Andam misturando quarentena com cloroquina? Deve ser isso. As pessoas devem estar confusas. Afinal, ambas as palavras são paroxítonas, têm a segunda sílaba com erre e terminam com “na”. Por isso, vale a pena lembrar. Quarentena: uma única forma confiável de reduzir o contágio da Covid-19 e, consequentemente, diminuir a quantidade de óbitos. Ainda na dúvida? Veja a revisão sistemática que analisou 29 estudos sobre os efeitos da quarentena sobre a propagação da doença e chegou à mesma conclusão: “a quarentena é importante para reduzir a incidência e a mortalidade durante a pandemia da Covid-19”. Cloroquina: medicação principalmente empregada para tratamento e profilaxia da malária. Além disso, também apresenta eficácia clínica no tratamento de doenças como lúpus e febre reumatoide.
Do ponto de vista laboratorial, esse medicamento tem sido analisado como uma importante ferramenta para combater infecções causadas por microrganismos intracelulares, o que poderia se aplicar ao caso do SARS-CoV 2. Apesar dos testes in vitro e experimentais apresentarem resultados animadores, sua eficácia e segurança ainda não foram comprovadas no combate ao novo vírus. Isso porque, além da própria doença gerar uma imunidade natural (e possivelmente permanente) nos indivíduos, o medicamento também pode causar problemas cardíacos e intoxicação hepática. Cético? Veja o artigo “Tudo o que você precisa saber sobre cloroquina e Covid-19”, publicado na Revista Questão de Ciência.
Recentemente, um estudo com cloroquina realizado em Manaus (AM) foi interrompido depois de registrar 11 mortes em seis dias. Como bem colocou a professora Natalia Pasternak, em conjunto com Luiz Gustavo de Almeida, doutor em microbiologia, “não existe, até o momento, comprovação de que o medicamento para malária hidroxicloroquina seja útil no combate ao novo coronavírus, causador da atual pandemia da doença respiratória COVID-19”.
Essa confusão parece ter contaminado também o juízo de alguns representantes políticos, formuladores de políticas públicas, e até mesmo intelectuais. Certo dia ouvi de um ex-professor que “a Suécia não adotou isolamento social e está conseguindo administrar relativamente bem o contágio”. Eu (Dalson) retruquei e disse que era questão de tempo até a situação virar. E virou. Em entrevista coletiva realizada em 31/03/2020, o primeiro ministro, Stefan Löfven, afirmou que “que país não se preparou bem para a crise causada pela COVID19” (ver). Ainda meio desconfiado? Veja os dados. O Gráfico 1 mostra a variação da quantidade de casos confirmados e da taxa mortalidade por 1 milhão de habitantes na Escandinávia[i].
Suécia, Dinamarca, Noruega e Finlândia exibiam níveis semelhantes de contágio em meados de março (ver figura da esquerda). Adivinhe qual foi o único país que rejeitou a quarentena como política pública contra a COVID-19? Se você disse Suécia, parabéns (ver aqui, aqui, aqui e aqui). Essa comparação é interessante porque o clima dos países é muito parecido, os indicadores sociais são semelhantes, mas a opção institucional de combate à COVID-19 foi diferente.
Como pode ser observado, a taxa de mortalidade (mortes por milhão de habitantes) da Suécia (102,28) atualmente é o dobro da letalidade registrada na Dinamarca (51,62), que aparece em segundo lugar (ver figura da direita). Ou seja, a ausência de medidas agressivas de isolamento social claramente conduz a situações epidemiológicas mais graves, em que tanto a incidência da doença quanto a mortalidade da COVID-19 são mais altas. Comparativamente, China e Coreia do Sul são considerados casos de sucesso no controle da propagação da doença. Vejamos o que dizem os dados (Gráfico 2).
Converse com um médico ou um epidemiologista, como o Wanderson de Oliveira, Secretário Nacional de Vigilância em Saúde. Ele dirá a mesma coisa: a inflexão da curva de crescimento e o formato de S indica redução no ritmo de contágio, uma desaceleração, para usar o termo da Física. O Gráfico 3 ilustra a variação na quantidade de óbitos no Brasil, na China e na Coreia do Sul.
O Brasil, com 1.736 óbitos em 15 de abril de 2020, já superou a quantidade de mortes da Coreia do Sul, que atualmente contabiliza 225 ocorrências fatais (ver linha azul). Olhe para a figura da direita, na escala logarítmica, qual é a sua expectativa? Se você pensou que o Brasil deve ultrapassar a China nos próximos dias, você está absolutamente correto. É uma questão de tempo até nosso país romper a marca de 3 mil óbitos (talvez menos de uma semana). E o que dizer sobre a situação da América Latina? O Gráfico 4 compara a evolução da quantidade de casos diagnosticados na Argentina, Brasil, Chile, Equador e Uruguai.
Observe que a curva do Uruguai, que adotou medidas consistentes de isolamento social, parece caminhar rumo ao tão sonhado “S” (ver figura da direita). Ainda é cedo para falar sobre a Argentina, que atualmente registra pouco mais de 2.400 casos confirmados. Por outro lado, o Brasil exibe um comportamento muito parecido com a tendência observada no Equador, um dos países mais afetados pelo Coronavírus na América Latina (aqui). O Gráfico 5 ilustra a variação da quantidade oficial de mortes por Covid-19 em perspectiva comparada.
A situação crítica do Equador levou a escritora Solange Rodríguez Pappe a afirmar que “minha cidade é hoje uma necrópole”, referindo-se à capital, Guayaquil (aqui). Curioso notar que a tendência de mortalidade observada no Brasil segue a mesma direção. Hoje, de acordo com o Ministério da Saúde, foram contabilizados 204 óbitos nas últimas 24 horas, o que significa 8,5 vidas perdidas a cada 60 minutos. Não existe solução mágica. Se o objetivo é evitar mortes, a evidência científica disponível indica que o caminho mais seguro é o isolamento social. Vamos deixar a cloroquina para quem realmente precisa. E, se mais na frente ela se mostrar efetiva, será utilizada para tratar de todos os doentes, inclusive daqueles rejeitaram à quarentena.
Dalson Britto Figueiredo Filho é professor-assistente de Ciência Política na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
Lucas Silva é cientista político e estudante de Medicina na Universidade Estadual de Ciências da Saúde de Alagoas
Enivaldo Rocha tem graduação em Estatística (UFPE), mestrado em Estatística (USP) e doutorado em Engenharia de Produção (UFRJ). É professor titular aposentado da Universidade Federal de Pernambuco e membro do Grupo de Métodos em Pesquisa em Ciência Política (MPCP)
NOTA
[i] A ideia de comparar os países da Escandinávia foi originalmente apresentada por Atila Iamarino, no vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=vEwDdXim8bQ