Alice sempre foi uma boa aluna e também muito ativa no movimento estudantil, tanto no ensino médio quanto na faculdade, principalmente em causas ligadas ao direito da mulher. Depois de formada, foi trabalhar num banco. O que é mais provável: que tenha feito uma carreira brilhante, chegado a diretora, ou que tenha chegado a diretora e se tornado integrante de uma ONG de defesa da igualdade de gênero?
Se você ainda não conhecia a pegadinha, provavelmente escolheu a segunda opção – diretora e integrante de ONG – como mais provável. De acordo com a forma ortodoxa de analisar o problema, no entanto, você errou, e por uma razão simples: em cálculo de probabilidade, sempre que se aumenta a quantidade de condições a serem satisfeitas, o número final cai, porque cada nova condição restringe um pouco mais o universo de escolha.
Por exemplo, o número total de sul-americanos é maior do que o de sul-americanos que falam espanhol, porque a segunda opção exclui, entre outros, os brasileiros que nunca aprenderam a língua. Assim, a probabilidade de uma pessoa ser sul-americana sempre vai ser maior do que a de a pessoa ser sul-americana e falar espanhol.
Voltando à vida de Alice, a primeira opção tem apenas uma condição (chegar a diretora) e a segunda, duas (chegar a diretora e se inscrever numa ONG). Logo, numa análise estritamente racional, a primeira é mais provável do que a segunda. É interessante tentar entender por que a intuição diz – quando não grita – o contrário.
Uma resposta possível é que a segunda opção pode estar matematicamente errada, mas tem maior coerência narrativa. A história que conta, da militante juvenil que cresceu para ser uma profissional de sucesso e ativista, satisfaz nossas necessidades narrativas melhor do que a da profissional de sucesso, ponto. E é muito fácil, dada uma história que é boa, presumir que seja também verdadeira. Como dizem os italianos, “se non è vero, è ben trovato”. É fácil, sim, mas também é muito perigoso: a afinidade por narrativas torna-nos manipuláveis.
Narrativa sobre narrativas
Convicção – a sensação íntima de que sabemos alguma coisa, de que contamos com a informação correta para guiar nossas ações – pode ser produzida por meios racionais (evidências, argumentos) ou afetivos (narrativas, apelos a vieses, intuições, preconcepções e preconceitos). Mas, sendo ela própria um tipo de estado emocional, a convicção sempre brota com mais facilidade pela via afetiva.
O que, de um ponto de vista prático, faz sentido: como raramente temos acesso à informação completa (incluindo consciência plena de todas as premissas implícitas, conhecimento de todos os fatos relevantes, compreensão do contexto etc.) que seria necessária para formar um juízo perfeitamente racional, ainda mais em situações de tempo real, a via afetiva acaba sendo um atalho útil que, no mínimo, evita a paralisia da indecisão. Mas quando as duas vias entram em dissonância – quando a racional tem algo importante a contribuir, e numa direção que diverge da afetiva –, a tendência da convicção de “deixar-se levar” pela via afetiva pode ser, e frequentemente é, fonte de problemas e injustiças.
Curiosamente, existe todo um cabedal de narrativas que nos alertam para isso. Histórias sobre o poder da intuição e daquilo que os americanos chamam de gut feelings abundam e são muito populares (“use a Força, Luke...”), é verdade, mas há também toda uma respeitável tradição de contos sobre os perigos da conclusão precipitada, dos riscos de formar opinião com base em dados insuficientes, de deixar-se seduzir pela sereia do poder narrativo.
Em tempos recentes, essa tradição das narrativas sobre o perigo de se acreditar em narrativas parece estar ganhando proeminência. Não que a figura do “narrador pouco confiável” seja uma invenção recente – longe disso –, mas a impressão é de que ela está cada vez mais popular, mais ou menos como o apreço pela figura do anti-herói cresceu a partir dos anos 1970/1980. Até “Star Wars” embarcou na onda, na recente série “O Acólito”.
Falando em séries, “Disclaimer”, criada pelo cineasta mexicano Alfonso Cuarón, estrelada por Cate Blanchett e disponibilizada recentemente no streaming da Apple, talvez seja a manifestação mais sofisticada da tendência nessa mídia, até agora.
Ética
Esse movimento talvez seja – espero que seja – uma reação a pelo menos uma década de promoção renitente, inexorável, incansável, sufocante da ideia de que storytelling (o mesmo que “narrativa”, só que mais caro) seria a solução para todos os desafios da Humanidade, desde como vender panetones depois do Natal a até como aumentar a aceitação de vacinas.
Que narrativas têm poder didático e de persuasão não é uma descoberta recente; Aristóteles já dava a dica na “Arte Retórica”, lá se vão quase 2.400 anos. Mas a onda atual de supervalorização da forma narrativa enquanto meio persuasivo (em detrimento, por exemplo, da forma argumentativa ou dissertativa) vem embalada em três características peculiares: é condescendente (as pessoas são idiotas, logo não adianta usar lógica, melhor chegar com historinhas), exagerada (narrativa vira panaceia) e amoral (honestidade intelectual nem sequer é uma consideração).
Essas características derivam de um movimento ideológico anterior, o culto do sucesso e da eficácia como fins em si mesmos: importa o que funciona, não como, por que ou para quê. O imperativo de “perseguir sonhos” sem jamais parar para questionar se tais sonhos merecem ser perseguidos, ou se não haveria sonhos melhores. O reino da narrativa é uma província do império do narcisismo. Que os narradores mais sofisticados estejam, enfim, se insurgindo contra isso não deixa de ser uma boa notícia.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)