A Teoria da Relatividade vai muito bem, obrigado

Artigo
27 dez 2020
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Albert Einstein

 

Uma das minhas primeiras ocupações como (aspirante a) físico foi na monitoria de Física Geral, aberta a todos os alunos da universidade que tivessem esse pacote de disciplinas em suas grades curriculares e precisassem de ajuda com exercícios ou conceitos da área.

Certo dia, entrou na sala um senhor que procurava pelo “Departamento de Gravitação”. Informamos que esse setor não existia, e, após alguma conversa, acabou presenteando meu colega monitor com um livro que, basicamente, alegava que a Teoria da Gravidade de Newton estava errada, bem como todo o eletromagnetismo na forma como o conhecemos.

Esse foi meu primeiro contato com um esforço formal, através de um livro publicado às custas do autor, de alguém que desejava ir contra a maré da ciência bem estabelecida do momento. Investir o próprio dinheiro para propagar a sua teoria revolucionária seria louvável, não fosse o problema de que todo o livro se baseava em afirmações fantasiosas, sem qualquer evidência verificável ou previsão testável. O livro acabou servindo apenas para entretenimento dos monitores quando não havia alunos para atender.

Mal sabia eu, à época, que esse seria apenas o primeiro negacionista da ciência com quem eu esbarraria ao longo do tempo. Desde lá, já conheci os que negam o pouso na Lua, o formato redondo da Terra, o aquecimento global, e, neste fim de ano, a Teoria da Relatividade: refiro-me à notícia de que um eletrotécnico, no Tocantins, resolveu registrar um Boletim de Ocorrência (BO) contra ninguém menos do que Albert Einstein. Na cópia do documento (veja aqui), ele denuncia o físico por “delito de perturbação mundial”, causada por “incontáveis erros e transtornos na evolução e no desenvolvimento científico do planeta”.

É verdade que modificar a ciência é uma tarefa complexa. Existem, inclusive, áreas de estudo, como a Epistemologia e a Filosofia da Ciência, que investigam justamente a forma como as teorias científicas evoluem. Embora não seja possível tirar uma resposta única, consensual, sobre esse processo, sabemos que a evolução científica passa por muito debate, congressos, tentativas de verificação ou reprodução de evidências ou de previsões teóricas. Os novos achados da ciência, e também as contestações, ocorrem principalmente por meio de boas revistas científicas, que submetem o material recebido para análise e revisão de outros cientistas da mesma área. Mas, se é possível tirar algum consenso do processo, imagino que seja aceitar que os trâmites da ciência não ocorrem por meio do registro de um BO.

Por falar em evidências, o que é que temos disponível para corroborar as ideias de Einstein? Ou seja, como sabemos que, até onde fomos capazes de checar, ele está correto? Vou elencar algumas afirmações das Teorias da Relatividade (sim, no plural, mas não vamos entrar nesse mérito aqui, apenas cabe informar que existe a Teoria da Relatividade Especial e a Teoria da Relatividade Geral) e mostrar como temos evidências convincentes de que estão corretas.

A “marcha temporal” depende da velocidade com que o observador se move e do valor da aceleração da gravidade do local onde o observador está;

 

Talvez este seja o resultado mais interessante, curioso e fascinante da Relatividade. Propõe que a passagem do tempo não é absoluta, mas depende das diferentes condições a que diferentes observadores veem-se submetidos.

Por incrível que pareça, temos evidências experimentais que confirmam essas ideias. Vou citar apenas uma: o funcionamento do Sistema de Posicionamento Global (GPS). Para que o sistema tenha uma operação adequada, com capacidade de determinar a posição do receptor, na superfície da Terra, com precisão suficiente, os efeitos relativísticos precisam ser levados em consideração. Isso porque os satélites envolvidos no processo orbitam a Terra sob condições de aceleração da gravidade e velocidade diferentes daquelas que vivenciamos aqui embaixo. Não fosse por essas correções, a incerteza na determinação da posição do receptor não permitiria, por exemplo, guiar um carro, pelo mapa virtual da cidade, baseando-se nas indicações do GPS.

Mesmo aceitando que o tempo não passe de maneira absoluta, ainda temos um problema para resolver: por que temos a impressão, aqui na superfície da Terra, de que a passagem do tempo é uniforme, não importa se estamos parados ou viajando a centenas de quilômetros por hora? Quando um voo chega às duas da tarde, são duas da tarde tanto para os passageiros a bordo quanto para quem está sentado no aeroporto. Isso ocorre porque o efeito somente se torna perceptível, em escala humana, quando não estamos lidando com sistemas que dependem de altíssima precisão (como o GPS), nas ocasiões em que esses observadores se deslocam a velocidades próximas à da luz ou passam por regiões com diferenças significativas no campo gravitacional, como a vizinhança de estrelas muito massivas. Como nada disso ocorre para as pessoas em suas vidas diárias, os efeitos relativísticos não são suficientes para inspirar qualquer grande romance de ficção científica.

 

Existe uma equivalência entre massa e energia;

Hoje sabemos que energia e massa são quantidades que podem ser convertidas de uma para outra. O processo chamado de aniquilação é um exemplo que não deixa dúvidas: quando um elétron, por exemplo, encontra sua antipartícula, que é o pósitron, essas duas partículas deixam de existir no sistema, liberando uma quantidade de energia equivalente à soma das massas (vezes a velocidade da luz ao quadrado...).

Alguém já observou isso acontecer? Curiosamente, sim. O exame de diagnóstico por imagem chamado de PET Scan, que é traduzido como Tomografia por Emissão de Pósitrons, baseia-se justamente nesse fenômeno. Administra-se no paciente uma substância que emite pósitrons. Essas partículas encontrarão elétrons na vizinhança e serão aniquiladas, liberando energia que será captada pelo aparelho para a construção da imagem de uso médico.

Para aqueles que ainda não estão satisfeitos, já estudamos uma gama enorme de reações nucleares que nos permitem verificar que a conversão de massa em energia realmente ocorre. As usinas de energia nuclear abastecem cidades com energia elétrica vinda de processos que ocorrem na estrutura da matéria e que envolvem perda de massa e liberação de energia. As próprias estrelas, como o Sol, têm também na perda de massa, em reações que ocorrem no seu interior, a fonte de energia que as faz brilhar.

Para ser justo, nem tudo são flores nas aplicações tecnológicas da Relatividade: a mesma física que é capaz de fundamentar uma utilização pacífica da energia nuclear, como nas usinas, também permitiu que se desenvolvessem as tecnologias das bombas atômicas lançadas sobre o Japão no fim da Segunda Guerra Mundial. Perceba, porém, que mesmo uma aplicação bélica destrutiva, esta sim digna de um longo BO, é ainda capaz de mostrar como as ideias de Einstein realmente funcionam.

 

O espaço-tempo pode ser deformado significativamente nas proximidades de objetos muito massivos;

Uma forma de tentar visualizar esse processo é recorrer à analogia clássica de uma âncora abandonada em cima de um colchão. A âncora faz o papel, por exemplo, do Sol, deformando o espaço-tempo no seu entorno, que aqui é representado pelo colchão. Essa é a maneira atual de entendermos o funcionamento da gravidade: massas se atraem mutuamente graças à curvatura que causam no espaço-tempo.

Mas como sabemos que isso é assim? O truque é seguir o caminho da luz, literalmente: Einstein previu que feixes luminosos sofreriam desvios ao passar próximos dessas regiões com espaço-tempo curvado. A previsão teórica foi confrontada com dados experimentais durante um eclipse solar total, em 1919. Curiosamente, e poucos brasileiros sabem disso (infelizmente), a expedição britânica enviada para observar o fenômeno no Brasil, mais especificamente em Sobral (CE), foi que conseguiu fazer as medidas que, pela primeira vez, corroboraram as ideias de Einstein.

Mesmo em tempos recentes, décadas após a morte de Einstein, a Teoria da Relatividade Geral ainda é muito bem sucedida para permitir que entendamos fenômenos só observados nos últimos anos, como as ondas gravitacionais (anunciadas em 2016) e a primeira imagem de um buraco negro (publicada em 2019). As ideias de Einstein vão bem, obrigado.

A ciência não é dogmática, nem absoluta. Sendo assim, mesmo com todo o sucesso das ideias relativísticas apresentadas por Einstein, ainda temos muitas questões para serem investigadas e solucionadas. O trabalho não acabou. Não há dúvidas de que é preciso estar aberto ao novo, avaliar novas ideias e confrontá-las com evidências. O que faz com que os físicos não deem atenção a mais um negacionista que ora se apresenta não é qualquer desgosto de ordem pessoal, mas apenas o fato de que as evidências que conhecemos, como vimos, depõem a favor de Einstein.

Marcelo Girardi Schappo é físico, com doutorado na área pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente, é professor do Instituto Federal de Santa Catarina, participa de projeto de pesquisa envolvendo interação da radiação com a matéria e coordena projeto de extensão voltado à divulgação científica de temas de física moderna e astronomia

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