Enquanto a COVID-19 mata milhares de norte-americanos a cada semana e devasta a economia dos Estados Unidos, o presidente Donald Trump e seus aliados tentam, contra toda lógica, retratá-lo como o bem-sucedido comandante da resposta à pandemia. No mês passado, numa entrevista coletiva para promover o uso de plasma de pacientes recuperados como novo tratamento para a COVID-19, o secretário de Saúde e Serviços Humanos, Alex Azar, definiu Trump como “o presidente do direito de tentar”, por ter pressionado agressivamente por novos tratamentos para o coronavírus. Na verdade, o presidente distorceu repetidas vezes a lei Right to Try ("Direito de Tentar") e outros esforços contra a pandemia, numa aparente tentativa de explorar a esperança do público em milagres da medicina. A longa série de tratamentos sem comprovação apresentada por Trump ameaça erodir a confiança nas agências governamentais de saúde, no momento em que ela é mais necessária.
A lei Right to Try, assinada por Trump em maio de 2018, tem como objetivo ampliar o acesso a tratamentos médicos experimentais, permitindo que pacientes diagnosticados com doenças letais recebam tratamentos experimentais que ainda não foram aprovados pela Food and Drug Administration (FDA). Para ser elegível, o tratamento deve ter passado por testes clínicos fase 1, para comprovar segurança, não deve ter sido aprovado para nenhum outro uso e precisa estar sob investigação ativa, isto é, a pesquisa precisa estar em andamento.
Então, um patrocinador – geralmente a farmacêutica que desenvolve o medicamento ou terapia – precisa concordar em fornecer o tratamento.
Como apontam os críticos, a Right to Try não aborda claramente a questão do acesso a tratamentos experimentais, até porque a FDA já administra um processo de acesso expandido, que permite aos pacientes americanos obter esses tratamentos fora dos testes clínicos. Uma das críticas que se faz a esse processo é o de ser lento demais, mas nos últimos ano a FDA acelerou o método e aprovou praticamente todos os pedidos. Na verdade, a Right to Try parece ter como objetivo reduzir a supervisão da FDA sobre o processo de aprovação de drogas.
Na prática, as restrições da Right to Try – planejadas para garantir que a lei proteja a segurança do paciente e não impeça o desenvolvimento médico – significavam que muito poucas pessoas tinham acesso a tratamento por essa via. Houve bem poucos relatos de pessoas usando o Right to Try com sucesso, muitos acompanhados de casos de empresas abandonado os planos de financiar essas terapias. Embora a FDA tenha proposto uma norma exigindo que patrocinadores da Right to Try apresentassem relatórios anuais, o projeto ainda não foi finalizado. De qualquer forma, num comunicado recente, a agência informou que espera receber até seis relatórios desses por ano.
Mas isso não impediu o presidente americano de apresentar a Right to Try como o seu maior sucesso na área de saúde em seu primeiro mandato. Nos seus comícios na campanha pela reeleição, a Right to Try é destaque, num governo que pouca atenção deu à saúde. “O número de vidas salvas é realmente incrível”, diz Trump, acrescentando que “agora elas assinam um documento simples, pequeno, e, em muitos casos, têm a vida de volta”.
A Right to Try também foi elogiada na Convenção Nacional Republicana. Natalie Harp, que afirma ter tido acesso a tratamento que a curou de um câncer ósseo terminal por meio da Right to Try, discursou na noite de abertura da convenção. Naquela noite, Natalie disse que antes de Trump assinar a lei, “os médicos não me davam o direito de tentar tratamentos experimentais”. Sem Trump, disse ela, “eu teria morrido, esperando a aprovação de novas terapias.”
Mas o caso de Natalie Harp não se encaixa na Right to Try. De acordo com ela mesma, o que recebeu “foi uma droga imunoterápica, já aprovada pela FDA para um uso não aprovado, o do seu câncer”, enquanto a Right to Try não pode ser usada para drogas já liberadas com outros fins. O uso off label de drogas já aprovadas antecede, em muitos anos, a administração Trump.
O mesmo padrão fraudulento emergiu no recente anúncio da FDA autorizando o uso emergencial de plasma de pacientes recuperados de COVID-19 como tratamento. Autorização para uso emergencial é um mecanismo pelo qual a FDA pode permitir o uso de terapia ainda não autorizada em caso de emergência na saúde pública. Para isso, o produto deve ter produzido evidências de que “pode ser eficaz no diagnóstico, tratamento ou prevenção” da doença em questão.
Embora haja um certo debate sobre se o plasma de convalescentes se encaixa nessa definição, está claro que o governo superestimou a capacidade desse tratamento salvar vidas de pacientes de COVID-19. Em recente pronunciamento, o presidente Trump afirmou que o uso de plasma “comprovadamente reduz a mortalidade em 35%. É um número tremendo”. Seus comentários foram endossados por Stephen Hahn, comissário da FDA.
Na verdade, a queda observada na taxa de mortalidade – isto é a redução do número de mortes numa dada população - provavelmente não passava de 5%. Além disso, o estudo citado por Trump avaliou um pequeno subgrupo de pacientes e não teve um grupo de controle e nem peer review, o que torna difícil calcular seu impacto real sobre taxas de mortalidade. Embora hoje Hahn reconheça que os comentários foram enganosos, o presidente não voltou atrás em suas falas.
Embora o plasma de convalescentes seja seguro e usado em outras situações, superestimar a sua eficácia em casos de COVID-19 é simplesmente irresponsável. Se o plasma não se mostrar efetivo, ou não tão efetivo como afirma o presidente, isso pode minar a confiança dos americanos na FDA e outras agências governamentais envolvidas no enfrentamento da COVID-19. Essas alegações dificultam a realização de testes clínicos de alta qualidade, com placebos e controle, que ajudem os médicos a concluir a eficiência precisa do plasma como tratamento. Pessoas que ouviram dizer que o plasma cura uma a cada três vidas não vão querer se arriscar a receber placebo num teste clínico, se podem ter acesso ao plasma por meio do programa de uso emergencial.
Nesse sentido, o secretário Azar está certo ao chamar Trump de “Right to Try President”, já que ele supervisiona a resposta americana à COVID-19. Assim como a Right to Try é uma política superestimada que engana o público, Trump ativamente falseia o status de tratamentos em potencial para o coronavírus. Essas declarações não apenas enganam o público, mas tornam mais difícil para os cientistas a coleta das informações que precisam para determinar se essas terapias são eficazes e como usá-las. Há bons motivos para temer que o padrão do presidente de exagerar nas virtudes de possíveis tratamentos se estenda para qualquer anúncio de uma vacina contra a COVID-19.
A Right to Try e o plasma de convalescentes dão esperança ao povo, como o próprio Trump diz. Mas é a falsa esperança que o presidente explora por motivos políticos. O país precisa de uma liderança baseada na verdade. O governo precisa ter confiança na capacidade do povo de construir uma esperança baseada em fatos e numa compreensão verdadeira do que é necessário para conter e eventualmente eliminar a COVID-19. O público tem o direito de saber a verdade, e o presidente e seu governo precisa dizê-la de forma clara e consistente.
Jeremy Snyder é bioeticista e professor da Faculty of Health Sciences da Simon Fraser University. Este mês, ele lança seu livro “Exploiting Hope” pela Oxford University Press. Artigo publicado originalmente em Undark.