Dá para "otimizar função das mitocôndrias" com dieta?

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12 jun 2020
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melancias

 

Inspirado pelo e-mail de um de nossos leitores que perguntou sobre "dietas para mitocôndrias", comecei a ler sobre dietas que prometiam otimizar a função dessas organelas. A princípio, achei que era algo que estava no submundo dos grupos de Facebook, mas logo nas primeiras buscas por “dieta mitocôndria” encontrei o nome da Dra. Terry Wahls e seu Protocolo Wahls. Vi também que ela já tinha participado do TEDx Iowa City em 2011.

As conferências TED (Technology, Entertainment and Design) já foram assistidas por milhões de pessoas e provavelmente podem ter afetado o comportamento e o pensamento de milhares delas nas últimas três décadas e meia. Com o slogan “Ideias que merecem ser disseminadas”, a conferência já foi palco para pessoas mundialmente reconhecidas, como Bill Gates, que em 2015 falou sobre o perigo da próxima pandemia, e também pessoas menos conhecidas, mas que tiveram seus vídeos visualizados milhões de vezes.

O formato da conferência deu tão certo que, em 2009, foi criado o TEDx, que é um programa de eventos locais organizados de forma independente, mas seguindo diretrizes do TED oficial. Como veremos a seguir, pode ser que seja uma boa ideia considerar se certas ideias que chegam a esse palco merecem mesmo ser disseminadas.

Cuidando de suas mitocôndrias

No TEDx, Wahls conta sua história de vida, desde a adolescência lutando karatê, a formatura em Medicina e até o dia em que foi diagnosticada com esclerose múltipla (EM), doença em que o sistema imunológico destrói a cobertura protetora dos nervos e ocasiona a perda gradual dos movimentos, e passou a utilizar uma cadeira de rodas. Essa condição despertou seu interesse em estudar doenças neurodegenerativas, como as doenças de Huntington, Parkinson e Alzheimer. Segundo as fontes de estudo da Dra. Wahls, todas essas doenças tinham algo em comum: as mitocôndrias não funcionam bem, levando ao encolhimento do cérebro.

Com isso em mente, Wahls relata que começou a tomar pílulas de suplementos alimentares que continham vitamina B, enxofre e antioxidantes, pois esses eram os principais elementos que, segundo suas pesquisas, as mitocôndrias necessitavam. Insatisfeita em ter que tomar mais pílulas, além dos medicamentos que já tomava para a esclerose, Wahls se perguntou se seria possível encontrar esses elementos de uma forma mais natural, em alimentos.

Para tornar a apresentação mais próxima do público, a Dra. Wahls relata que não encontrou em seus livros onde essas vitaminas poderiam estar, quais legumes comer, quais verduras tinham mais enxofre ou os antioxidantes. E ela descobriu tudo isso na internet! Fora dos livros e do mundo acadêmico. O conhecimento popular estava lá e não era necessário ser uma doutora para encontrá-lo. Ela também faz um breve questionamento sobre os hábitos alimentares da classe média americana e mostra a foto a seguir:

Dieta de uma família de classe média americana

Podemos perceber a quantidade de alimentos processados, baratos e fáceis de cozinhar. Ela não diz se essa era a dieta dela antes de ser diagnosticada com EM, mas a narrativa nos leva a entender que sim.

O segundo momento de epifania da Dra. Wahls foi quando ela associou a dieta saudável que envolvia porções generosas de frutas, legumes, verduras e proteína animal, à dieta que nossos ancestrais caçadores-coletores supostamente comiam há mais de 40 mil anos, conhecida hoje como dieta paleolítica. Eis que surge o Protocolo Wahls, uma adaptação da dieta paleolítica para alimentar seu cérebro e sua mitocôndria.

Em sua apresentação no TEDx a Dra. Wahls descreve como foi sua recuperação milagrosa, dizendo: “Eu me tornei uma caçadora-coletora dos dias modernos e isso mudou minha vida. Nem os melhores remédios da época estavam surtindo efeito”. Próximo ao fim da apresentação, ela mostra fotos de uma recuperação lenta e gradual. Abandonou a cadeira de rodas, depois os apoiadores e, então, começou a cavalgar e andar de bicicleta em menos de um ano. O vídeo conta com mais de três milhões de visualizações e a história de vida da Dra. Wahls também virou livro. O Protocolo Wahls, que contém dicas e receitas da dieta desenvolvida por ela, também se disseminou por diversas plataformas. Você pode ainda fazer o curso do Protocolo Wahls e se tornar um profissional certificado.

Mas, e essa ideia de que a dieta do Protocolo Wahls modifica a atividade das nossas mitocôndrias vem de onde? Os artigos científicos publicados pela Dra. Wahls, será que demonstram mesmo que a dieta pode curar pessoas com EM, e que isso está relacionado ao funcionamento das nossas mitocôndrias? Foram com essas perguntas que eu fiquei na cabeça ao terminar de assistir a apresentação no TEDx.

 

A ciência das dietas da mitocôndria

Os únicos estudos que apoiam as alegações da Dra. Wahls são as pesquisas que ela própria conduziu, após sua experiência pessoal. O primeiro estudo constatou que os participantes analisados, todos vivendo com EM e que adotaram uma dieta Wahls, experimentaram menos fadiga (em avaliação pessoal, subjetiva) e tiveram melhor desempenho em determinadas medidas de mobilidade. Nada sobre mitocôndrias.

As mitocôndrias existem dentro das nossas células e geram moléculas ricas em energia química, o ATP, ou adenosina trifosfato. Se a Dra. Wahls quer que as pessoas acreditem que sua dieta paleolítica modificada afeta diretamente as mitocôndrias, ela teria que demonstrar isso de alguma forma: por exemplo, auferir a produção de ATP nas células de seus pacientes e comparar com o que acontece em pessoas com alimentação mais padrão. Mas seu trabalho não descreve nenhum esforço nesse sentido.

Em uma entrevista de 2013 para o blog do HUFFPOST, Wahls afirma que “embora a EM não tenha sido estudada (a respeito dos efeitos nas organelas), decidi que as mitocôndrias também são importantes nessa doença”.

Bom, não é porque a gente decide que alguma coisa é verdade que ela se torna verdade.

Outro problema é que o estudo pioneiro acompanhou apenas seis indivíduos com EM, que seguiram as orientações do grupo da Dra. Wahls. Por fim, o estudo não tinha um grupo controle, que contaria com pacientes que não aderiram ao protocolo.

Portanto, até o momento, a alegação de que a dieta Wahls provoca alterações nas mitocôndrias é insustentável. Embora os artigos científicos publicados pela cientista tomem o cuidado de dizer que a dieta não é a cura para EM, que mais estudos precisam ser conduzidos e que as pessoas com EM não devem abandonar o tratamento com os medicamentos convencionais, os produtos vendidos pelo site da Dra. Wahls não deixam essas informações tão claras. Inclusive, no TEDx a mensagem é que foi a dieta milagrosa que salvou sua vida.

 

Indicações certas pelos motivos errados

A Dra. Wahls passou longe de produzir alguma evidência científica a respeito da sua dieta milagrosa ter efeito sobre mitocôndrias, ou na melhora de pacientes com EM. E que fique claro que a crítica é em relação à associação de uma dieta com a cura de pessoas com EM. A fala sobre mudar o hábito alimentar da população é totalmente válida, mas não pelos motivos apresentados por ela em seus livros e cursos, que chegam a custar algumas centenas de dólares.

Fiquei surpreso também com a coragem dela de abrir um tópico no reddit (rede social que se assemelha a um fórum de discussões) e responder a perguntas da comunidade. Inclusive a pergunta do motivo de o primeiro estudo ter sido publicado em uma revista que aceita artigos sobre práticas alternativas, como acupuntura e homeopatia. A resposta não é satisfatória – ela alega que apenas aquela revista teria expertise para avaliar seus trabalhos – mas, mesmo assim, é uma atitude científica de abertura à crítica que deveria ser mais comum.

Nesse mesmo fórum também há relatos de muitas pessoas com EM que não encontraram benefício na dieta especial. Um dos usuários escreve: “minha dieta sempre foi saudável pra cac$@#” e que se alguém perguntar mais uma vez pra ele se eu já tentei a dieta Wahls, vou surtar”.

 

Luiz Gustavo de Almeida é doutor em microbiologia e pesquisador do Laboratório de Genética Bacteriana do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo, e atual coordenador nacional do Pint of Science no Brasil

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