É uma indústria bilionária, que desenvolveu uma estratégia específica para crescer e conquistar em meio à pandemia de COVID-19. Não, não se trata das "Big Pharma", nem de fabricantes de máscaras e muito menos de produtores de insumos. É a indústria anti-vaxx, que dissemina informações falsas, vende soluções mágicas – de “imunização homeopática” a compostos que supostamente reforçam o sistema imune e impedem que o incauto contraia a doença. Só no Google, Facebook, YouTube, Twitter e Instagram, essa indústria fatura US$ 1 bilhão por ano, graças a 425 sites, páginas, vídeos com cerca de 59 milhões de seguidores e ativistas – se é que se pode chamá-los assim, e não de terroristas. Não é a primeira publicação do Center for Countering Digital Hate (CCDH) a abordar o tema, mas "The Anti-Vaxx Playbook" (48 páginas, mais 6 de referências; a imagem que ilustra este artigo estiliza a capa) é a primeira a tratar do movimento anti-vaxx na pandemia.
O CCDH já havia alertado, no ano passado, que as plataformas de rede social removem apenas 1 a cada 20 postagens denunciadas por usuários por conteúdo falso. A instituição afirma que isso ocorre porque a “análise” das denúncias é feita por algoritmos, e seria urgente ter seres humanos trabalhando 24 horas para eliminar das mídias sociais o perigoso ideário dos anti-vaxxers. Para os anti-vaxxers, a pandemia é uma oportunidade e tanto para ampliar sua audiência e plantar dúvidas permanentes sobre quaisquer vacinas e vacinações. E está funcionando: de 2019 para cá, 147 das principais contas anti-vaxx ganharam 10 milhões de seguidores, e todos eles podem ser treinados em cursos e palestras online, vídeos no YouTube e webinars para identificar e converter pessoas que têm dúvidas (legítimas) sobre vacinas para sua “causa”. O maior temor desses grupos é serem banidos dessas mídias sociais, e como as plataformas de uso mais comum estão (finalmente) apertando o cerco contra a propaganda antivacinas e conspiracionistas, eles começam a migrar para outras menos populares, como Parler, Gab, BitChute.
Os principais centros anti-vaxx continuam a ser os Estados Unidos, seguidos pelo Reino Unido, mas mesmo no Brasil – que aparece em todas as pesquisas internacionais como o país com maior parcela da população disposta se vacinar (80%, de preferência depressa...) – esse ideário, com toda estratégia planejada desses grupos, circula não apenas nas redes sociais, mas sai da boca do presidente Jair Messias Bolsonaro, que agora deu de reclamar do Facebook, que não permitiria a publicação de alguns de seus posts. De acordo com CCDH, a estratégia anti-vaxx para a pandemia se assenta sobre três pilares: A COVID-19 não é perigosa (“É só uma gripezinha”), as vacinas são perigosas (“Não têm comprovação científica” e se você toma pode virar jacaré, os homens ficam com voz fina e cresce barba nas mulheres...), e médicos e cientistas não são confiáveis, a não ser, claro, aqueles que rezam pela cartilha cloroquinista presidencial. Esses três pontos de propaganda são o oposto da verdade: COVID-19 é grave e pode matar, vacinas são seguras e eficazes e uma das maiores invenções da Humanidade e cientistas estudam para entender melhor o mundo, inclusive o mundo pandêmico. Ponto.
A estratégia anti-vaxx inclui várias formas de atingir indecisos, aquelas pessoas que têm dúvidas legítimas sobre as vacinas contra a COVID-19, como sobre a rapidez com que vacinas foram desenvolvidas e testadas. As respostas oferecidas, claro, contrariam as evidências e caem no terreno da invencionice descarada, com alegações de que participantes dos testes morreram aos montes (e a mídia esconde, claro), e muitos mais estão morrendo depois de tomar a vacina (essa é uma falsidade comum nas redes brasileiras), que os fabricantes sabem que os efeitos adversos vão ser contados aos milhares, que são tóxicas, anti-éticas, alteram o DNA, causam esterilidade nas mulheres, contêm substâncias químicas que causam câncer e que destroem o sistema imunológico. Defensores de vacinas não são confiáveis porque têm lucro com elas e não podem ser processados por recomendá-las, políticos recebem muita verba de campanha das Big Pharma, e, claro, são financiadas por bilionários como Bill Gates e George Soros (não há teoria conspiratória sem os dois).
Na estratégia anti-vaxx, há um ponto em que as teorias conspiratórias se encontram com os chamados “empresários da saúde alternativa”, aqueles sujeitos que vendem de tudo na internet, compostos que prometem fortalecer sistema imune, ervas, chás literatura “natureba” que promete curas simples para doenças complexas, entre elas dietas que curam câncer, diabetes, todo tipo de doença autoimune, depressão, ansiedade, caspa, unha encravada e espinhela caída, por módica quantia. Mesmo esse pessoal não indica clorocoisa, hidroxiclorocoisa e ivermecticoisa, que por aqui viraram “política de Estado”: curiosamente, Bolsonaro abre a boca para dizer que vacinas não têm comprovação científica – e por isso não devem ser usadas -, mas promove medicamentos que comprovadamente não funcionam contra a COVID-19.
Não importa se as narrativas são contraditórias, o importante é plantar a semente da dúvida no público e direcioná-lo para sites quer vão lucrar com ela. De acordo com o CCDH, 40% das páginas anti-vaxx estão associadas a “empresários” que vendem curas naturais e outros 40% a conspiracionistas, inclusive do QAnon, aquele pessoal que acredita que o mundo é governado por pedófilos canibais e só pode ser salvo por Donald Trump. A vacina, assim, teria sido criada ou para matar você ou para controlar você graças a um chip que acompanha todos os seus movimentos (jogar fora o celular, que faz o mesmo, ninguém joga...) para impor uma sociedade totalitária.
Para converter o incauto, ativistas anti-vaxx – gente que faz isso em tempo integral – são treinados para identificar pessoas que hesitam em tomar vacina, testar sua receptividade a mais conteúdo anti-vaxx e não perder tempo debatendo com quem já está convencido de que vacinas são boas e seguras. “Empresários” usam o mesmo discurso, travestido de ciência, para vender sua “saúde alternativa”, e conspiracionistas incluíram o tema vacina em suas teorias, ampliando o alcance desse discurso. Completam a taxonomia do universo antivacinas as “comunidades”, pessoas convertidas que formam “grupos de discussão” sobre o tema.
A outra sacada dos anti-vaxxers – que os pró-vaxxers ainda não praticam – é desenvolver diferentes narrativas para diferentes públicos. Quando se trata de conquistar pais e mães, discurso e imagem apelam aos relatos de crianças que tiveram problemas com vacinas, apelos aos instintos protetores dos pais, fotos de crianças aflitas diante de seringa e agulha. No caso da COVID-19, afirmam que crianças – na verdade, quem tem menos de 20 anos – não correm risco com a COVID-19 e nem morrem da doença, então para quê “correr o risco” de vaciná-las?
Essa narrativa aparece também no Brasil, mas perde feio para enorme número de pais e mães que não pretendem mandar seus filhos à escola enquanto não forem vacinados. Aqui também, quando todos os argumentos anti-vaxx falham, apela-se para o “vacinas são feitas com fetos abortados, milhares deles”. A verdade é que algumas vacinas (não todas) foram desenvolvidas com o auxílio de linhagens de células de laboratório originadas de dois fetos abortados quase 60 anos atrás. Até o Papa Francisco já disse que esse fato não torna a vacinação imoral.
Há narrativas também focadas em comunidades étnicas, notadamente para afro-americanos, reforçando a lembrança de casos de abuso. No início da pandemia, anti-vaxxers chegaram a afirmar que a COVID-19 não afetaria a população negra, mas o que se viu foi o enorme impacto da doença nas populações mais pobres, sem acesso ao sistema de saúde. Pesquisas indicam que hoje 74% dos afro-americanos confiam nos cientistas. Kizzmekia Corbett, pesquisadora negra envolvida no desenvolvimento da vacina da Moderna, tem ido às redes sociais para defender a vacinação, tratando justamente as dúvidas e temores das comunidades negras.
O mesmo fizeram cem imãs do Reino Unido, que abriram as portas de suas mesquitas para que médicos e cientistas muçulmanos conversassem com a comunidade sore suas dúvidas. Os budistas foram mais longe e, em Londres, um de seus templos foi transformado em centro de vacinação.
O CCDH faz também uma série de recomendações para conter a estratégia anti-vaxx, como não dar destaque a essas ideias nas redes sociais, mesmo que seja para criticar, porque isso as expõe para o público; lembrar sempre que a maioria das pessoas confia nas vacinas, e que postar que há pessoas contra as vacinas faz com que parte do público imagine que deve haver algum bom motivo; entrar em contato privadamente com amigos ou familiares que postam esse tipo de coisa, postar material pró-vacina e postar que você foi vacinado. Para profissionais de saúde, divulgar os casos de pessoas que adoeceram porque não tomaram vacina; humanizar os cientistas e seu trabalho – e a mídia brasileira tem tornado vários dele rostos e vozes conhecidos –, promover vídeos e memes sobre vacinas e vacinados e denunciar as estratégias anti-vaxx. O CCDH defende a responsabilização criminal de entidades e pessoas que divulguem informações falsas sobre saúde e vacinação, e recomenda ainda que influenciadores digitais, artistas, atletas façam o possível para passar a mensagem a favor das vacinas.
A maior crítica da organização, porém, se concentra nas plataformas da internet que permitem que informações falsas e, portanto, perigosas, sejam mantidas impunemente nas redes. Entre as sugestões, remover das redes anti-vaxxers famosos, parar de financiar essas páginas e sites por meio de publicidade e promover informação de qualidade.
Ruth Helena Bellinghini é jornalista, especializada em ciências e saúde e editora-assistente da Revista Questão de Ciência. Foi bolsista do Marine Biological Lab (Mass., EUA) na área de Embriologia e Knight Fellow (2002-2003) do Massachusetts Institute of Technology (MIT), onde seguiu programas nas áreas de Genética, Bioquímica e Câncer, entre outros