Em textos hoje clássicos[1], o antropólogo E.E. Evans-Pritchard descreveu as práticas tribais dos Azande, grupo étnico da África Central. Naquilo que se poderia descrever informalmente como um paroxismo lúdico, os Azande chegavam a decisões relevantes, seja de ordem individual (e.g., escolha de cônjuge) ou social (data de semeadura e colheita, ou promoção de guerras), por meio do que, sob um olhar Ocidental, se assemelhava a jogos, com diferentes níveis de complexidade.
Em um dentre os mais memoráveis desses procedimentos, o chamado “Círculo do veneno”, sacerdotes elaboravam uma poção tóxica que posteriormente davam de beber a galinhas. Na sequência, traçavam um círculo no solo e soltavam os animais que, já sob o efeito do líquido, perambulavam sem rumo pelo terreno. Conforme a disposição final das aves, os dirigentes inferiam as diretrizes que orientariam suas ações, muitas vezes cruciais para a vida de toda a comunidade.
O exemplo dos Azande, à parte o enorme interesse antropológico que suscita, evoca também questões epistemológicas prementes e práticas. Instintivamente, é claro que somos levados a desautorizar o procedimento de escolha descrito e atribuir-lhe irrelevância. Mas o que podemos efetivamente levantar contra esse modelo de decisão? Os Azande haviam se estabelecido na região há bastante tempo, e não ficavam a dever a outras tantas populações vizinhas.
O fácil argumento para-darwiniano de que adeptos de crenças erradas são eliminados pela mera dinâmica natural, não pode ser rapidamente aplicado ao caso. Assim, resta-nos basear nossa rejeição de maneira mais sistemática, sob o risco de julgar ou pré-julgar práticas alternativas simplesmente por se afastarem de nossas próprias, transformando-nos, assim, em alvo perfeito para um sem-número de ataques à monolítica visão eurocêntrica e cientificista.
Neste ponto, creio ser importante ressaltar duas afirmações que talvez, em conjunto, desagradem a todos. De um lado, não creio que exista um knock-down argument contra procedimentos como os dos Azande, algo que seja tão rapidamente aplicável quanto um cientista ocidental ortodoxo talvez gostaria que fosse. Essa, ao contrário do que parece, não é questão trivial, e merece aproximação mais cuidadosa.
De fato, ela envolve complexa discussão epistemológica que, em sua raiz, demanda entendimento mais rigoroso da própria noção de procedimento racional e científico (caso estejamos nos referindo à racionalidade empírica). De outro lado, receio também não poder fazer qualquer concessão ao relativismo antropológico ou gnosiológico e concluir que o Círculo do veneno pode ser equiparado ao método científico corrente. A meu ver, é desastrosa, inclusive ética e politicamente, a crença relativista, hoje cada vez mais frequente, de que todas as teorias e métodos são de certa forma equivalentes, e que não podemos defender a superioridade absoluta da ciência empírica no campo do conhecimento do mundo fenomênico.
É justamente no contexto das duas afirmações acima que o exame do exemplo dos Azande é instrutivo. Estamos falando, aqui, sobre decidibilidade racional, escolha racional entre teorias opostas, e os Azande sugerem métodos peculiares afastados da ortodoxia científica. Note-se, de saída, que não estamos aqui analisando a veracidade ou correção das teses chanceladas pelos diferentes métodos.
E temos aí um dos primeiros traços sinalizadores das complexidades com que estamos lidando, talvez algo contraintuitivo, mesmo, para alguns cientistas: procedimentos totalmente aleatórios podem, em princípio, acarretar a escolha de enunciados verdadeiros; da mesma forma que métodos racionais podem levar, e frequentemente levam, à escolha de enunciados falsos – algo que, diga-se de passagem, é frequentemente confirmado pela história da ciência. Essa, como dissemos, é uma das dificuldades óbvias para a obtenção do argumento rápido e cirúrgico contra procedimentos pretensamente científicos: a ciência não é um corpus composto de enunciados verdadeiros, da mesma forma que “métodos” como o “cara ou coroa” podem sim levar a respostas corretas.
Mas se a verdade não está circunscrita ao campo científico, qual seria o traço distintivo da ciência? A epistemologia contemporânea não considera a ciência como um conjunto de enunciados verdadeiros, mas sim como um conjunto de enunciados abordados de certa maneira: a ciência empírica é definida pelo método empregado na seleção dos enunciados que abriga. Em outras palavras, a ciência é definida pelo método científico.
Não é de se admirar, portanto, que, ao menos desde o surgimento da ciência, do século 16 em diante, um dos esforços maiores da filosofia tem sido o de identificar esse método. Afinal, surgiu no horizonte da história das ideias uma práxis que não apenas leva a resultados práticos cada vez mais interessantes, mas parece assegurar progresso epistêmico constante, com teorias que gradualmente superam as anteriores no conhecimento empírico que propiciam – algo totalmente revolucionário em relação ao panorama teórico anterior. Nada mais natural que a gnosiologia se interesse por esse protagonista, que aparenta ser (note-se que não se presume que seja) o que de melhor conseguimos no reino do conhecimento humano.
Ora, se a ciência é presumivelmente definível por seu método e se, em função mesmo disso, a identificação desse método tem sido, por quase cinco séculos, o Santo Graal de teóricos do conhecimento, qual a resposta a que se chegou?
Caso queiramos um quadro rigoroso das inúmeras propostas metodológicas apresentadas desde Francis Bacon, entramos em meandros tortuosos e múltiplos. Entretanto, correndo sempre o risco da simplificação inadequada, talvez possamos afirmar que as principais e mais sólidas correntes epistemológicas contemporâneas sustentam que o método científico, de maneira geral, é resultante da aplicação sistemática da crítica empírica desempenhada pela comunidade científica.
A comunidade de cientistas, balizada pelas noções cardeais de precisão, conteúdo empírico, universalidade, reprodutibilidade de testes, previsibilidade, aspectos estéticos etc., empreende debate intra-comunitário que, persistentemente empregado, leva a modelo que, embora não algorítmico ou dedutivo, viabiliza o debate racional e a escolha ajuizada entre teorias concorrentes.
Como disse, é claro que essa é uma rápida simplificação e generalização dos resultados meta-metodológicos a que chegaram diversas correntes epistemológicas contemporâneas. Na verdade, esses resultados expressam basicamente, e de maneira mais ampla, o preceito racionalista central, que inclusive transborda os limites da ciência, de se impor o reinado da crítica, seja no campo das teorias, científicas ou não (incluídas aí as conjecturas filosóficas e mesmo teológicas, por exemplo).
Não por acaso, aqueles enunciados não sujeitáveis à mais rigorosa crítica comunitária simplesmente não podem ser considerados racionais ou, no caso dos enunciados empíricos, científicos. Na mesma direção, quaisquer evidências definidoras de uma escolha teórica devem ser aceitas conforme o escrutínio crítico da comunidade, e só então passam a ser eficientes na fundamentação racional de um enunciado qualquer.
Dogmas religiosos, tanto quanto inclinações ou princípios assumidamente de foro pessoal ou subjetivo, são inevitáveis e talvez mesmo desejáveis ao longo da trajetória humana. Entretanto, sejam eles professados pelos Azande ou por europeus, não são, por definição, nem criticáveis, nem criticados, e não são, e nem devem fazer parte, portanto, da arquitetura de legitimação do conhecimento teórico racional e/ou científico.
[1] Cf. Evans-Pritchard, E.E. – Witchcraft, Oracles, and Magic among the Azande. Clarendon Press, Oxford, 1976. Edição abreviada da primeira edição publicada em 1937.
Jézio Hernani Bomfim Gutierre é professor de Filosofia da Ciência na FFC-Unesp e Diretor-Presidente da Fundação Editora da Unesp