O horror, o horror

Artigo
5 abr 2021
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apocalypse now

 

A expressão “o horror, o horror” aparece pela primeira vez na literatura em Heart of Darkness, de Joseph Conrad, no ano de 1899. São as palavras derradeiras de Kurtz, ao término da sua agonia de morte, e o significado da mensagem ainda é hoje motivo de discussões. O personagem principal da história é Marlow, aventureiro europeu contratado como capitão de um vapor por uma empresa colonial belga. Marlow precisa resgatar Kurtz, um traficante de marfim franco-inglês que se encontra fisicamente doente e, ao que tudo indica, igualmente insano.

Para tanto, Marlow sobe o Rio Congo em seu barco, chocando-se com repetidas cenas de violência e miséria causadas, em grande parte, pelo colonialismo europeu na África. O próprio Kurtz havia tomado para si a liderança de uma tribo africana, cometendo atos bárbaros para manter o poder e o fornecimento de marfim para a empresa colonial.

Kurtz morre de causas naturais depois de resgatado, e suas palavras definitivas poderiam significar arrependimento pelas atrocidades cometidas, ou a síntese do que foi sua vida. Admite-se que “o horror, o horror” também reflita uma crítica ao imperialismo das potências europeias, à escravização das populações africanas, e à espoliação dos seus recursos naturais.

Ainda que a expressão possa ter sido empregada em obras menores nos anos seguintes, seu ressurgimento ocorreu, de fato, com o filme Apocalipse Now, dirigido por Francis Ford Copolla e lançado comercialmente no ano de 1979. Para muitos críticos, trata-se de uma das mais importantes obras da história do cinema. A ação se passa, agora, na guerra do Vietnã, e todos os personagens são militares.

Marlow corresponde ao Capitão Willard (Martin Sheen), que recebe a missão de localizar e matar o Coronel Kurtz (Marlon Brando). Kurtz era respeitado comandante das “Forças Especiais”, que aparentemente enlouqueceu e se refugiou nas selvas do Camboja, onde comanda um exército de fanáticos. A viagem rio acima de Willard torna-se cada vez mais perigosa, ensandecida e alucinante, refletindo a loucura da guerra.

Surpreendentemente, quando Willard encontra Kurtz, ficamos com a impressão de que o Coronel reúne equilíbrio mental razoável, diante das condições trágicas que viveu e onde ainda sobrevive:

I've seen horrors... horrors that you've seen. But you have no right to call me a murderer. You have a right to kill me. You have a right to do that... but you have no right to judge me. It's impossible for words to describe what is necessary to those who do not know what horror means. Horror. Horror has a face... and you must make a friend of horror. Horror and moral terror are your friends. If they are not then they are enemies to be feared. They are truly enemies.

[Vi horrores... os horrores que você viu. Mas você não tem o direito de me chamar de assassino. Você tem o direito de me matar. Tem esse direito... mas não o direito de me julgar. É impossível pôr em palavras o necessário para quem desconhece o sentido do horror. Horror. Horror tem rosto... e é preciso fazer amizade com o horror. O horror e o terror moral são seus amigos. Se não forem, então são inimigos a temer. São inimigos de verdade]

 

Willard cumpre sua missão e, mais uma vez, a citação clássica é proferida por Kurtz no momento de morte. O uso de “The horror, the horror” de Apocalipse Now também tem sido interpretado de várias maneiras. Ao final da vida, Kurtz toma consciência das atrocidades que cometeu, e se arrepende? É apenas o resumo de tudo o que ele viveu em tempos de guerra? É um momento de clarividência de um homem para quem a morte era a única forma de libertação de uma vida cheia de desilusões e desesperança? 

Quarenta e dois anos depois do lançamento de Apocalipse Now, “o horror, o horror” está de volta, mas agora, infelizmente, como parte da vida real. Está no Brasil, e é consequência direta dos efeitos da pandemia de COVID-19, amplificados por péssima gestão da crise pelas autoridades constituídas.  

Que melhor expressão senão “o horror, o horror” caracterizaria os seguintes números, computados ao final de março de 2021? [1]

 

12.753.258 casos diagnosticados, sem contar uma quantidade enorme de pacientes não reportados aos serviços de saúde.

321.886 óbitos, mas a conta, certamente, pode ser maior.

Quase 4.000 mortos ao dia.

66.868 mortos somente no mês de março de 2021.

Vale notar que os mortos agora são de todas as idades, não apenas idosos ou de grupos de risco.

Centenas de pacientes graves esperando por leitos de terapia intensiva em diversos estados da Federação, morrendo em macas sem atendimento adequado.

Episódios crescentes de falta de oxigênio para tratamento de pacientes, inclusive em estados que sempre foram modelos no atendimento da saúde pública como, por exemplo, São Paulo e Rio Grande do Sul.

Falta de sedativos para intubar doentes e mantê-los sob ventilação mecânica.

Profissionais da saúde exauridos, física e mentalmente, devido ao volume de trabalho enorme para prestar cuidados a tantos pacientes graves.

O sistema funerário sobrecarregado e começando a dar sinais de falência.

Autoridades prometendo vacinação em números estapafúrdios, impossíveis de serem verdadeiramente atingidos no prazo fantasioso.

Próceres do poder econômico procurando soluções de vacinação para os seus, fora do Sistema Único de Saúde.

Várias autoridades federais, estaduais e municipais, combatendo medidas restritivas de isolamento social e lockdown.

Autoridades e médicos preconizando tratamentos com drogas comprovadamente ineficazes, passíveis de causar gravíssimos efeitos adversos.

Pessoas se acumulando em ônibus e metrôs, para ir e vir do trabalho, se expondo a risco enorme de contaminação.

Taxas de desemprego superiores a 14%.

Pessoas obrigadas a abandonar suas casas e indo morar nas ruas.

Seres humanos dependendo de caridade para conseguir comer.

Alienados fazendo festas clandestinas e aglomerações em praias, acreditando que quarentena é feriado.

Políticos envolvidos em politicagem barata e preocupados apenas com as ambições e interesses pessoais.

 

Sejamos honestos. Cada um de nós já teve parente, amigo, ou conhecido, que morreu de COVID-19 neste último ano. Impossível não ficarmos abalados, angustiados, estressados, e mesmo revoltados, com esse estado de coisas. Com certeza, a insatisfação geral só tende a crescer.  

Sim, Willard e Kurtz são personagens da ficção. Mas, fiquem atentos leitores, pois vive entre nós um dos caracteres mais emblemáticos de Apocalipse Now, o Tenente-Coronel Bill Kilgore, vivido nas telas pelo grande Robert Duvall. Ele era o comandante do esquadrão de helicópteros que, sob o som da Cavalgada das Valquírias, destrói uma aldeia vietnamita inteira, aniquilando a população civil. É aquele que gosta de usar chapéu da cavalaria.

Kilgore também é muito conhecido pela máxima “I love the smell of napalm in the morning”.

 

[Adoro o aroma de napalm pela manhã]

 

Preciso dizer mais?

 

José Baddini-Martinez é professor adjunto de Pneumologia da Escola Paulista de Medicina (Unifesp) e professor associado aposentado da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (USP)

 

 

REFERÊNCIA

 

  1. https://especiais.g1.globo.com/bemestar/coronavirus/estados-brasil-mortes-casos-media-movel/?_ga=2.26859134.2135239002.1617239898-670982376.1616781355. Acessado em 31 de março de 2021.

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