As várias faces de Hipátia de Alexandria

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25 abr 2019
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Ilustração francesa do século 19, com visão do ataque a Hipátia
Ilustração francesa do século 19, com visão do ataque a Hipátia

Em 2009, o cineasta Alejandro Amenábar trouxe a história de Hipátia, filósofa e matemática alexandrina, para as telas do cinema através do longa-metragem “Ágora”. O filme retrata a vida de Hipátia, uma das poucas mulheres de ciência da Antiguidade Clássica cuja vida foi bem documentada. O reconhecimento de sua vida pelos historiadores mais antigos deve-se à sua grande influência política e às circunstâncias trágicas de sua morte. 

Vista como uma mulher sábia, sua reconhecida erudição e autoridade moral eram cobiçadas pelos governantes que buscavam seus conselhos, o que garantia a ela uma participação ativa nos assuntos da cidade. Por volta dos seus 60 anos, em meio a um contexto de conflito religioso e sob suspeita de ciúme e desavenças políticas, Hipátia é assassinada de forma brutal por um grupo de fanáticos, que despedaça e queima seu corpo.

Se o objetivo era silenciá-la e apagá-la da história, seus detratores não obtiveram êxito.Hipátia seguiu sendo lembrada por religiosos, cientistas e filósofos de sua época e, até os dias de hoje, continua a aparecer como símbolo heroico, apropriado em diferentes narrativas, ideologias e propósitos. 

Tudo aquilo que conhecemos sobre Hipátia vem de terceiros, pois nada que fosse de sua autoria sobreviveu. Os fatos de sua vida vêm principalmente de quatro fontes: a História Eclesiástica de Sócrates Escolástico, a Crônica de João de Niquiu, as cartas sobreviventes de Sinésio de Cirene, que foi aluno de Hipátia, e A vida de Isidoro de Damáscioem Suda. Tais documentos históricos nem sempre representam uma narrativa imparcial e precisa dos fatos. 

Por séculos, isso acrescentou dificuldades para um saber seguro sobre os acontecimentos da época, além de facilitar a criação de uma lenda sobre Hipátia. Atualmente, ainda que seja possível uma descrição mais segura de quem ela foi, estamos muito longe de efetivamente conhecê-la. Hipátia tornou-se uma figura bastante atrativa para as mais diversas imprecisões históricas.

O filme de Amenábar tem sido alvo de críticas por difundir informações sobre Hipátia que nada têm a ver com sua biografia. Entre as críticas mais comuns, estão a falta de evidências dos acontecimentos que marcam suas realizações - como uma possível adesão ao heliocentrismo - e a representação dos cristãos como ignorantes e fanáticos. Boa parte das críticas relaciona as distorções do enredo ao fato de que Amenábar é ateu. No entanto, a versão do cineasta não pode ser considerada, no curso da história, uma invenção contemporânea. 

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Cena do filme de Amenábar

Amenábar é herdeiro de uma longa tradição em torno da lenda de Hipátia. Essa lenda, derivada da literatura e não dos textos antigos, se desenvolve sob uma perspectiva reducionista e romântica, como mostra Maria Dzielska (2004, p.7): “se você perguntar quem era Hipátia, a resposta mais provável será: uma filósofa pagã, jovem e bonita, que em 415 foi despedaçada por monges (ou, mais genericamente, por cristãos) em Alexandria”. Com o tempo, essa versão foi desdobrada em três grandes perspectivas que mesclam elementos entre si: a religiosa, a científica e mais recentemente, a de gênero. 

Neste ensaio, proponho uma análise do filme “Ágora” passando por um estudo crítico dessas três perspectivas, que embora não sejam totalmente falsas, alimentam preconceitos e meias-verdades.

A visão religiosa

O mais conhecido desdobramento da lenda representa Hipátia como símbolo do declínio da civilização grega e o prelúdio da “Idade das Trevas”. Essa versão dos fatos aparece pela primeira vez na literatura durante o século 18, em pleno iluminismo europeu. O filósofo protestante John Toland utiliza a figura de Hipátia para fomentar polêmicas de cunho religioso. 

Ele publica um longo ensaio em forma de panfleto com o título “Hipátia, ou a história da dama mais linda, mais virtuosa, mais culta e mais realizada, que foi despedaçada pelo Clero de Alexandria, para satisfazer o orgulho, a inveja e a crueldade do arcebispo, comumente, mas imerecidamente intitulado, São Cirilo”. Ao contar a sua história, Toland enfatiza a atuação do clero de Alexandria, liderado pelo patriarca Cirilo: "Um bispo, um patriarca, além disso, um santo é o promotor de uma ação tão aterradora, e seu clero, o executor da fúria, tão implacável”. 

O ensaio de Toland é recebido com indignação pelos círculos da Igreja, e desencadeia a reação imediata de Thomas Lewis, em defesa de São Cirilo. Contudo, o trabalho de Toland ganha enorme popularidade e exerce considerável influência sobre a elite iluminista. Voltaire é um dos que herdam a narrativa de Toland. Com o intuito de atacar a Igreja, descreve a morte de Hipátia como: “um assassinato bestial perpetrado pelos cães tonsurados de Cirilo, com um bando de fanáticos por trás dele”. Segundo o filósofo, Hipátia é assassinada porque acredita nos deuses helênicos, nas leis racionais da natureza e na capacidade da mente humana se ver livre de dogmas. 

A partir de Toland e Voltaire, surge o primeiro elemento presente em quase todas as narrativas lendárias sobre Hipátia: a ideia de que ela nutria alguma aversão ao cristianismo. Contemporâneo de Voltaire, um importante historiador inglês chamado Edward Gibbon, influenciado pela corrente iluminista, se encarrega de desenvolver a lenda por completo. Segundo Gibbon, Hipátia costumava professar a religião típica dos gregos (paganismo) e ensinar filosofia publicamente, tanto em Atenas quanto em Alexandria. Tendo ela recusado a conversão religiosa (assim como ilustrado em “Ágora”), Cirilo planeja sua morte e é o responsável por todos conflitos de Alexandria no início do século 5. Além disso, o historiador afirma que o crime não foi punido porque “o cristianismo vê com mais bom grado o sangue de uma virgem, que o exílio de um santo”. Com Gibbon, a lenda de Hipátia também ganha moral da história: a consolidação do cristianismo é a principal causa do declínio da antiga civilização. 

Para representar sua tese, o historiador usa Hipátia e Cirilo como imagens que contrastam o velho e o novo mundo: um mundo de razão e espiritualidade (Hipátia) contra o fanatismo e indecoro cristão (Cirilo). A tese de Gibbon marca quase todas as posteriores representações artísticas e literárias sobre Hipátia. 

O filme “Ágora” claramente incorpora a tese, apresentando Hipátia como vítima inocente de uma nova religião, fanática e voraz. No filme, Cirilo faz o papel de "inimigo da Razão", oposto ao papel de Hipátia de "defensora do conhecimento e da verdade". Em determinada cena, Hipátia é confrontada por Heladius com a acusação de que ela não tem nenhuma religião (“alguém que não acredita em absolutamente nada”) e ela responde "eu acredito na filosofia".  Mais tarde, Cirilo descreve-a como "uma mulher que declarou, em público, sua impiedade". Na sequência, o filme dá a entender que Hipátia é condenada à morte por seu ateísmo, mas está informação não se encontra em nenhuma das fontes antigas.

A frase fictícia do filme, “eu acredito em filosofia”, deve ser interpretada sob a consideração de que a filosofia incorporava elementos religiosos, lógicos e místicos. Hipátia não dava sinais de completa devoção religiosa, mas mantinha sua religiosidade de um modo mais particular e espiritual. Os dados históricos apontam que, como a maioria dos filósofos naturais de seu tempo, ela abraçou as ideias neoplatônicas de Plotino e, assim, seus ensinamentos e ideias atraíram um grande número de pessoas - pagãos, cristãos e judeus. 

Sinésio de Cirene menciona que eles estudavam os oráculos caldeus, bem como alguns textos cristãos, e comparou as aulas de Hipátia a uma experiência religios. Então, a ideia de que Hipátia não tinha religião, ou que não mantinha boas relações com os cristãos, tem pouco sentido. Da mesma maneira,  a cena do filme que a mostra presente na destruição do Serapeu (lugar de adoração pagã), lutando contra os cristãos, é provavelmente falsa.  

Cópia medieval dos "Elementos" de Euclides, um dos livros em que Hipátia trabalhou junto ao pai
Cópia medieval dos "Elementos" de Euclides, um dos livros em que Hipátia trabalhou junto ao pai

Sabe-se que seus alunos vieram de vários lugares do Império e ocuparam altos cargos na Igreja e no governo. Conhecemos os nomes de alguns por meio das cartas de Sinésio de Cirene que mais tarde se tornou bispo de Ptolemaida. Também é provavelmente falsa a associação de que o estudo e aprendizado eram considerados coisas de pagãos.  Os neoplatônicos – como Hipátia – eram próximos de uma visão monoteísta do mundo, por isso foram incorporados pelos primeiros teólogos judeus, que integraram os ensinamentos neoplatônicos à religião cristã.  

A filosofia neoplatônica é apresentada no filme com a cena do “pano de sangue” inspirada no relato de Damáscio. De acordo com a informação de Damáscio, um dos alunos de Hipátia se apaixona por ela e confessa seu amor. Hipátia resolve puni-lo e mostra seu pano higiênico, como símbolo da materialidade do corpo feminino, fazendo a seguinte afirmação: "É isso que você realmente ama, jovem, e não a beleza em si". Seguindo Plotino, a filósofa espera que seus alunos discípulos encontrem “a união com o divino”, e isso requer um esforço para que se tornarem belos e possam reconhecer a verdadeira beleza. Damáscio conclui a história: "Para o jovem, a vergonha e o espanto diante de uma apresentação tão inconveniente provocaram uma transformação espiritual". 

As versões de Toland, Voltaire, Gibbon e Amenábar acabam colocando Hipátia como vítima da religião, mas não mostram que Hipátia também buscava Deus por meio da revelação. Dotada de sabedoria moral, defendia o mesmo ascetismo que muitas vezes é interpretado como um obstáculo à verdade e ao progresso. Com a finalidade de descartar a hipótese do assassinato de Hipátia por motivações estritamente religiosas, temos também o relato de Sócrates Escolástico, que enfatiza o aspecto político por detrás do crime: 

[...] Hipátia, filha do filósofo Theon, que alcançou tais realizações em literatura e ciência, para superar de longe todos os filósofos de seu próprio tempo [...] No entanto, até ela caiu vítima do ciúme político que prevalecia naquela época. Pois como ela tinha entrevistas frequentes com Orestes, foi caluniosamente relatado entre a população cristã, que foi ela quem impediu Orestes de se reconciliar com o bispo. Alguns deles, portanto, apressados ​​por um zelo feroz e fanático, cujo líder era um leitor chamado Pedro, impediram-na de voltar para casa, e arrastando-a de sua carruagem, levaram-na para a igreja chamada Caesareum, onde a despojaram completamente, e então a mataram com telhas. Depois de rasgar seu corpo em pedaços, eles levaram seus membros mutilados para um lugar chamado Cinaron, e lá os queimaram. Este assunto não trouxe o mínimo opróbrio, não apenas sobre Cirilo, mas também para toda igreja de Alexandria. E certamente nada pode estar mais longe do espírito do cristianismo do que a permissão de massacres, lutas e transações desse tipo. (SÓCRATES apudDZIELSKA, 2004, p. 22). 

A visão científica 

Na literatura científica, Hipátia é geralmente lembrada pelo seu talento com a matemática e a astronomia e sua morte é tida como o declínio do ceticismo que leva à verdade frente à ascensão do obscurantismo dogmático. Durante o século 20, em meio ao positivismo, o cientista americano J. W. Draper descreve a filósofa como "defensora corajosa da ciência contra a religião, o espírito livre que busca a verdade no mundo material contra o religião supersticiosa (representada pela Igreja) que escraviza a razão”.Nota-se que Draper incorpora a versão de Gibbon e se permite ir além: “a partir de então [da morte de Hipátia] a ciência deve afundar na escuridão e na subordinação. Não é mais tolerado a sua existência pública”.

Bertrand Russell se expressa de maneira semelhante, iniciando a história do pensamento da Europa ocidental com uma imagem de São Cirilo: “A principal razão para sua fama é o linchamento de Hipátia, uma dama muito distinta, em uma época de fanatismo, professa a filosofia neoplatônica e dedica seu talento à matemática [...]. Depois disso Alexandria não volta a ser incomodada pelos filósofos”. Nas versões de Draper e Russell, Hipátia representa o desaparecimento da liberdade de investigação, e é tida como a última estudiosa da antiguidade clássica. O elemento da censura é acrescentado à lenda de Gibbon, com o fim de alertar os riscos do poder excessivo da Igreja para o conhecimento. Seguindo essa linha, uma referência bastante popular é dada por Carl Sagan em Cosmos(1980): 

O último cientista que trabalhou na Biblioteca foi uma matemática, astrônoma, física e chefe da escola de filosofia neoplatônica - uma extraordinária gama de realizações para qualquer indivíduo em qualquer idade. Seu nome era Hipátia. Nasceu em Alexandria em 370. Numa altura em que as mulheres tinham poucas opções e eram tratadas como propriedade, Hipátia movia-se livremente e sem embaraços através dos domínios masculinos tradicionais. [...] A época de Hipátia em Alexandria – estava a muito tempo sob o domínio romano –  era uma cidade sob grande tensão. A escravidão havia minado a civilização clássica de sua vitalidade. A crescente Igreja Cristã estava consolidando seu poder e tentando erradicar a influência e a cultura pagãs. Hipátia ficou no epicentro dessas poderosas forças sociais. Cirilo, o arcebispo de Alexandria, a desprezava por causa de sua estreita amizade com o governador romano, e porque ela era um símbolo de aprendizado e ciência, que foram amplamente identificados pela Igreja primitiva com o paganismo. Em grande perigo pessoal, ela continuou a ensinar e publicar, até que, no ano de 415, em seu caminho para o trabalho, ela foi atacada por uma fanática multidão de paroquianos de Cirilo. Eles a arrastaram de sua carruagem, rasgaram suas roupas e, armados com conchas, esfolaram sua carne de seus ossos. Seus restos foram queimados, seus trabalhos obliterados, seu nome esquecido. Cirilo foi feito um santo. (Sagan, 1980, p. 256)

Sagan liga o assassinato de Hipátia à destruição da Grande Biblioteca de Alexandria, transformando-a em mártir da ciência. Como já dito anteriormente, não há provas de que Hipátia estivesse no local quando isso aconteceu. Sagan e os demais autores também difundem o mito que coloca Hipátia como a última cientista da antiguidade. Felizmente para a história, a morte de Hipátia não representou o fim da investigação e ensino por parte das mulheres. Na segunda metade do século 5, temos a presença de Edésia, da escola neoplatônica, que viveu em Alexandria e era esposa de Hérmias e aparentada de Siriano de Alexandria, escolarca neoplatônico da Academia de Atenas. 

No funeral da Edesia, Damáscio a elogia como uma mulher universalmente admirada. Então, na verdade, o que sabe é que a morte de Hipátia coincidiu com os últimos anos do Império Romano, não havendo avanços significativos na matemática, astronomia ou física em qualquer lugar do Ocidente por mais 1000 anos. 

Muito se especula sobre o trabalho científico que Hipátia desenvolveu. Algumas afirmações derivam de cartas de Sinésio para Hipátia, onde ele lhe atribui a invenção do hidrômetro e de um astrolábio de prata.  Além disso, como mostrado no filme, especula-se que seu trabalho sobre as curvas cônicas possa ter levado Hipátia a considerar o heliocentrismo. Documentos históricos mostram que essas afirmações são falsas. 

Sistema ptolemaico geocêntrico
Sistema ptolemaico geocêntrico

Existem evidências sólidas de que o hidrômetro foi inventado antes e era de uso comum entre os gregos. Já a criação do astrolábio é pelo menos um século anterior a Sinésio e já era bem utilizado na época de Hipátia. Tudo o que se sabe sobre isso é que Theon escreveu sobre a construção de astrolábios, e Hipátia usava o instrumento para realizar cálculos astronômicos.

Também não está claro que Hipátia tenha sido uma cientista de primeira linha. Suas contribuições científicas são predominantemente comentários, que por vezes mesclam  aos de seu pai.  Hipátia ajudou Theon em muitas ocasiões, como na obra principal de Ptolomeu, o “Almagesto”: ela contribuiu revisando o texto, dando auxílio ao esforço do pai para obter uma edição confiável desse tratado. Theon também revisou e aprimorou osElementosde geometria de Euclides e a sua edição ainda está em uso hoje. 

Hipátia provavelmente trabalhou com ele nessa revisão. Mais tarde, ela foi coautora de pelo menos em um tratado sobre Euclides.  O trabalho mais importante de Hipátia foi em álgebra. Ela escreveu um comentário sobre a aritmética de Diofanto em treze livros. Diofanto viveu e trabalhou em Alexandria no terceiro século, e é conhecido como o "pai da álgebra". Seu trabalho consistiu em desenvolver equações com múltiplas soluções e equações quadráticas. Os comentários de Hipátia incluíram algumas soluções alternativas e novos problemas, posteriormente incorporados nos manuscritos de Diofanto. 

Hipátia também escreveu um tratado sobre as cônicas de Apolônio em oito livros. Apolônio de Perga foi um geógrafo alexandrino do século 3 AEC, criador de epiciclos para explicar as órbitas irregulares dos planetas, preservando a integridade do sistema geocêntrico, modelo em que a Terra é o centro do Sistema Solar. O texto de Hipátia foi considerado uma popularização desse trabalho. 

Seria mesmo possível afirmar, com base nesse trabalho, que a morte de Hipátia tenha atrasado a ciência por 1200 anos, até a chegada de Kepler? Tudo que nos resta é especulação. Não há evidências que Hipátia tenha contestado o sistema ptolomaico, como aparece no filme “Ágora” e, levando em conta o contexto histórico, isso tudo se torna bastante improvável. Theon, o pai de Hipátia, era um famoso estudioso de Ptolomeu e o sistema de Aristarco, com o Sol no centro, era visto com deboche por todos. 

A visão de gênero 

Uma curiosa característica da lenda criada sobre Hipátia é que ela se desenvolve seguindo as perspectivas e demandas de cada época. Pascal é quem acrescenta um novo e importante elemento: a misoginia.  Em sua reconstrução da história de Hipátia afirma que: "Obviamente, a perseguição contra Hipátia vem em grande parte de medida dessa tendência antifeminina, insolente e supersticiosa”. Para Pascal e autoras feministas posteriores, a morte de Hipátia representa uma profunda mudança no tratamento das mulheres. Com a ascensão do cristianismo, as mulheres, que anteriormente eram livres, foram condenadas ao silêncio.  

É verdade que o mundo filosófico grego era bem menos hostil às mulheres que o mundo cristão, porque os neoplatônicos tinham o entendimento de que a alma não tinha sexo, sendo assim se permitia que mulheres fossem educadas regularmente, pelo menos até o século 4 EC.

Todavia, não se pode ignorar o fato de que Hipátia fazia parte de uma elite intelectual (onde o culto da aristocracia era intenso), e esse círculo excluía mulheres.  Um dos alunos de Hipátia, Herculano, explica a Sinésio que ele despreza as mulheres, mesmo aquelas que o servem. O respeito à filósofa existia porque ela era vista além de sua feminilidade. Isso acaba por corroborar a cena em “Ágora” que representa o caráter misógino de Cirilo. Ele aparece citando um trecho de uma epístola paulina, Timóteo 2:12, para proibir que as mulheres exerçam autoridade sobre os homens. Embora não haja evidências de que Cirilo acreditasse na inferioridade das mulheres, é uma visão compatível com o contexto histórico da época.

Em meados do século 19, Hipátia surge como um símbolo, para as feministas, da supressão histórica das realizações das mulheres.  Muitos elementos fazem dela uma figura atraente ao feminismo. Um dos primeiros que poderiam ser citados é contado por Juan de Nikiu e exibido no filme Ágora. Após a morte de Teófilo, por volta de 412 EC, e a eleição de Cirilo como arcebispo da cidade, Hipátia começa a incomodar o governo pela sua amizade com Orestes (o prefeito) e sua ampla influência política. 

Cirilo e seus partidários se sente ameaçados, e propõem um plano de propaganda negativa entre a população de classe mais baixa, com a qual Hipátia não tinha vínculos. Eles a apresentam como uma bruxa, acusam-na de magia negra (a pior forma de bruxaria). Esses rumores caluniosos produzem os efeitos desejados, e entre os mais devotos surge um grupo que decide matar Hipátia.

Seções cônicas, curvas estudadas por Hipátia
Curvas cônicas, parte dos estudos de Hipátia

Na literatura feminista, as bruxas desempenham um papel marcante. São consideradas símbolos de resistência contra a misoginia, estigmatização, perseguição e depreciação das mulheres. Como conta Matilda Joslyn Gage no livro “Mulheres, Igreja e Estado” de 1893, a caça às bruxas durou mais de quatro séculos e ocorreu, principalmente, na Europa, iniciando-se, de fato, em 1450 e tendo seu fim somente por volta de 1750, com a ascensão do Iluminismo. 

A partir de relatos não oficiais, que foram revisados recentemente[1], a autora argumenta que durante esse período, cerca de 9 milhões de pessoas foram acusadas, julgadas e mortas e mais de 80% eram mulheres. As “bruxas”, contrariando o imaginário popular, eram mulheres comuns que, em sua maioria, não estavam envolvidas com feitiçaria. 

Nesse sentido, alguns autores feministas fazem um paralelo, relacionando a morte de Hipátia com as mortes das “bruxas” na Idade Média. Em um recente romance alemão, Arnulf Zitelmann retrata a história de Hipátia como sendo um ataque que marca o fim da Antiguidade e acrescenta: "Hipátia, a filha de Theon, foi o primeiro mártir da misoginia que mais tarde viria ao frenesi com a caça às bruxas ". Para eles, a morte de Hipátia e das “bruxas” são bastante similares, em ambos os casos, representam vítimas da ordem patriarcal e da repressão histórica do feminino. As feministas contemporâneas também reconhecem Hipática como símbolo de liberdade sexual, porque ela não seguia o que era esperado das mulheres de sua época: o casamento e a maternidade.

Em 1989, a poetisa feminista Úrsula Molinario faz um dos mais recentes registros literários sobre a vida de Hipátia. Molinario afirma que: “o assassinato precedido pela tortura da famoso filósofa Hipátia, pelas mãos de uma multidão de cristãos de Alexandria em 415 EC, marca o fim de uma era em que as mulheres ainda são apreciadas pela inteligência”. Uma tentativa de resistir a isso é colocada em prática por feministas contemporâneas com a criação de publicações acadêmicas feministas que levam seu nome: Hypatia: Estudos FeministasHypatia: A Journal of Feminist Philosophy.

Da lenda à verdade histórica

A lenda durou cerca de 1600 anos e ainda tem ressonância em nosso tempo. Como vimos, para alguns, a morte de Hipátia representa o fim de uma era; para outros, marca o fim do paganismo e o triunfo do cristianismo; ainda há aqueles que acreditam que seu assassinato concluiu um período em que as mulheres desfrutavam de oportunidades intelectuais e influência política que não estariam disponíveis novamente até os tempos modernos.

Para além de debater os detalhes de sua morte, o mais importante é mostrar o que ela não significou. Seu assassinato não representou nem o fim do paganismo, nem da investigação filosófica e científica. As comunidades pagãs sobreviveram apesar dos repetitivos esforços de supressão pelo governo. Os ensinamentos filosóficos, as observações astronômicas e muitos comentários sobre as obras de Platão e Aristóteles continuaram sendo produzidos no quinto e no sexto século. 

Por fim, podemos fazer um breve relato da história de sua vida. Hipátia nasce por volta de 351 EC (alguns estudiosos elevam a data para 370) e, ao contrário do que o filme mostra, ela não pode ter morrido tão jovem. Sua morte aconteceu por volta de seus sessenta anos de idade, considerada uma idade já bastante avançada para a época. Como filha e colaboradora de seu pai, é muito apreciada nas fontes históricas e descrita como superior a ele em talento.

 

Hipátia na Biblioteca de Alexandria, em cena do filme "Ágora"
Hipátia na Biblioteca de Alexandria, em cena do filme "Ágora"

Suas qualidades são mencionadas em todas as fontes, o que reforça sua figura bastante estimada e respeitada na cidade. Theon morre nos primeiros anos do quinto século e, contrariando a versão de Amenábar, que o mostra sendo ferido durante a destruição do santuário do Serapeu, a causa de sua morte é desconhecida.        

Com a queda do Serapeu, as atividades filosóficas de Hipátia continuam, porque ela não estava inserida no conflito entre pagãos e cristãos. Também não dava audiências públicas (seus alunos pertenciam à elite social).  A independência e tolerância intelectual de que gozava começa a mudar com a eleição de Cirilo, sobrinho de Teófilo. Cirilo acumula muitas desavenças com o prefeito da cidade, Orestes. Orestes é, inclusive, atacado fisicamente por monges que apoiavam o arcebispo (essa cena é mostrada em Ágora).

Em parte, a posição de Orestes é atribuída a alianças políticas. Sócrates Escolástico menciona Hipátia como sendo uma das mais importantes aliadas. Ele diz que os homens "da população cristã" começam a espalhar o boato difamador de que Hipátia é o “leão no caminho” da reconciliação entre o bispo e o prefeito.  Hipátia defende um governo civil secular e que preze pelo diálogo, ao invés da violência. Ela compartilha com Orestes a ideia de que a autoridade do bispo não deve se estender a setores da administração municipal. 

Damáscio relata que Cirilo e seus partidários percebem a influência de Hipátia fora de Alexandria, também invejam sua boa relação com a aristocracia e chegam à conclusão de que ela é uma ameaça. Um grupo de apoiadores de Cirilo encontra uma maneira de se livrar dela e manchar sua reputação: divulgam entre as classes mais baixas (com quem ela não tinha muita afinidade) que estaria envolvida com feitiçaria e, mais especificamente, magia negra. 

O rumor se espalha rapidamente, e um grupo de parabolanos, cristãos de classe baixa dedicados a serviços voluntários e à segurança do bispo, decide matar a filósofa. Em março de 415, quando Hipátia retorna para casa, uma multidão a arrasta para fora da carruagem e a leva para a igreja de Cesarium, um antigo templo do imperador. Lá, arrancam suas roupas e a despedaçam com fragmentos de cerâmica. Depois disso, evam seu corpo para ser queimado em uma pira. 

Com base na análise das fontes, os fatos indicam que o assassinato de Hipátia constituiu  um crime político, tendo Cirilo como principal instigador. Aqueles que cometeram o crime continuaram impunes e espalhando censura pela cidade. Uma campanha de acobertamento foi orquestrada para proteger os detratores que assassinaram uma pessoa bem vista pela maioria dos cristãos. 

Em última análise, Hipátia foi uma vítima de um crime político que nunca pôde ser investigado adequadamente. A reconstrução de sua vida, com base nos fragmentos originais, é parte da luta de responsabilizar os verdadeiros culpados.

Amanda Soares de Melo é mestranda em Filosofia pela Universidade Federal do ABC (2018) com bolsa de pesquisa institucional. Bacharel em Ciências e Humanidades (2018) e em Filosofia (2019) pela Universidade Federal do ABC. Atuou em projetos de extensão e cultura (2016-2018). Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em Ética e Epistemologia, principalmente sobre os seguintes temas: filosofia e história da ciência e teoria feminista.

Nota

[1]A partir de 1970, na tentativa de separar os fatos da perseguição a determinados grupos religiosos, alguns historiadores passaram a rever a caça às bruxas europeia, atentando-se principalmente aos registros históricos dos julgamentos e deixando de lado fontes não oficiais. Com isso, houve um grande avanço e uma mudança de perspectiva sobre o tema. Por exemplo, de acordo com os novos estudos, o número de vítimas fatais não seria superior a 100.000, derrubando a tese, popular entre os círculos feministas, que estima em torno de 9 milhões de mortos. Ainda assim, há evidências suficientes de que a identificação da relação entre a caça às bruxas e a caça às mulheres permanece válida. Aproximadamente, 80% das vítimas eram mulheres e essa relação de gênero não pode ser excluída, pois constitui parte importante de análise do processo histórico. Mais informações disponíveis em: <http://www.faculty.umb.edu/gary_zabel/Courses/Phil%20281b/Philosophy%20of%20Magic/Arcana/Witchcraft%20and%20Grimoires/case_witchhunts.html>Acesso em 05 de Abril de 2019. 

Referências

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KREBS, F. “Inovadores experimentos científicos, invenções e descobertas da Idade Média e do Renascimento”, p. 196 (2004).

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MARGARET, Alic. “Women and Technology in Ancient Alexandria: Maria and Hypatia”, 1981, p. 309. 

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MINARDI, Cara. "Re-Membering Ancient Women: Hypatia of Alexandria and her Communities."Georgia State University, 2011. Disponível em <http://scholarworks.gsu.edu/english_diss/67>

ROSSER, S. "Mulheres, ciência e mito: crenças de gênero desde a antiguidade até o presente", ed. Sue Rosser, 2008, p. 13. 

SAGAN, Carl. “Cosmos”. New York: Random House, 1980.

WAITHE, M. E. “Ancient Women Philosophers: 600 B.C. - 500 A.D”. Martinus Nijhoff. 1987, p. 192. ISBN 978-90-247-3348-4

 

 

 

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