Muitos autores já chamaram atenção para o fato de que o ressentimento é uma característica definidora de movimentos de extrema-direita, em geral, e do fascismo, em particular. O argumento aparece, por exemplo, em editorial recente de The Economist. Ressentimentos nascem da percepção (justificada ou não) de que se é vítima de injustiças, e tornam-se sépticos quando somados à convicção (mais uma vez, justificada ou não) de que os responsáveis por corrigir o dano agem de forma incompetente, desonesta ou negligente.
O ressentimento que gera adesão ao fascismo tende a ser de natureza hierárquica: pressupõe-se a existência de uma hierarquia “justa”, que deveria ser observada na ordem natural das coisas, e estabelece-se a percepção de que ela foi, de algum modo, subvertida, e que essa subversão é, além de um mal moral em si, a causa de algum mal social. Que pode ser real ou imaginário: as opções vão da preocupação legítima com taxas elevadas de desemprego a pânicos fantasiosos sobre perversão sexual no pré-primário, ou surubas nas universidades.
O efeito será tão mais dramático quanto mais as hierarquias supostamente violadas estiverem inculcadas no senso-comum e codificadas em estruturas sociais – por exemplo, homens primeiro, mulheres depois; heterossexuais primeiro, homossexuais depois; brancos primeiro, negros depois; nosso povo primeiro, imigrantes depois; cidadão de bem primeiro, vagabundo depois; cristãos primeiro, umbandista, ateu e o resto bem lá depois. E assim por diante.
Privilégio divino
Um aspecto particular, e particularmente ridículo, do ressentimento hierárquico fascista é o mito da elite oprimida. Aqui não se trata mais de grandes grupos ou de identidades sociais (homens, brancos, héteros etc.), mas de recortes específicos, muitas vezes minoritários, que não apenas se sentem desprestigiados em relação a algum outro grupo: eles simplesmente são melhores e superiores a todos, e o fato de não receberem as honras e a glória devidas – de, em geral, não serem nem levados a sério – é mais do que um erro ou uma injustiça, é um pecado.
O elitista oprimido é o incel do mundo sócio-político-intelectual. O profeta seminal da raça foi, provavelmente, o filósofo reacionário francês Joseph de Maistre (1753-1821), que deixou copiosa obra onde afirma (e reafirma) sua inconformidade com a perda de poder e prestígio da aristocracia hereditária na Revolução Francesa, para ele uma abominação de proporções cósmicas. Um exemplo, extraído do livro “Considerações sobre a França”:
“Os direitos do povo, devidamente assim chamados, quase sempre emergem da concessão dos soberanos, e então podem ser localizados historicamente; mas os direitos do soberano e da aristocracia não têm nem data, nem autores conhecidos”.
Desse modo, ao ser privada de seus poderes e privilégios divinos (porque algo que não nasceu na história só pode, claro, ter vindo do Altíssimo) pela revolta da ralé, a aristocracia assume a forma de uma elite injustamente oprimida sob o tacão da malta indigna. O italiano Julius Evola (1898-1974), filósofo favorito de onze em cada dez fascistas ou neonazistas alfabetizados o bastante para ir além de Olavo de Carvalho (1947-2022), cita De Maistre com aprovação, por exemplo, em seu clássico “Revolta Contra o Mundo Moderno”:
“Deus faz reis no sentido literal. Prepara raças reais; amadurece-as sob uma nuvem que esconde suas origens. Elas aparecem, enfim, coroadas em honra e glória; elas assumem seus lugares; e este é o sinal mais certo de sua legitimidade”.
O historiador britânico Mark Sedgwik, que estuda os pensadores fundamentais da ideologia de extrema-direita do pós-guerra, refere-se a Evola como um direitista “radical demais para os fascistas” italianos dos tempos da 2ª Guerra Mundial. “Evola estava para Mussolini como Trotsky estava para Stalin”, define ele.
Tradição
O trabalho de Evola lançou a ponte entre o Tradicionalismo, visão místico-esotérica do francês René Guénon (1886-1951), o fascismo e o neonazismo. Não que o vale a ser coberto fosse especialmente largo ou profundo. O Tradicionalismo (corrente que exerce forte influência sobre o já mencionado Olavo de Carvalho, o papa do fascismo russo Alexandr Dugin e Steve Bannon, entre outros) tem dois componentes, que veremos a seguir.
Primeiro, a ideia de que existe um conhecimento primordial, uma tradição de origem mágica ou divina, que está por trás das doutrinas e rituais das grandes religiões do mundo, e das instituições políticas das grandes civilizações do passado. Trata-se de uma ideia absolutamente sem sentido e desprovida de lastro na realidade histórica ou antropológica. Faz tanto sentido quanto o difusionismo radical que anima os pseudoarqueólogos que dizem que, como os maias e os egípcios construíam pirâmides, os dois povos devem ter sido treinados pelos mesmos ETs.
Esse conceito de “sabedoria primordial” foi inventado originalmente por filósofos católicos da Renascença, como desculpa para poderem estudar e escrever sobre filosofia hermética e neoplatônica sem serem pegos pela Inquisição. Porque, afinal, essas coisas não seriam heresias pagãs, mas apenas outros frutos da mesma árvore da qual o cristianismo é a mais bela flor, e reforçariam a palavra da Igreja. O papo nem sempre colou, como o caso de Giordano Bruno (1548-1600) mostra (para mais detalhes, recomendo o livro de Frances Yates).
Segundo, a alegação de que o estado ideal das sociedades humanas seria o de um rígido sistema de quatro castas, com reis divinos e sacerdotes no topo e a massa trabalhadora na base, militares e empresários/comerciantes ocupando os estratos dois e três, respectivamente. A história da Humanidade seria cíclica, cada ciclo formado por quatro estágios. O primeiro é esse mundo ideal, que entra em decadência e então os reis cedem o poder aos militares (segundo estágio), que cedem ao pessoal do dinheiro (terceiro) que por fim, horror dos horrores, deixam o poder cair nas mãos do (argh) povo. Esse último estágio é a Kali-Yuga, a Idade das Trevas, e corresponde, caso alguém ainda não tenha adivinhado, ao ponto em que estamos hoje. Depois que a Kali-Yuga terminar seu trabalho de destruição, a história dá reboot e voltamos à Era de Ouro.
Dessa, digamos, "filosofia da história" nascem três cursos de ação possíveis, um mais contemplativo e outros dois com grande afinidade pelo fascismo e pelo terrorismo: restabelecer a elite teocrática a seu devido lugar; formar uma elite “secreta”, que será a “Arca de Noé”, a sementeira da próxima Era de Ouro; ou acelerar o caos, jogar o mundo na fogueira, para que a Kali-Yuga se encerre logo e possamos todos, então, voltar ao paraíso.
Assim como o conceito de sabedoria primordial, a visão cíclica da história não tem a menor sustentação na realidade. Não há defesa possível baseada em fatos (Evola tenta refutar a Teoria da Evolução apelando para mitologia grega e relatos bíblicos), e os argumentos são mais frágeis do que papel de arroz (no limite, tudo é “supra-racional”, além do alcance do discurso, apreendido pela “intuição intelectual”; não há o que explicar para espíritos inferiores, incapazes de entender).
Guénon, em particular, apela o tempo todo para a retórica marota de insinuar que ou você percebe que as premissas enunciadas são autoevidentes, e então é parte da elite; ou, caso contrário, é indigno do que ele escreve, portanto, mais um da ralé. O que não é um argumento, mas convence os leitores de autoestima frágil.
O pai do Tradicionalismo faz algumas críticas certeiras (porque óbvias) a aspectos particulares da modernidade – à monetização das relações humanas, à confusão ingênua entre progresso tecnológico e “progresso” num sentido mais amplo –, mas seu diagnóstico, de que a culpa é da separação entre Estado e Igreja e das aspirações e instituições democráticas, decorre não da análise de fatos ou de argumentos, mas de empáfia pessoal somada à nostalgia por um passado mitológico que nunca houve.
Há autores importantes (como Joscelyn Godwin) que o elogiam por apresentar um rigor intelectual muito superior ao da maioria dos místicos e ocultistas da New Age e da Teosofia, mas isso é meio como elogiar Paulo Maluf por não ser Jair Bolsonaro.
A única razão para alguém levar essas coisas a sério é a mesma que predispõe alguém a levar a sério a conversinha incel de que mulheres são malvadas e só fazem sexo com os homens “errados” – identificação pessoal com os preconceitos, a visão de mundo e o narcisismo magoado do autor. Em “A Crise do Mundo Moderno”, Guénon declama:
“A elite pode apenas, por definição, ser de poucos, e seu poder, ou melhor, sua autoridade, derivando, como faz, da superioridade intelectual deles, nada tem em comum com a força numérica em que a democracia é baseada (...) portanto, a função de liderança exercida por uma verdadeira elite – já que, necessariamente, ela desempenha esse papel, se existir – é literalmente incompatível com a democracia, que está intimamente ligada à concepção igualitária, e portanto com a negação de toda hierarquia”.
No mundo da Kali-Yuga, aqueles que, numa época justa e divinamente ordenada, deveriam governar ou orientar os governos – os intelectualmente superiores – são oprimidos ou rejeitados pela massa, e não conseguem desempenhar sua função mais nobre. Por mera coincidência, claro, as pessoas que acatam e propagam as ideias Tradicionalistas tendem a se ver como membros injustiçados dessa elite oprimida, dispersada e “literalmente incompatível com a democracia”, porque afinal governantes são feitos por Deus, não eleitos.
Tradicional-Liberal
O mito da elite oprimida não é exclusivo do Tradicionalismo (em si, uma mixórdia de mitologias), e é muito popular na ficção – parte da rapidez com que a ideia ganha adeptos possivelmente vem da facilidade com que se encontram, nos livros de aventura, no cinema e na televisão, fantasias compatíveis com ela. Fábulas de príncipes perdidos e reencontrados, heróis hereditários humilhados que terminam triunfantes, salvadores ungidos, flertam todas com o tema geral do homem superior esmagado pela injustiça.
A baixa literatura de glorificação do liberalismo econômico e do empreendedorismo (existem bons trabalhos de defesa desses dois princípios, mas não é a eles que estou me referindo agora) também se escora bastante no mito da elite oprimida, com sua ênfase no empreendedor destemido, esmagado entre a bigorna do governo e o martelo dos sindicatos. “A Revolta de Atlas”, de Ayn Rand (1905-1982), poderia ser um romance Tradicionalista, se a Era de Ouro da Tradição tivesse sido chefiada por um rei divino assessorado pela turma da Faria Lima, em vez de sacerdotes.
Vender às pessoas o sonho de integrar uma suposta elite oprimida, encarregada de salvar o mundo das trevas (e, “por pura necessidade”, terminar exercendo poder absoluto sobe todos), requer apelo aos baixos instintos (ressentimento, narcisismo) por meio de uma retórica morde-assopra: um joguinho de punição (quem discorda é indigno) e recompensa (quem concorda é elite) aplicado ao ego de membros suscetíveis do público.
Essa mistureba pode produzir um coquetel embriagante, mas admito que tenho dificuldade em entender como alguém em sã consciência pode contemplar a sério, por três segundos que seja, ideias como “hierarquia natural”, “elite oprimida”, “casta superior injustiçada” sem cair na gargalhada – ou explodir de indignação.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), ganhador do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)