A fase inicial da vacinação contra a COVID-19 nos Estados Unidos – focada em profissionais da linha de frente e idosos em casas de repouso – tem sido, no mínimo, irregular, por causa da inexistência de uma estratégia federal, com estados, hospitais, casas de repouso e farmácias decidindo, por conta própria, quando e quem deve ser vacinado.
No começo de janeiro, logo após concluir a vacinação de parte do pessoal da linha de frente, o Jupiter Medical Center, do Sul da Flórida, percebeu que havia 40 preciosas doses de vacinas contra a COVID-19 sobrando. Por isso, resolveram oferecer essas doses para diretores e seus cônjuges com mais de 65 anos. A decisão provocou protestos dos funcionários ainda não vacinados, especialmente os que trabalham nas unidades de urgência ou que acreditam que o hospital tentava agradar diretores ricos em vez de garantir a segurança de seus funcionários.
O hospital recebeu mil doses da vacina da Moderna dois dias antes do Natal, menos da metade do que tinha pedido ao estado para vacinar seus funcionários. Autoridades tinham dado prioridade à entrega das vacinas para profissionais da linha de frente que tinham pedido os imunizantes, marcando a vacinação para a véspera de Natal ou fins de semana dos feriados de fim de ano.
Patti Patrick, uma das vice-presidentes do hospital, diz que a instituição agiu corretamente ao oferecer a vacina, que tem curta validade depois que os frascos são abertos. Nem ela nem ninguém mais do pessoal administrativo foi incluído nessa primeira rodada de vacinação. “Foi uma saída simples para não perder essas vacinas antes que estragassem”, disse, acrescentando que todo pessoal da linha de frente, incluindo profissionais das áreas de urgência, tiveram a oportunidade de tomar a vacina.
O Jupiter não é o único hospital do país a ser questionado sobre a maneira como está lidando com as vacinas. Essa fase inicial, voltada para profissionais da linha de frente e idosos institucionalizados, tem sido no mínimo desigual, por causa da falta de uma estratégia federal, o que deixa a decisão nas mãos de hospitais e farmácias.
Em alguns hospitais, administradores e funcionários que não têm nenhum contato com pacientes e nem correm risco de pegar a COVID-19 no local de trabalho vêm sendo vacinados, enquanto pacientes e profissionais da linha de frente não são imunizados. E isso inclui pessoal que está trabalhando em esquema de home office, especialmente em hospitais que resolveram priorizar faixas etárias em vez de risco de infecção. Embora agências de saúde federais e estaduais tenham estabelecido normas para priorizar grupos de risco, na prática o que mais importa é quem controla as vacinas e onde vão ser distribuídas.
O Stanford Health Care, da Califórnia, foi obrigado a rever sua lista de prioridades depois que jovens médicos residentes protestaram por terem sido “injustamente ignorados”, enquanto professores que raramente viam pacientes tinham sido vacinados. O hospital tinha priorizado os profissionais mais velhos.
Congressistas pediram uma investigação depois de ler reportagens na imprensa mostrando que o MorseLife Health System, uma organização sem fins lucrativos que administra instituições para idosos em West Palm Beach, Flórida, vacinou doadores e sócios de um country club que contribuem com milhares de dólares para a empresa.
Pelo menos três outros sistemas hospitalares do Sul da Flórida – Jackson Health, Mount Sinai Medical Center e Baptist Health – ofereceram vacinas a doadores antes de oferecê-las ao público em geral, enquanto imunizava seus profissionais da linha de frente, de acordo com o Miami Herald. Como o Jupiter, esses hospitais afirmam que só ofereceram vacinas para pessoas com mais de 65 anos, como recomendado pelas autoridades de saúde do estado.
Um conselho consultivo do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) recomendou que hospitais e casas de repouso tivessem prioridade na obtenção de vacinas contra a COVID-19, porque profissionais de saúde e idosos institucionalizados são grupos de alto risco. A recomendação foi seguida pela maioria dos estados americanos, mas, em muitos casos, instituições receberam demanda de funcionários, alguns dos quais desconfiam da vacina, menor do que se esperava. Além disso, a entrega das prometidas vacinas é simplesmente imprevisível. Embora o governo federal tenha aprovado a primeira vacina contra a COVID-19 no dia 14 de dezembro, alguns hospitais só receberam o imunizante depois do Natal.
Foi o caso do Hendry Regional Medical Center, de Clewiston, Flórida, que recebeu 300 doses do estado. O hospital vacinou 30 dos seus 285 funcionários entre 28 de dezembro e 5 de janeiro, segundo seu chefe executivo R. D. Williams. Alguns funcionários preferiram esperar até depois do Ano Novo, preocupados com possíveis efeitos colaterais. Normalmente, a vacina causa dor no local da aplicação e às vezes, febre, letargia ou dor de cabeça, reações que não duram mais que poucos dias.
“Estou feliz de ver como as coisas estão indo”, disse Williams. “Sei que muitos dos nossos funcionários querem ser vacinados, mas não vejo isso como uma panaceia que eles devem tomar hoje mesmo”, acrescenta, lembrando que profissionais da saúde já têm máscaras e luvas para se proteger.
O hospital também está tentando coordenar as agendas de vacinação de forma que dez pessoas de cada vez tomem a vacina, para que não se desperdice nenhuma dose depois que os frascos são abertos, já que elas só podem ser usadas por poucas horas depois de descongeladas.
O Howard University Hospital, em Washington, recebeu 3 mil doses no dia 14 de dezembro, mas até o dia 6 de janeiro tinha vacinado cerca de 900 funcionários. O sucesso da vacinação tem sido limitado por dois fatores principais: a relutância dos profissionais da saúde e a falta de pessoal treinado para aplicar a vacina, de acordo com a presidente da instituição, Anita Jenkins. “Temos de administrar um hospital que continua atendendo pacientes com ataques cardíacos e outras doenças, e não temos funcionários disponíveis para as clínicas de vacinação”, justifica.
Enquanto alguns hospitais oferecem a vacina apenas para profissionais da linha de frente que têm contato com pacientes, o Howard disponibiliza o imunizante para todos, inclusive pessoal de comunicação e relações públicas, equipe da lanchonete e gestores. Jenkins defende a decisão porque, segundo ela, essa é a melhor forma de proteger o hospital inteiro, já que mesmo o pessoal de informática, que não tem contato com pacientes, pode ter contato com médicos e enfermeiros que têm. “Quando se trabalha em hospital, quase todo mundo tem contato com pacientes andando corredor”, afirma.
No Eisenhower Health, um hospital sem fins lucrativos de Rancho Mirage, na Califórnia, 2.300 dos 5.000 funcionários foram vacinados. “Nosso maior desafio é administrar a explosão do número de pacientes e a demanda por profissionais nas áreas críticas de atendimento, e ao mesmo tempo garantir que tenhamos pessoal para os postos de vacinação”, diz a porta-voz Lee Rice.
Arthur Caplan, bioeticista do Langone Medical Center da New York University, de Nova York, afirma que hospitais não deveriam vacinar seus diretores antes dos trabalhadores, a não ser que tenham um papel decisivo na administração do hospital. “Na minha opinião, isso é furar fila para agradar doadores em potencial”, diz, reconhecendo que os sistemas hospitalares de vacinação nem sempre são racionais e justos. As vacinas devem ser administradas o mais depressa possível, diz Caplan, mas os hospitais só podem oferecê-las às pessoas com quem têm alguma conexão.
Caplan foi vacinado em um ambulatório da universidade há poucos dias, embora o seu médico ainda não tenho sido imunizado, porque a vacina ainda não chegou a sua clínica.
Phil Galewitz é correspondente sênior da Kaiser Health News. A reportagem original pode ser lida aqui.