Alguns consumidores acreditam que pesquisas científicas, por definição, são confiáveis, e pacientes estão ainda mais inclinados a cometer este erro. Quando leem ou ouvem que “PESQUISAS MOSTRARAM…”, ou que “UM ESTUDO RECENTE DEMONSTROU…”, geralmente confiam nas declarações que se seguem. Mas esta confiança em pesquisas e pesquisadores é justificada? Nos 25 anos que tenho estado envolvido com a “assim chamada medicina alternativa” [NT: SCAM, na sigla em inglês, acrônimo que pode ser traduzido como “golpe”, “enganação”], encontrei inúmeras instâncias que me fizeram duvidar. Neste texto, vou discutir, rapidamente, algumas das muitas maneiras em que consumidores podem ser enganados por evidências aparentemente sólidas (para uma explicação do que é ou não é evidência, veja aqui).
Ausência de evidência
Acabo de ler um livro de um naturopata alemão que é inteiramente dedicada à SCAM. Nele, o autor faz centenas de declarações, que apresenta como fatos baseados em evidências. Para muitas pessoas leigas ou consumidores, isto vai soar convincente, tenho certeza. Mas as únicas evidências apresentadas vêm de outros livros que também não trazem qualquer base para suas alegações. Esta técnica popular, de fazer alegações infundadas, permite que o autor faça afirmações sem qualquer tipo de verificação e comprovação. Uma pessoa leiga normalmente é incapaz, ou está pouco disposta, a distinguir entre tais fabulações e evidências de verdade, e esta técnica é, portanto, fácil e muito usada para enganar o público com a medicina alternativa.
Falsas evidências
Em meu blog, me deparei com este fenômeno ad nauseam: um comentarista faz uma alegação e a apoia com algumas evidências aparentemente sólidas, frequentemente de fontes respeitadas. Mas os poucos de nós que nos damos ao trabalho de ler os artigos referenciados rapidamente descobrimos que eles não dizem nada do que o comentarista alegou. Este método se fia em que o leitor será facilmente convencido por algumas evidências de faz de conta. Como muitos consumidores não se dão ao trabalho de ir além da cortina de fumaça lançada por estes enganadores, tal método geralmente funciona muito bem.
Um exemplo: Vidatox é uma “cura” homeopática do câncer, vinda de Cuba. O site do Vidatox alega que ele é eficaz contra muitos cânceres. Considerando quão sensacional é esta alegação, seria esperado encontrar muitos estudos publicados sobre o Vidatox. Mas uma busca no Medline resulta em apenas um artigo sobre o assunto. Seus autores chegam à seguinte conclusão: “Nossos resultados sugerem que a concentração de Vidatox usada no presente estudo não encontrou qualquer efeito antineoplásico (NE: contra o câncer) e é preciso cautela em receitar Vidatox para pacientes com HCC (NE: carcinoma hepatocelular, um tipo de câncer no fígado)”.
Assim, uma pergunta que uma pessoa frequentemente deve se fazer é: onde está a fronteira entre pesquisas enganosas e fraude?
Pesquisas de usuários
Não há outra área na saúde que produza mais pesquisas de usuários do que a medicina alternativa. Cerca de 500 são publicados todo ano! Esta “mania por pesquisas de opinião” tem um propósito: promover uma mensagem positiva sobre tratamentos alternativos que pesquisas que testam hipóteses raramente fornecem.
Num levantamento típico da medicina alternativa, uma equipe de pesquisadores entusiastas pode reunir umas poucas perguntas e desenhar um questionário para descobrir qual percentagem de um grupo de indivíduos fez algum tratamento alternativo no passado. Com isso, os pesquisadores podem obter uma ou 200 respostas. Eles então calculam uma estatística descritiva simples e demonstram que xx% de pessoas usam tratamentos alternativos. Esta “descoberta” então é, por fim, publicada em um ou mais periódicos de quinta categoria dedicados à medicina alternativa. A implicação disso é que, se os tratamentos alternativos são tão populares, eles devem ser bons, e se são bons, eles devem ser pagos pelo público. Poucos consumidores se dão conta que estas conclusões são nada mais que um falacioso apelo à popularidade.
Fugindo da pergunta
Outra forma popular que os pesquisadores de medicina alternativa usam para enganar o público é evitar pesquisas que questionem suas práticas. Poucos especialistas, por exemplo, negariam que uma das questões mais urgentes da quiropraxia é o risco relacionado à manipulação da coluna espinhal. Seria de se esperar, então, que uma proporção razoável da pesquisa quiroprática, sendo publicada hoje, fosse dedicada a explorar essa questão. Mas é justamente é contrário. O Medline lista hoje mais de 3.000 artigos sobre “quiroprática”, mas só 17 abordam “quiroprática e danos”).
Estudos-piloto
Um estudo-piloto é uma pesquisa preliminar de pequena escala, conduzida de forma a avaliar a factibilidade, tempo gasto, custo e eventos adversos de um tratamento, para melhorar o desenho de um estudo de verdade, antes da realização de um projeto de pesquisa em grande escala. Mas algumas pré-condições não são cumpridas pela pletora de estudos-piloto da medicina alternativa sendo publicada atualmente.
Estudos-piloto verdadeiros são, de fato, muito raros na medicina alternativa. A razão para a existência de tantos falsos estudos-piloto é óbvia: eles podem facilmente ser interpretados como mostrando resultados positivos encorajadores para qualquer tratamento alternativo que se queira. Consequentemente, os promotores da medicina alternativa podem enganar o público alegando haver muitos estudos positivos, e assim seu tratamento alternativo é apoiado por evidências sólidas.
Estudos com desenho "seguro"
Como mencionado regularmente em meu blog, há muitas maneiras de se desenhar um estudo de forma que o risco de ele produzir um resultado negativo é mínimo. O mais popular destes desenhos na pesquisa de medicina alternativa é o “A + B contra B”. Neste estudo, por exemplo, pacientes de câncer sofrendo de fadiga foram randomizados para receber o tratamento comum ou o tratamento comum mais acupuntura. Os pesquisadores então monitoram a experiência de fadiga dos pacientes e descobrem que o grupo da acupuntura se sentiu melhor que o grupo de controle. O efeito foi estatisticamente significativo, e o editorial do periódico onde ele foi publicado chama esta evidência de “convincente”. E graças a um texto de divulgação para a imprensa exagerado e bem escrito, a notícia se espalha rápido, e o estudo é celebrado mundo afora como uma grande descoberta no tratamento do câncer.
Imagine que você tem uma quantia em dinheiro A e um amigo seu tem a mesma quantia mais B. Quem tem mais dinheiro? Simples, é claro, seu amigo: A + B sempre será mais que A (a não ser que B seja uma quantia negativa). Pela mesma razão, tais ensaios clínicos “pragmáticos” sempre vão gerar resultados positivos (a não ser que o tratamento em questão seja verdadeiramente prejudicial). Tratamento convencional mais acupuntura é mais que o tratamento convencional apenas, e o primeiro é, assim, mais propenso a produzir um resultado melhor. Isto é verdade mesmo que acupuntura seja apenas um placebo – afinal, um placebo é mais do que nada, e o efeito placebo vai impactar o resultado, particularmente se estamos lidando com um sintoma altamente subjetivo como “fadiga”.
Um método mais óbvio de gerar resultados falso positivos é omitir o cegamento. O propósito do cegamento de paciente, terapeuta e avaliador na alocação de grupos em ensaios clínicos é assegurar que a expectativa não influa no resultado. A expectativa pode não mover montanhas, mas pode certamente influenciar no resultado de um ensaio clínico. Pacientes que esperam cura regularmente apresentam melhora, mesmo que a terapia que recebam seja inútil, e os terapeutas e avaliadores tendem a ver os resultados com melhores olhos se têm ideias pré-concebidas sobre o tratamento experimental.
A falha na randomização é outra fonte de viés que pode nos enganar. Se deixarmos que pacientes ou pesquisadores escolham ou selecionem que pacientes receberão o tratamento experimentado e quais receberão o tratamento de controle, é provável que os dois grupos difiram em numerosas variáveis. E algumas destas variáveis podem, por sua vez, impactar os resultados. Se, por exemplo, médicos alocarem os pacientes para os grupos experimental e de controle, eles podem selecionar aqueles que esperam que respondam ao tratamento ao primeiro, e os que não esperam, ao segundo. Isto pode não acontecer intencionalmente, mas por intuição ou instinto: profissionais de saúde responsáveis querem que os pacientes que, pela sua experiência, tenham mais chances de se beneficiar de um dado tratamento recebam tal tratamento. Só a randomização, quando feita adequadamente, pode assegurar que estejamos comparando grupos de pacientes comparáveis. A não randomização pode facilmente gerar resultados falso positivos.
Também é possível enganar as pessoas com estudos que não testam se um tratamento experimental é melhor que outro (frequentemente chamados de ensaios de superioridade), mas avaliam se ele é equivalente a uma terapia geralmente aceita como eficaz. A ideia é a de que, se ambos tratamentos produzem resultados similares, ambos devem ser eficazes. Tais ensaios são chamados de testes de não superioridade ou de equivalência, e oferecem uma ampla gama de possibilidades para enganar as pessoas. Se, por exemplo, tal ensaio não tem pacientes suficientes, ele pode não mostrar nenhuma diferença quando, na verdade, ela existe.
Vamos considerar um exemplo hipotético simples: alguém tem a ideia de comprar antibióticos com acupuntura como tratamento de pneumonia bacteriana em pacientes idosos. Os pesquisadores recrutam dez pacientes para cada grupo, e os resultados revelam que, em um grupo, dois pacientes morreram, enquanto no outro este número foi de três. Testes estatísticos mostram que a diferença de apenas um paciente não é estatisticamente significativa, e os autores assim concluem que a acupuntura é tão boa quanto antibióticos no combate a infecções bacterianas.
Ainda mais enganosa é a opção de dar uma dose menor do tratamento ao grupo de controle em um ensaio de equivalência. No exemplo acima, os pesquisadores podem subsequentemente recrutar centenas de pacientes numa tentativa de responder às críticas ao primeiro estudo. Eles então decidem administrar uma dose subterapêutica do antibiótico no grupo de controle. Os resultados então vão parecer confirmar os achados iniciais dos cientistas, isto é, que a acupuntura é tão boa quanto antibióticos contra a pneumonia. Os acupunturistas podem então alegar que seu tratamento foi comprovado em um grande ensaio clínico randomizado como eficaz no tratamento desta condição. Pessoas que não sabem a dosagem correta do antibiótico podem ser facilmente levadas a acreditar neles.
Obviamente, os resultados podem ser ainda mais impressionantes se, no grupo de controle de um ensaio de equivalência, a terapia administrada seja não só ineficaz como verdadeiramente danosa. Em tais cenários, mesmo o tratamento alternativo mais inútil parecerá eficiente, simplesmente porque seria menos danoso do que aquele a que foi comparado.
Uma variação deste tema é a pletora de ensaios clínicos controlados da medicina alternativa que comparam uma terapia não comprovada com outra terapia não comprovada. Previsivelmente, os resultados, com frequência, indicam não haver diferença nos desfechos clínicos experimentados por pacientes nos dois grupos. Pesquisadores entusiastas da medicina alternativa tendem a concluir que isso comprova ambos tratamentos como igualmente eficazes. A conclusão mais real, porém, é de que ambos são igualmente inúteis.
Outra técnica para enganar o público é tirar conclusões que não são apoiadas pelos dados. Imagine que você gerou dados absolutamente negativos num ensaio de homeopatia. Como um entusiasta da homeopatia, você está longe de ficar feliz com os próprios achados, e ainda pode ter um patrocinador na sua cola. O que você pode fazer? A solução é simples: só precisa destacar ao menos uma mensagem positiva no artigo publicado. No caso da homeopatia, pode, por exemplo, dar grande atenção ao fato de que o tratamento se mostrou incrivelmente seguro e barato: nenhum paciente morreu, e a maioria ficou muito satisfeita com o tratamento, que não foi muito caro.
Omissão
Outro método popular para enganar o público é a clara omissão de resultados que os pesquisadores de medicina alternativa não gostam. Se o objetivo é fazer o público acreditar no mito de que todos os tratamentos alternativos são livres de efeitos colaterais, os pesquisadores de medicina alternativa podem simplesmente omitir a descrição desses efeitos nos ensaios clínicos. Já alertei meus leitores muitas vezes contra este fenômeno muito comum. Nós até analisamos isso numa revisão sistemática. Sessenta Ensaios Clínicos Randomizados Controlados de quiropraxia foram incluídos. Vinte e nove destes ensaios sequer mencionaram efeitos adversos. Dezesseis ensaios relataram que não houve registro de efeitos adversos. Informações sobre incidência, severidade, duração, frequência e métodos para relato de efeitos adversos constam de apenas um dos ensaios.
A maioria dos ensaios tem muitos desfechos mensuráveis. Por exemplo, um estudo sobre acupuntura no controle da dor pode quantificar a dor em meia dúzia de maneiras, e pode também medir a duração do tratamento até que a dor diminua, a quantidade de medicamentos que o paciente tomou além de se submeter à acupuntura, os dias perdidos de trabalho devido à dor, a percepção do companheiro ou da companheira sobre o estado de saúde do paciente, a qualidade de vida do paciente, a frequência com que o sono foi interrompido pela dor, etc.
Se os pesquisadores forem então avaliar todos estes resultados, eles provavelmente vão achar um ou dois que mudaram na direção que queriam (especialmente se também incluírem outra meia dúzia de diferentes pontos temporais na pesquisa em que estas variáveis foram quantificadas). Esta pode muito bem ser uma pesquisa ao acaso: com os testes estatísticos típicos, um de 20 desfechos pode produzir um resultado significativo por pura sorte. Para nos enganar, os pesquisadores só precisam “esquecer” todos os outros resultados negativos e focar sua publicação naqueles em que, por sorte, o resultado foi no caminho que queriam.
Fraude
Quando falamos de fraude, há mais maneiras de fraudar uma pesquisa do que gostaríamos que existisse. Nós e outros, por exemplo, demonstramos que os ensaios chineses sobre acupuntura dificilmente produzem um resultado negativo. Em outras palavras, não é preciso ler o artigo, já sabemos que ele é favorável, e ainda mais: não é preciso nem realizar o estudo, já se sabe que ele terá um resultado positivo antes mesmo da pesquisa começar. Este estranho fenômeno indica que há algo de errado nas pesquisas chinesas sobre acupuntura.
Esta suspeita foi até confirmada por uma equipe de cientistas chineses. Nesta revisão sistemática, todos Ensaios Clínicos Randomizados Controlados sobre acupuntura publicados em periódicos chineses foram identificados por uma equipe de cientistas chineses. De um total de 840 ensaios -- incluindo 727 comparando acupuntura com tratamento convencional, 51 sem tratamentos de controle e 62 ensaios com controle de “falsa acupuntura” (NE: em que, por exemplo, as agulhas são espetadas em pontos diversos dos preconizados pela prática, ou são usadas agulhas que não penetram a pele) -- 838 estudos (99,8%) relataram resultados positivos para os desfechos primários e dois ensaios (0,2%) reportaram resultados negativos.
Os autores concluem que o viés de publicação pode ser a maior questão nos ensaios sobre acupuntura publicados em periódicos chineses, que se relaciona com um alto risco de viés. Sugerimos que, no futuro, todos estes ensaios devam ser registrados em repositórios internacionais de ensaios clínicos.
Um levantamento de ensaios clínicos na China revelou a prática de fraudes em grande escala. A agência reguladora de alimentos e drogas da China promovei uma revisão de um ano de ensaios clínicos. Ela concluiu que mais de 80% dos dados clínicos foram “fabricados”. A revisão avaliou dados de 1.622 ensaios clínicos de novas drogas aguardando aprovação da agência para produção em massa. As autoridades agora alertam que mais evidências de más práticas ainda podem emergir, no âmbito deste escândalo.
Apresso-me em adicionar que a fraude nas pesquisas em medicina alternativa certamente não estão restritas à China. Nesta página você vai achar muitas evidências desta afirmação, tenho certeza.
Conclusão
Pesquisas são obviamente necessárias se queremos responder às muitas questões em aberto na medicina alternativa, Mas, infelizmente, nem toda pesquisa é confiável, e muito da pesquisa na medicina alternativa é enganador. Assim, é preciso estar sempre alerta, e aplicar todas as ferramentas e capacidades de avaliação crítica que possamos reunir.
Edzard Ernst, professor emérito da Universidade de Exterer, no Reino Unido, é a maior autoridade mundial em terapias alternativas. Autor de diversos livros, teve publicado no Brasil "Truque ou Tratamento", escrito em parceria com o jornalista Simon Singh.