Medicina sem ciência é um atentado à ética

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13 abr 2021
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médicos

 

Em um ritual que se repete ao redor do mundo, estudantes que se formam em medicina recitam o juramento hipocrático, cujo texto é uma adaptação de manuscritos históricos (o primeiro fragmento reconhecido data de por volta do ano 200) visando nortear a prática e ética médica. Mesmo em sua versão considerada mais próxima da original (que invoca a vários deuses da mitologia grega aos quais seria muito estranho fazer um juramento hoje), quase certamente não foi escrito pelo próprio Hipócrates.

Mas o nome não deixa de ser um justo reconhecimento ao médico, celebrado por ser um pioneiro na atribuição de causas naturais para doenças, em uma época em que essas eram quase universalmente atribuídas a superstições e vinganças divinas. Hipócrates também estudou as diversas doenças, observando-as, categorizando-as e descrevendo-as em seus aspectos clínicos de modo minucioso, algo que o ajudaria a prever a sua evolução e definir tratamentos. Assim, inaugurava-se a prática médica como profissão separada da filosofia e dos rituais religiosos, com base em evidências e observação documentada.

Embora, obviamente, garanta a obtenção de melhores resultados do que as alternativas da época, por se basear no melhor conhecimento disponível de então, a medicina hipocrática infelizmente sempre teve dificuldade de se estabelecer na prática real, garantindo uma profissão baseada em tratamento ético e que requer conhecimento técnico baseado em estudos e evidências.

Talvez o melhor exemplo seja como o mundo e a prática médica reagiu à pandemia mais letal que temos documentada na história, da peste negra, causada pela bactéria Yersinia pestis e que, estima-se, levou à morte cerca de um terço da população europeia na Idade Média. Embora tivessem acesso a documentos de prática médica dos antigos gregos, romanos e bizantinos, maiores fontes de observações e práticas com alguma base em evidências da época, a maioria dos praticantes de medicina era de monges e outros membros da igreja, e como tais acabavam tendo sua prática influenciada por sua religião e superstições típicas do cristianismo medieval.

Por isso, apesar do conhecimento observacional sugerir que “fugir cedo, fugir para longe e retornar tarde” (o equivalente medieval do distanciamento social) era eficaz para prevenir a peste negra, a prática era aplicada de forma irregular, e muitas vezes rechaçada pelos próprios médicos-monges em troca de atos que não ajudavam ou significativamente pioravam a evolução da doença, como sangrias e aplicações de cataplasmas com conteúdos bizarros, incluindo urina e fezes animais.

Os praticantes medievais de medicina claramente podem ser perdoados na sua falta de conhecimentos, pois viveram numa época em que o método científico e as formas de comunicação eram muito precários. De fato, mesmo sem a peste bubônica, a expectativa de vida média de cidadãos das cidades europeias era menor que 30 anos na época. Viver o suficiente para aprender, praticar e disseminar conhecimento médico verdadeiro, mesmo que dentro das habilidades precárias da época, era privilégio de poucos.

Profissionais de saúde do século 21 não têm essas dificuldades. A expectativa de vida hoje é mais do que o dobro, graças à medicina moderna, que é francamente apoiada por evidências científicas. O método científico para pesquisa e validação de terapias e medicamentos também está bem definido, e todo médico deveria entender os princípios dessa metodologia, aprendendo-os durante sua formação. Isso porque médicos não são cientistas, na sua maioria, mas atuam em uma profissão com base científica e, portanto, precisam entender como a ciência progride, para manterem-se atualizados com as melhores práticas para o momento, e serem capazes de empregá-las.

Infelizmente, a pandemia atual escancarou a realidade triste de que o idealismo hipocrático ainda está longe de ser realizado, pois não faltam médicos ainda a distribuir terapias mais do que comprovadamente inúteis, e potencialmente perigosas, contra COVID-19, apesar de todo conhecimento científico acumulado.

E se as atitudes de médicos individuais são graves, as do Conselho Federal de Medicina (CFM) e Ministério da Saúde, instituições nacionais que deveriam nortear e estabelecer as melhores práticas para profissionais de saúde, são muito piores, pelos seus efeitos coletivos. Essas entidades deveriam publicar regularmente protocolos de tratamento de COVID-19, disseminando informação atualizada à classe médica. Mas não o fazem, pois se omitem de emitir posições para se conservar politicamente.

Ao deixar de publicar protocolos cientificamente embasados e atualizados, acompanhando a rápida progressão do conhecimento na área, essas instituições estão deixando de exercer sua função central de regulamentar a prática médica, garantindo sua qualidade. Em vez disso, aderiram ao que equivale à superstição medieval do século 21: veladamente apoiam o uso do famigerado “kit covid” (que nada faz contra a COVID-19, conforme já é cientificamente evidente) ao declarar que a decisão deve ser do paciente e médico.

Com uma combinação inusitada e bizarra de medicamentos, em doses altas, e usados por tempos longos, o “kit covid”, além de não tratar a doença, apresenta um risco nada desprezível  para os usuários, pois a segurança das combinações de medicamentos preconizadas nunca foi efetivamente testada.

Nesse sentido, permitir o uso desses “kits” é muito diferente de receitar inocentes placebos – pode, efetivamente, vir a piorar o prognóstico dos usuários, como alguns estudos preliminares indicam. Nesse sentido, os médicos à frente do CFM estão quebrando um dos pilares centrais e mais reconhecidos do juramento hipocrático que fizeram ao se formar, aquele que dita “Aplicarei os regimes para o bem do doente, segundo o meu poder e entendimento, nunca para causar dano ou mal a alguém”. É chocante mas, em 2021, vivemos em meio a médicos e líderes na atividade clínica que praticam, e propagam, terapias lesivas.

Está na hora de o Conselho Federal de Medicina decidir se vai ser hipócrita ou hipocrático – é uma questão de ética.

Alicia Kowaltowski é professora de Bioquímica do Instituto de Química da Universidade de São Paulo

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