado pela Nature.

Victor Silva é jornalista

 

 

 

Abaixo, o cartaz de promoção do evento:

 

limeira

 

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