Nova tentativa de decifrar o livro mais misterioso do mundo

Apocalipse Now
20 abr 2024
Autor
trecho do Manuscrito Voynich

 

O livro mais misterioso da História, possivelmente escrito num código secreto ou numa língua desconhecida, texto que permanece indecifrável pelo menos desde o século 17, talvez seja um manual secreto de contracepção e métodos abortivos, produzido para ajudar algum nobre europeu a controlar a fertilidade de suas amantes, cifrado para evitar que um conhecimento tão “perigoso” e “pecaminoso” ficasse ao alcance do público em geral e, mais especificamente, das mulheres.

Esta é, em resumo, a hipótese mais recente levantada na literatura científica sobre a natureza do Manuscrito Voynich, atualmente abrigado na Biblioteca Beinecke de Manuscritos e Livros Raros da Universidade Yale, onde está catalogado como Beinecke MS 408. Em 2016, a Biblioteca publicou um volume de ensaios sobre a obra, incluindo a reprodução fotográfica, a cores e em boa definição, de cada uma das páginas do manuscrito. As páginas foram digitalizadas e estão disponíveis online.

O manuscrito – mais de 200 páginas de pergaminho, cobertas de ilustrações coloridas e de uma escrita em caracteres desconhecidos – foi datado, por radiocarbono, do início do século 15. No entanto, o livro aparece na história pela primeira vez apenas no século 17, quando é mencionado na correspondência de importantes eruditos da época. O nome pelo qual é mais conhecido hoje, “Voynich”, vem do negociante de livros raros Wilfrid Voynich, que o adquiriu da Companhia de Jesus – a ordem religiosa dos jesuítas – em 1912. Após a morte de Voynich em 1930, o manuscrito trocou de mãos algumas vezes antes de ser doado a Yale.

 

Código ou fraude?

Não só a escrita é misteriosa, mas as ilustrações também: tentativas de botânicos de identificar as plantas representadas – o livro tem toda uma seção aparentemente dedicada ao uso medicinal (ou mágico) de vegetais – jamais produziram resultados claros e livres de controvérsia. Outras ilustrações são de natureza astrológica e ainda outras, as “rosáceas”, são círculos decorados com motivos que lembram corpos celestes (o Sol, a Lua, estrelas) ou formas de contorno mais orgânico.

Essas rosáceas “orgânicas” e o fato de que a figura que mais se repete ao longo do manuscrito é o corpo feminino nu são parte importante do argumento, apresentado em março no periódico Social History of Medicine, de que o Voynich é um manual secreto de ginecologia. Observação da forma como as ilustrações se distribuem ao longo da obra levou estudiosos a dividir o manuscrito em cinco “capítulos”: Herbal, Astrológico, Biológico, Farmacológico e Receituário. Análise da forma como os caracteres do “voynichês” – como a “língua” do manuscrito costuma ser chamada – são desenhados em diferentes partes do livro indica que cinco escribas trabalharam na composição do texto.

Wilfrid Voynich sempre se referiu ao manuscrito como um “código”, e acreditava que seu autor era o frade franciscano do século 13 Roger Bacon, às vezes citado como um precursor da revolução científica da Renascença. A datação radiológica do manuscrito torna essa hipótese insustentável, no entanto. Já a ideia de que o texto representa uma cifra – ou seja, material escrito originalmente numa língua natural e depois obscurecido por algum processo engenhoso – ainda sobrevive, mas também enfrenta desafios. O Voynich certamente não é uma cifra de substituição simples (onde cada letra do alfabeto original é apenas trocada por um símbolo diferente), ao menos não uma aplicada a uma língua europeia: não contém nenhuma palavra com apenas duas letras, e nenhuma com mais de dez.

Um dos maiores criptologistas do século 20, William F. Friedman – um dos fundadores da Agência Nacional de Segurança (NSA) dos Estados Unidos – debruçou-se sobre o Manuscrito Voynich durante anos, para no fim concluir que o texto não representa uma cifra, e propor a hipótese de que se trata de um trabalho escrito numa língua artificial, como o esperanto (ou o klingon, ou o élfico).

No início do século, alguns linguistas levantaram a interessantíssima possibilidade de que o texto não teria sentido nenhum – seria uma fraude, gerada pela combinação mais ou menos aleatória de blocos de caracteres que fariam as vezes de radicais, prefixos e sufixos; ou então, que seria uma espécie de criação livre e sem sentido, como o “falar em línguas” que ocorre em certos contextos religiosos.

Essas possibilidades foram contestadas com base em certas regularidades estatísticas do material, que se assemelhariam demais às encontradas em textos que expressam mensagens coerentes. Mas um estudo recente, em que uma inteligência artificial foi treinada para distinguir textos reais de sequências deliberadamente sem sentido produzidas por voluntários humanos, mostrou que pelo menos algumas das regularidades estatísticas usadas para defender a hipótese de que o manuscrito contém texto real também aparecem quando se pede que pessoas escrevam bobagens ao acaso. A mente humana nunca é totalmente aleatória, afinal.

 

Hipótese contraceptiva

A nova hipótese, de que o Manuscrito Voynich esconde “segredos femininos” relacionados ao sexo, parte de uma análise não do texto, mas das ilustrações e do contexto histórico. Os autores chamam atenção para a preponderância de desenhos de mulheres nuas no manuscrito, muitas delas apontando com as mãos ou objetos para a própria genitália. Esses desenhos e seu significado sexual implícito teriam sido “minimizados ou desprezados” pelas tentativas anteriores de dar sentido ao livro.

A parte mais fascinante do artigo é a que descreve a dinâmica social e cultural em torno dos chamados “segredos femininos” do sexo e da reprodução na Idade Média, principalmente no mundo germânico do início do século 15.

Médicos, magos e alquimistas (a distinção entre os domínios não era muito clara na época) especulavam furiosamente sobre o assunto, numa era pré-científica onde as fontes de “conhecimento” mais respeitadas e reconhecidas eram a palavra dos autores clássicos, a superstição e o folclore. A especulação era causada por curiosidade pessoal, e também por encomenda de patronos na nobreza, preocupados em evitar as consequências de suas aventuras extraconjugais (ou interessados em torná-las mais estimulantes). Esse furor especulativo vinha acompanhado de pudor – e do medo de que o material subversivo viesse a se tornar público e, principalmente, chegasse às mulheres. Escrevem os autores:

“Pode-se encontrar autores de textos médicos, especialmente nas regiões germânicas, expressando o desejo de impedir o acesso de crianças, imaturos, prostitutas, plebeus e das próprias mulheres aos segredos femininos (...) apresentamos um grande conjunto de evidências de que os medos multifacetados e os horrores sentidos pelos médicos do sexo masculino que trabalhavam com os chamados segredos femininos levaram a inúmeros episódios de autocensura, apagamento e criptografia (...) Nossa base de evidências, nova e significativa, situa, portanto, o Manuscrito Voynich firmemente dentro de um conjunto mais amplo de normas culturais”.

A ideia de que o manuscrito seria um guia criptografado sobre o que se passava na época por “conhecimento” a respeito da sexualidade feminina (incluindo a noção de que o útero seria dividido em sete câmaras, três para gestar meninos, três para gestar meninas e uma sétima para bebês intersexo) é intrigante.

O artigo faz um bom trabalho em construir um caso de plausibilidade contextual, dada a cultura e os hábitos do tempo, e é um lembrete de como são profundas as raízes do hábito e do desejo de certas autoridades de sequestrar e controlar os direitos reprodutivos da população em geral, e das mulheres, em particular (no Brasil, há um caso em andamento no STF sobre esterilizações voluntárias, além do crescente cerco político-ideológico ao aborto legal).

O problema, claro, é que o Voynich, com seu texto indecifrável e ilustrações enigmáticas, funciona como uma espécie de baralho de tarot ou mapa astral, em que cada leitor é livre para projetar os significados que mais deseja – ou teme. Os autores do artigo em Social History of Medicine reconhecem o risco de cair no viés de confirmação, mas logo em seguida se dedicam a interpretar uma das rosáceas do manuscrito como um esquema do útero.

É extremamente provável que o Manuscrito Voynich jamais venha a ser decifrado e nem sequer receba uma interpretação que se torne consensual. Minha hipótese favorita é a da fraude, mais por uma questão de gosto pessoal do que qualquer outra coisa: a imagem de meia dúzia de monges ou escribas trabalhando para legar à história um quebra-cabeças sem solução é boa demais.

Descartando, com Friedman, a hipótese de criptograma, a ideia que se trata de um texto numa língua natural ou inventada esbarra no obstáculo de que não existe nenhum outro texto conhecido nessa mesma suposta língua. A noção de um idioma que só é usado em forma escrita uma única vez e nunca mais não é inconcebível, mas é certamente mais bizarra que as de criação espontânea ou fraude.

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)

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