Esse artigo foi originalmente publicado pela ProPublica.
No final de junho, depois de três meses de silêncio sobre o assunto, os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) do governo americano finalmente enfrentaram uma questão importantíssima para milhões de mulheres e famílias: qual o perigo que a COVID-19 representa para mulheres grávidas e puérperas?
O CDC vinha dizendo que grávidas não pareciam correr risco maior de complicações severas do vírus. No fim de maio, um porta-voz chegou a afirmar que “as evidências atuais mostram que mulheres grávidas correm o mesmo risco de desenvolver complicações sérias da COVID-19 que qualquer mulher adulta”.
Então, abruptamente, a agência mudou de tom. Em sua primeira avaliação dos dados americanos sobre a COVID-19 na gravidez, o CDC descobriu que as grávidas tinham chances 50% maiores de precisar de cuidados intensivos e 70% maiores de serem entubadas que mulheres em idade fértil que não estavam grávidas.
Segundo os pesquisadores, mulheres grávidas latinas e negras apresentavam taxas de infecção consideravelmente mais altas que as brancas. Até 2 julho, pelo menos 30 grávidas e puérperas tinham morrido de COVID-19 nos EUA.
Os dados já eram suficientemente alarmantes, mas o que muitos especialistas acharam realmente preocupante foram as falhas gritantes nos dados expostos pelo estudo.
O CDC reconheceu que faltavam informações cruciais sobre cerca de 75% das mulheres grávidas infectadas pelo SARS-CoV-2, entre elas, se sofriam de condições pré-existentes, se precisaram ser admitidas em unidades de terapia intensiva ou de respiradores mecânicos. Para a esmagadora maioria das norte-americanas em idade reprodutiva positivas para a COVID-19 – cerca de 326 mil mulheres até 7 de junho –, não havia qualquer informação sobre as condições de suas gestações.
Os pesquisadores sequer sabiam dizer quantas das gestantes hospitalizadas – 31,5% das grávidas do estudo – tinham sido internadas por causa da COVID-19 ou por outros motivos, como parto, por exemplo.
O relatório com falhas do CDC ilustra um problema que vem preocupando profissionais de ginecologia e obstetrícia, tanto de atendimento como de pesquisa, nos Estados Unidos desde o início da pandemia. Como doenças emergentes podem ter consequências catastróficas tanto para as grávidas como para os bebês, o monitoramento cuidadoso de novas doenças nesse grupo particularmente vulnerável é fundamental. O mesmo vale para a troca de informações entre profissionais da área que tentam manter suas pacientes seguras. Mas os esforços da saúde pública dos EUA para entender o impacto do novo coronavírus sobre grávidas e bebês têm sido tacanhos, desorganizados e absurdamente lentos.
Os furos nos dados do CDC são “espantosos, não vou mentir”, disse Cindy M. P. Duke, ginecologista e obstetra do Nevada Fertility Institute, em Las Vegas. “É chocante perceber que não temos um sistema uniforme de coleta e análise de informações sobre saúde materna e neonatal em tempos de crise”.
“Quando conseguirmos os melhores dados possíveis, a pandemia já terá acabado”, afirma Christina Han, especialista em saúde materno-fetal da equipe da Faculdade de Medicina da Universidade da Califórnia, em Los Angeles.
Para rastrear o coronavírus em grávidas e seus bebês, o CDC orienta os departamentos de saúde a preencher um espaço no Case Report Form (relatório de notificação) informando se a paciente está grávida. Os responsáveis podem também preencher um “formulário suplementar opcional” dando informações sobre a gravidade e desfecho do caso em mães e bebês, segundo informou uma porta-voz da agência.
É um sistema que garante uma enorme quantidade de dados inconsistentes, atraso no envio e falhas. “Estamos falando de milhares de casos que só agora estão sendo reportados ao CDC”, explica Han. “Os clínicos que estão atendendo essas mulheres não têm tempo para preencher relatórios completos”.
O CDC “iniciou o monitoramento das grávidas na COVID-19” trabalhando com departamentos de saúde para melhorar sua disponibilidade de dados, mas os pesquisadores não fornecem mais detalhes.
“Precisávamos estar prontos antes de qualquer surto para obter informações sobre como um novo patógeno, ou um re-emergente, afeta mulheres grávidas e seus bebês”, diz Denise Jamieson, que passou 20 anos no CDC estudando doenças infecciosas e reprodução, e hoje chefia o Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina da Emory University em Atlanta. “Para mim, está evidente que o CDC não foi capaz de fazer isso”.
Quando a COVID-19 chegou à Europa, os pesquisadores britânicos estavam prontos. Pego desprevenido no surto de H1N1 de 2009, e determinado a não permitir que isso acontecesse de novo, em 2011 o National Institute for Health Research fez uma seleção de estudos e iniciativas que pudessem ser iniciados e implementados assim que a próxima pandemia aparecesse. Nove propostas foram escolhidas, todas focadas em gripes, mas que podiam ser adaptadas a outras doenças. Todos esses protocolos foram revistos e revisados periodicamente, aguardando apenas a ordem do governo para implementação.
Quando os alarmes dispararam em fevereiro, oito dos estudos foram postos em ação, inclusive um do U.K. Obstetric Surveillance System (UKOSS), uma plataforma de pesquisa voltada para doenças raras na gestação. “Me disseram para ativá-la numa sexta-feira”, conta Marian Knight, professora de saúde materna e da criança na Universidade de Oxford. “Na segunda-feira, começamos a coleta de dados”.
O projeto do UKOSS era ambicioso – um estudo abrangente das grávidas com COVID-19 atendidas nos 194 hospitais obstétricos do National Health Service (NHS) baseado num formulário online de duas páginas com todas as informações das pacientes mantidas em anonimato. O planejamento cuidadoso permitiu que os pesquisadores entrassem em ação rapidamente, escreveu Knight numa postagem no British Medical Journal (BMJ), “minimizando os riscos de publicação de informações enganosas ou erradas”, problemas que infestaram outras publicações renomadas sobre a COVID-19.
Na metade de maio, o UKOSS divulgou sua primeira análise sobre todas as grávidas com COVID-19 hospitalizadas na Grã-Bretanha de março a meados de abril, num total de 427 mulheres. No geral, gestantes não pareciam ficar tão doentes com a COVID-19 como ficaram com a H1N1 e a SARS, mas as mulheres negras, asiáticas e do Oriente Médio corriam mais risco de serem hospitalizadas do que as brancas. Uma a cada 10 mulheres desenvolveu quadros graves, que exigiram suporte respiratório. Cinco mulheres e cinco bebês morreram.
O estudo forneceu o tipo de dados de alta qualidade que médicos e responsáveis pela saúde pública mais valorizam: cobertura nacional, cientificamente rigorosos e que podem pautar ações imediatamente, tanto que as organizações médicas britânicas rapidamente determinaram novos protocolos para atendimento das mulheres negras, asiáticas e do Oriente Médio.
Entidades médicas também reforçaram recomendações anteriores para que mulheres no terceiro trimestre da gravidez evitassem certos ambientes de trabalho, como médicas e enfermeiras na linha de frente da COVID-19, que as expusessem ao vírus. A abordagem britânica foi muito mais conservadora que a das entidades médicas americanas, que careciam de pesquisas que indicassem um protocolo diferente. Knight diz que, baseado nessas evidências, o UKOSS defendia o isolamento social no final da gestação. “É nessa fase que vemos a maioria das mulheres com a forma grave da COVID-19. A boa notícia é que agora as mulheres sabem que precisam tomar muito cuidado no final da gestação”.
Especialistas em saúde pública afirmam que a abordagem proativa, com um panorama abrangente, do UKOSS era exatamente o que os EUA precisavam, já que o país registra cerca de 4 milhões de nascimentos por ano – cinco vezes mais que a Grã-Bretanha – e tem grandes disparidades raciais no cuidado de gestantes e bebês, que provavelmente se aprofundaram com a COVID-19. Uma das estimativas considera que mais de 16 mil mulheres americanas podem estar infectadas com o coronavírus ao dar à luz este ano.
Mas o Reino Unido dispõe de um sistema de saúde universal, o que significa que o governo tem acesso a um enorme volume de dados sobre as pacientes, permitindo que estudos amplos como o do UKOSS sejam exequíveis. Já o sistema dos Estados Unidos é fragmentado e ineficiente, com a maior parte de seus dados trancados a sete chaves em algum canto escuro.
Os dois países também tem abordagens bem diferentes em relação à saúde materna, o que é exemplificado pela forma como lidam com as complicações e mortes associadas à gestação. O Reino Unido encara cada morte materna como um desastre da saúde pública, enquanto os EUA mal acompanham o problema da mortalidade materna.
Em geral, a saúde da mulher não é tratada como prioridade pelos pesquisadores e autoridades da saúde nos Estados Unidos, segundo Barbara Levy, ex-vice-presidente de política de saúde da Associação Americana de Obstetras e Ginecologistas, e que hoje atua como consultora na área de Washington. Num sistema de saúde que vê seus recursos minguando há décadas, as questões relacionadas à gravidez recebem pouquíssima atenção.
“Se não vemos nada que aumente a nossa preocupação é porque não temos curiosidade sobre o que está acontecendo”, diz Levy. No entanto, a importância dos estudos sobre essa população não poderia ser maior. “É nosso futuro, é a próxima geração”.
Depois dos primeiros, e bastante limitados, casos relatados na China, houve uma enxurrada de estudos tentando compensar a falta de informações sobre COVID-19 e gravidez. Nos Estados Unidos, a maior parte dos dados veio de Nova York, Chicago e Seattle, duramente atingidas pela pandemia, e onde médicos da linha de frente rapidamente passaram dados de suas próprias pacientes.
A tendência é animadora, até certo ponto: grávidas podem ter a forma grave da COVID-19, mas a maioria permanece assintomática ou apresenta um quadro leve. Houve apenas alguns casos de transmissão vertical – da mãe para o bebê ainda no útero –, mas esses casos continuam a ser analisados e a maioria dos bebês de mulheres infectadas pelo coronavírus passa bem. No entanto, houve também alguns sinais de perigo, alguns casos de complicações cardíacas, anomalias placentárias e relatos de mulheres assintomáticas que pioraram bastante após o parto.
A maioria dos dados associados a esses casos é duplicada e confusa, com pouco ou nenhum peer review para confirmar os achados. “Em nenhuma dessas séries temos certeza do tamanho da população de base, nem do quanto são afetados pelos desvios inerentes aos estudos pequenos realizados num único hospital ou cidade”, escreveu Knight em seu comentário no BMJ. “Os resultados, portanto, são quase impossíveis de se analisar”.
Há hoje em andamento nos EUA vários estudos em grande escala, de longo prazo e cientificamente meticulosos que poderão dar um panorama completo de como o SARS-CoV-2 afeta as grávidas e seus bebês em diferentes regiões país (e que provavelmente vão mostrar um cenário diferente ao registrado entre gestantes do Reino Unido, Suécia ou Irã). No final de maio o National Institute of Child Health and Human Development (NICHD) anunciou a realização de uma série de estudos em 12 instituições acadêmicas em sua Maternal-Fetal Medicine Units Network, uma destacada rede de pesquisa obstétrica.
Essa rede, criada em meados dos anos 80, cobre uma área que vai de Rhode Island a Utah, e é “uma máquina muito bem azeitada que pode pôr protocolos em prática bem depressa”, diz Diana Bianchi, geneticista pré-natal que dirige o instituto, um dos National Institutes of Health (NIH).
Um desses estudos vai comparar as mulheres que deram à luz entre março e dezembro deste ano com as mulheres que tiveram seus filhos nesses mesmos hospitais no mesmo período do ano passado. “Queremos saber, em primeiro lugar, se houve diferença no número de mortes. Houve alteração no número de cesarianas? Houve diferença no número de complicações no parto? Porque se houve aumento nesses casos, a hipótese é que isso se deve à COVID-19”, afirma Bianchi. O estudo acompanhar 1.500 grávidas positivadas para COVID-19 para entender o desenvolvimento da doença e seu tratamento.
O estudo Priority, da Universidade da Califórnia, em São Francisco e Los Angeles, tem uma abordagem diferente. A ideia é criar um enorme registro nacional de mulheres que contraíram a COVID-19 em algum momento da gestação e acompanhá-las por pelo menos um ano após o parto, ou aborto. Uma das metas é que esse registro seja geográfica, racial e economicamente mais diverso que a maioria dos estudos acadêmicos, “porque queremos que os resultados reflitam com precisão a verdadeira representação das grávidas impactadas pela COVID-19”, explica Vanessa Jacoby, professora associada da Universidade da Califórnia em São Francisco e uma das principais pesquisadoras do projeto. Para isso, a equipe está trabalhando com líderes de comunidades negras de todo país para que a notícia do estudo chegue diretamente a participantes em potencial, dispensando a intermediação de médicos ou hospitais. Nas primeiras semanas, muitas das mulheres que se inscreveram eram profissionais de saúde grávidas.
Outro projeto da universidade, o Aspire, vai focar nos primeiros meses da gestação, quando os riscos de problemas congênitos e abortos são maiores, e deve envolver 10 mil mulheres. “Essa doença nos desafia porque é nova para seres humanos e aprendemos mais e mais sobre suas manifestações em tempo real”, diz Bianchi. “Ainda não acompanhamos um ciclo completo de nove meses em grávidas, e por isso me preocupam bastante as consequências da infecção no primeiro trimestre da gestação”. Ela cita o caso da zika, que se acreditava ser uma doença benigna, porque homens e mulheres que não estão grávidas têm sintomas leves. Só depois que recém-nascidos apresentaram microcefalia os pesquisadores se deram conta de como o vírus podia ser devastador.
Os inesperados casos de crianças com COVID-19 que apresentaram a síndrome inflamatória multissistêmica deixaram os pesquisadores ainda mais preocupados. Num grupo de Facebook que reúne cerca de 4 mil ginecologistas e obstetras, médicos trocam histórias de aumento do número de abortos e natimortos, embora sejam apenas relatos anedóticos: eles não sabem, porém, se estão vendo um aumento real causado pela COVID-19, provocado por alguma outra coisa ou uma obra do acaso ampliada por sua própria ansiedade. E o quê podem significar os casos de transtornos de coagulação relatados em jovens para mulheres grávidas e mães de recém-nascidos, que já são mais suscetíveis a quadros de trombose?
“Essa falta de conhecimento é assustadora”, afirma Jane van Dis, ginecologista-obstetra da área de Los Angeles e diretora médica da Maven, plataforma de telemedicina voltada para a saúde da mulher e que ajuda a administrar a página do grupo no Facebook. “É terrível dedicar a vida inteira a um assunto e saber que esperam que você seja um especialista e que tenha respostas que você ainda não tem. E há respostas importantes que precisamos ter”.
A verdade é que essas respostas podem ser enganosas. “Esse vírus continua a nos surpreender”, diz Sonja Rasmussen, ex-diretora do Departamento de Doenças Infecciosas do CDC e que atualmente é professora de pediatria e epidemiologia da Faculdade de Medicina da Universidade da Flórida. “Foi isso que aconteceu com a zika e o ebola”. Uma das mais valiosas lições de outras pandemias, diz ela, “é que você não pode ter muita confiança cedo demais. Isso mostra a importância da coleta de dados, e de não ter certezas sobre o que você pensa antes de ter esses dados em mãos. Você tem de manter a mente aberta”.
Nina Martin é repórter que cobre temas relativos a sexo e gênero, que vive em Berkeley, Califórnia.