Ao cair da tarde de 5 de outubro, após receber alta do Walter Reed Medical Center, o presidente americano Donald Trump, numa imagem que lembrou Il Duce Benito Mussolini, subiu ao balcão da Casa Branca e, num gesto claro de desafio, retirou a máscara que usava e guardou no bolso. A imagem correu mundo, e poderia ter sido ainda pior. O plano inicial do candidato à reeleição era usar por baixo do paletó e camisa uma camiseta do Super-Homem e, no melhor estilo Clark Kent, rasgar a camisa e posar de super-herói. Graças aos assessores da Casa Branca, o mundo foi poupado desta cena.
Mas claro que a ideia do Super-Homem não saiu da cabeça alaranjada do presidente americano. No comício em Sanford, na Flórida, poucos dias depois, Trump disse para seus apoiadores: “Eu passei por aquilo (a COVID-19) e agora dizem que estou imune. Eu me sinto tão poderoso! Tenho vontade de ir aí e beijar todo mundo na audiência, os caras e as mulheres bonitas!”. O povo – quase todos sem máscara – aplaudiu em delírio. A reportagem da CNN Internacional entrevistou os sem-máscara. Uma senhorinha grisalha explicou que não usa máscara porque acredita em Deus e em sua proteção. E se pegar COVID-19 e morrer é porque foi a vontade de Deus. O melhor (isto é, o mais absurdo) é o cidadão que garante que usar máscara é prejudicial, porque o usuário acaba respirando muito gás carbônico e desmaia. Se isso fosse verdade, imagine o que aconteceria em centros cirúrgicos, com médicos desmaiando de bisturi em punho, ou nas movimentadas ruas de Tóquio, com dúzias de cidadãos desmaiando ao mesmo tempo.
Perguntados sobre se usariam máscara se Trump pedisse, todos responderam que sim. Mas o super-homem alaranjado jamais faria isso. Nesta quinta-feira, 15 de outubro, no comício que fez na Carolina do Norte, Trump afirmou que um estudo do CDC mostrava que 85% das pessoas que usam máscara contraem a COVID-19. A mídia americana não perdeu tempo em denunciar a mentira deslavada, que por aqui a imprensa chamaria de “polêmica”. O estudo do CDC distorcido pelo presidente avaliou como pessoas contraíram o SARS-CoV-2, e viu que 85% delas disseram usar máscara fora de casa. O trabalhou mostrou que 40% pegaram o vírus em casa, de familiares (daí a recomendação para evitar reuniões e festas familiares) e que restaurantes e bares, onde as pessoas removem a máscara para comer e beber, são outro foco de transmissão.
São dez meses de COVID-19, de polarização política e de uma interminável discussão sobre o uso de máscaras em que a direita de vários países não usa máscara, elencando uma diversidade impressionante de motivos. Isso sem falar nas discussões que acabaram em agressões, tiros e tumultos. Inclusive por aqui. Essa mesma baboseira sobre as máscaras causarem intoxicação por gás carbônico também passeou pelo Brasil, bem como outra versão que combina elementos do pessoal naturebista que acha que pH ácido (o CO2 misturado à água forma um ácido fraco) causa todo tipo de problemas de saúde e, no caso, “estimula a proliferação de vírus e bactérias”.
Agressões
No início de julho, um motorista de ônibus de Bayonne, França, teve morte cerebral depois de ser atacado por cinco passageiros a quem pediu que usassem máscaras, como mandava a lei. Por aqui, casos de agressão a motoristas de ônibus pelo mesmo motivo foram registrados em Minas Gerais, Mato Grosso e Pernambuco, só para citar alguns. Em New Jersey, um casal deu uma surra de cinto na atendente de uma loja de conveniência que pediu para que levantassem as máscaras, enquanto em Campinas (SP), um cidadão agrediu a funcionária de uma sorveteria pelo mesmo motivo.
Cristina Gomez, de 28 anos, virou alvo de todos os programas humorísticos nos EUA em junho depois de ir a uma audiência pública em West Palm Beach, Flórida, que discutia a obrigatoriedade de uso de máscaras em locais públicos. Cristina desfiou todas as teorias conspiratórias da QAnon, disse que máscaras matam pessoas, qualificou a norma de “lei do demônio”, que todos ali deveriam ser internados em hospitais psiquiátricos e que seriam punidos por Deus. Outra mulher, essa da Califórnia, protestou contra o uso obrigatório de máscaras dizendo aos gritos: “Eu sou uma americana saudável. Eu costumava ser livre. Eu não sou terrorista. Eu não sou da Antifa. Eu não sou uma escrava sexual que usa máscara. Eu não curto sadomasoquismo e bondage. Eu não sou assaltante. Eu tenho orgulho de ser republicana pró-Trump que quer ser livre novamente". Eu, eu, eu, eu, repete a mulher.
Essa insistência numa suposta liberdade individual de não usar máscara levou milhares de alemães às ruas de Berlim. Extrema direita, anti-vaxx, adeptos de teorias conspiratórias de todo tipo se aglomeraram para reclamar das determinações do governo em dois sábados seguidos, problema que o governo da primeira-ministra Angela Merkel resolveu estabelecendo uma pesada multa para quem saísse às ruas sem máscara. Embalados pela cantilena da liberdade individual, os americanos também organizaram protestos semelhantes em vários estados, muitos deles exigindo a volta a uma normalidade que deixou de existir no momento em que a pandemia se instalou no planeta.
Movimentos antimáscara não são novidade e surgiram em outra pandemia, a da gripe espanhola, em 1917/1918, quando se recomendava que fossem usadas para conter a disseminação da doença. Um século atrás, como agora, essas pessoas acusavam seus governos de violar seus direitos constitucionais e sua liberdade individual. Os asiáticos, e os japoneses em particular, passaram a usar máscaras na mesma época, mas o hábito se consolidou na pandemia de gripe de 1967/68, a chamada gripe de Hong Kong, a terceira daquele século. Os governos orientais nem precisam mandar a população usar máscaras, é um hábito que as pessoas têm, mesmo que não exista uma epidemia ou pandemia. Se você tem tosse ou dor de garganta, passa a usar máscara para não transmitir a doença aos outros. Simples assim. É a responsabilidade para com o coletivo que leva ao uso da máscara, e não a crença pessoal. Não é o “eu”, são os outros. E essa é uma diferença fundamental, especialmente no caso da COVID-19, em que a maioria dos portadores e transmissores do vírus é assintomática.
No Ocidente, o macho da espécie é quem reluta mais em usar máscara. Não que todas as mulheres usem máscaras corretamente – flagrei duas senhoras mascaradas no supermercado que ao se verem e se aproximarem, abaixaram as máscaras para conversar de pertinho. Em artigo publicado na Scientific American, Peter Glick, professor da Lawrence University, analisou esse comportamento.
De acordo com ele, a macharada interpreta esse tipo de precaução como uma demonstração pública de fraqueza e fragilidade, de medo – mesmo motivo pelo qual só costumam ir a médicos arrastados por mães, esposas, namoradas ou filhas. No caso de líderes políticos, a coisa fica ainda pior. Tanto Trump quanto Bolsonaro fizeram questão de incentivar aglomerações, das quais participavam sem máscara ou qualquer outra precaução, numa espécie de “vem ni mim, SARS-CoV-2, que eu sou macho e não tenho medo de gripezinha”.
O primeiro-ministro britânico chegou a visitar hospitais e cumprimentar médicos e pacientes sem usar máscara, isso antes de contrair a COVID-19 e ir parar numa UTI. Boris Johnson aparentemente aprendeu a lição, mas Trump e Bolsonaro usaram a doença para se fortalecer politicamente, o primeiro posando de super-homem e o nosso, promovendo a ineficaz hidroxicloroquina. Ambos passaram a se exibir como provas vivas de que ninguém precisa se preocupar com a COVID-19 porque a doença não mata gente forte e saudável, só os “fracos”.
É característico dos governantes autoritários se apresentarem como a encarnação do próprio país: se o mandatário é forte, também é a nação. Em seus comícios, Trump insiste em afirmar que a COVID-19 está desaparecendo, enquanto os EUA registram um crescimento de 63% no número de casos nas últimas 4 semanas. Bolsonaro sequer menciona o assunto. E Johnson é vaiado no Parlamento, toda vez que pronuncia a palavra lockdown, já que a Europa está vivendo sua segunda onda, desta vez com menos mortos e doentes mais jovens, mas que lotam os leitos hospitalares reservados a pacientes da COVID-19.
Psicologia
Mundo afora, negacionistas insistem em dizer que o número de mortos e infectados é superestimado, que as pessoas estão morrendo de gripe comum e não de COVID-19. A eles, somam-se os que não tomam precauções porque acreditam na proteção divina, na cloroquina e na ivermectina, nos anti-vaxx (51% dos americanos dizem que não pretendem se vacinar), os que disseminam fake news de que a vacina causa a doença ou altera o DNA para sempre e os que insistem em dizer que a doença vai desaparecer como por milagre e são completamente refratários tanto a evidências científicas quanto a fatos.
De acordo com os psicólogos sociais Elliot Aronson e Carol Tavris, essas pessoas enfrentam dissonância cognitiva, um desequilíbrio causado pela divergência entre crenças importantes para a definição da identidade pessoal e a realidade, e resolvem o problema recusando-se a aceitar evidências científicas e relutando em admitir que se tomaram decisões erradas. A dissonância torna-se extremamente dolorosa quando evidências se chocam com a imagem que a pessoa faz de si mesma e ameaça a ideia de que somos generosos, éticos, inteligentes.
Assim que tomamos uma decisão (“A COVID-19 é uma gripezinha”), passamos a criar argumentos para mostrar o acerto dessa decisão e encontrar defeitos na posição contrária, enquanto todas as dúvidas iniciais desaparecem, deixando apenas certezas. Com o tempo, fica cada vez mais difícil admitir que a decisão inicial foi um erro. Vale para a COVID-19, para eleitores extremamente leais a um partido ou a um político.
Vamos combinar que usar máscara no calor não é nada confortável, especialmente para a gente que usa óculos e convive com lentes embaçadas. O fato é que o uso de máscaras reduz os riscos de contágio e sabemos disso há pelo menos cem anos, desde a gripe espanhola. Também não é fácil ficar longe da família e dos amigos, ficar sem cinema, sem teatro, sem jantar naquele restaurante que a gente adora.
Mais recentemente, a pandemia de gripe de 2009, a do H1N1, demonstrou a importância do uso de máscaras, do distanciamento social e da adoção de rígidas normas de higiene. Por aqui, na época, até os casos de infecções intestinais caíram, porque todo mundo passou a lavar as mãos com frequência. Desta vez, também caíram os casos de outras infecções respiratórias por causa dos cuidados que as pessoas tomaram para não pegar a COVID-19, segundo a Fiocruz.
E vai ser assim pelo menos pelos próximos dois anos. É isso que afirmam a Organização Mundial da Saúde (OMS), o imunologista Anthony Fauci, chefe do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos EUA, e o bilionário e filantropo Bill Gates. Distanciamento social, uso de máscaras, higiene das mãos e álcool gel vão continuar na nossa rotina mesmo depois que tivermos uma ou mais vacinas, segundo os especialistas.
Primeiro porque, num primeiro momento, seja qual for a vacina, não haverá doses suficientes para uma vacinação em massa relâmpago. Pela lógica, o esquema deve ser semelhante aos da vacinação contra gripe, começando pelo pessoal da saúde, segurança e transporte, idosos com comorbidades, idosos, indígenas, adultos com comorbidades e assim por diante. Segundo, esse esquema se torna mais demorado se a vacina for aplicada em duas doses. Terceiro, não sabemos ainda em que parcela da população ela será eficaz (ou seja, em qual porcentagem vai “pegar”), nem por quando tempo vai imunizar as pessoas.
Ou seja, nem quem tomou a vacina vai poder abandonar máscara e distanciamento social e se jogar nas festas, nas praias e nos bares. Em entrevista recente, Bill Gates afirmou que provavelmente só teremos uma vacina realmente eficaz dentro de uns dois anos, uma segunda geração de imunizantes aperfeiçoados graças às informações que serão obtidas quando as vacinais iniciais forem aplicadas em milhões de pessoas em todo mundo, a chamada fase 4. As máscaras vieram para ficar por um bom tempo.
Ruth Helena Bellinghini é jornalista, especializada em ciências e saúde e editora-assistente da Revista Questão de Ciência. Foi bolsista do Marine Biological Lab (Mass., EUA) na área de Embriologia e Knight Fellow (2002-2003) do Massachusetts Institute of Technology (MIT), onde seguiu programas nas áreas de Genética, Bioquímica e Câncer, entre outros