Acaba de sair, pela Editora Unesp, a segunda edição, revisada e atualizada, da minha primeira obra maior de divulgação científica, “O Livro dos Milagres”. Trata-se de uma obra que examina cientificamente alguns dos mais famosos milagres apregoados pela tradição judaico-cristã (com algumas breves menções ao islã) e, também, as tentativas feitas por cientistas devotos de “provar” a veracidade deste ou daquele fenômeno “divino”.
A tiragem original do livro havia sido lançada em 2011 pela editora Vieira & Lent. Esta nova edição vem, portanto, exatamente uma década depois da publicação original.
“Milagres”, como gosto de chamá-lo, teve longa gestação e rápida execução: nas quase duas décadas em que trabalhei na imprensa tradicional, antes de me mudar para a comunicação institucional e, depois, para esta Revista Questão de Ciência, fui acumulando – indignação? Inconformismo? Estupefação? – com a passividade bovina com que o jornalismo (supostamente) crítico e imparcial trata alegações de fundo religioso, de supostas curas milagrosas em cultos evangélicos ao “reconhecimento de milagres” pelo Vaticano, etapa usualmente necessária para a elevação de um católico morto à categoria de beato e, depois, santo.
Deferência
Quem se preocupa com o valor da laicidade costuma ser especialmente sensível àquilo que o jurista americano especializado em liberdade religiosa e de expressão Steven G. Gey (1956-2011) chamava de “deferência obrigatória” à religião imposta, formal ou informalmente, pelo Estado.
Essa deferência faz com que instituições e pessoas religiosas sejam vistas, em princípio, como essencialmente boas e acima de qualquer suspeita. Que tenham tratamento privilegiado em questões tributárias, trabalhistas e, até, na fiscalização da segurança das edificações ou nas restrições de saúde pública em face da pandemia.
Que faz com que dizer que, por exemplo, os princípios do marxismo ou do liberalismo ou do fascismo são ideias idiotas defendidas por imbecis seja parte aceitável (ainda que vulgar e grosseira) do discurso público, mas que dizer o mesmo dos preceitos do judaísmo, do cristianismo ou do islã seja enquadrável como crime pelo Código Penal brasileiro (artigo 208).
Princípio da exclusão
O que quem nunca trabalhou numa redação talvez tenha dificuldade em perceber é o quanto essa deferência, agora não mais obrigatória, mas instintiva, está entranhada na mídia, inclusive em editorias (“editoria” é jargão jornalístico para equipes dedicadas a cobrir assuntos específicos: “editoria de meio ambiente”, “de internacional”, “de política”, etc.) que deveriam ser especialmente céticas, como política ou ciência.
Para mim, ao menos, essa era uma constante fonte de irritação. Ainda mais quando a grande imprensa, sob o pretexto de estar fazendo “jornalismo científico”, punha-se a promover alguma groselha a respeito do Sudário de Turim (fraude denunciada há séculos, e que deveria ter sido definitivamente sepultada pelos testes de carbono 14 conduzidos nos anos 80) ou alardeava acriticamente “estudos” sobre os benefícios da “espiritualidade”, ao mesmo tempo em assumia tom crítico, falsamente “neutro” e solene, quando algum desses trabalhos saía pela culatra, gerando resultados negativos.
Há, de fato, toda uma indústria de fundo de quintal dedicada a produzir estudos (e notícias sobre estudos) que tentam disfarçar fervor religioso como se fosse ciência e violam o chamado “Princípio da Exclusão de Hyman”, denominado em homenagem ao psicólogo americano Ray Hyman, e que diz: “antes de tentar explicar um fenômeno, certifique-se de que há mesmo um fenômeno a ser explicado”. Um artigo científico tentando descrever a provável fisiologia das nove cabeças da Hidra de Lerna é tão tolo (ou divertido) quanto um em busca da causa das Dez Pragas do Egito mas, por alguma razão, o segundo será levado a sério pelas revistas semanais, e pode até render capa.
O livro
Enfim: fui demitido do Grupo Estado em dezembro de 2010 (antes do plantão de Ano Novo, pelo que sempre serei grato), e em março de 2011 “O Livro dos Milagres” estava pronto. A quantidade de fontes sobre desmistificação de supostas maravilhas de fundo religioso na literatura internacional é enorme; assim como é exígua a disponível no Brasil. Eu já havia compilado quase todo o material de que iria precisar em meus anos de indignação silenciosa.
Existe um pouco de tudo em “Milagres” – filosofia, história, arqueologia, biologia. Há extratos dos diários de Lúcia Santos (1907-2005), uma das visionárias de Fátima, e da imprensa da época; há trechos de Evangelhos apócrifos (e dos canônicos, também), além de documentos medievais.
Há um capítulo sobre milagres pagãos, mostrando que no mundo greco-romano, pré-cristão, as pessoas também tinham (ou acreditavam que tinham) sua fé recompensada e reforçada por curas e portentos de origem “sobrenatural”.
Entre a primeira edição e esta nova, ficaram ainda mais claros os efeitos trágicos da manipulação política do sentimento religioso, um tema transversal no livro, fato que me levou a ampliar significativamente alguns capítulos, como o que trata de aparições marianas – falas atribuídas por videntes ao fantasma da mãe de Jesus são tradicionais focos de mobilização conservadora. Em Fátima e no Brasil, ouve-se Maria pedir orações contra o “comunismo”.
Também foram ampliados os capítulos sobre possessão demoníaca, incluindo informações que vieram à tona na última década sobre o “caso real” que inspirou o filme “O Exorcista”, e registrando a aparente involução das diversas denominações cristãs quanto a esse tema – se nos anos de 1970 o assunto parecia prestes a ser relegado aos universos da psiquiatria, da linguagem figurada e da mitologia, mesmo pelos religiosos mais devotados, hoje a ideia da realidade literal dos espíritos malignos voltou com força ao mainstream.
Também cresceu no livro o espaço dedicado ao estigmático italiano Padre Pio (1887-1968), objeto de uma biografia minuciosa publicada pouco depois da edição original de “Milagres”, e que agora é plenamente levada em conta no texto.
E daí?
Muitas vezes me perguntam por que empreender um projeto desses, por que não deixar as pessoas “acreditarem em paz”. A resposta óbvia é que não estou proibindo ninguém de fazer ou de acreditar em nada. O livro apenas põe em circulação, de modo acessível, informações que já são de domínio público. Cada um é livre para fazer o que quiser com elas – até mesmo, ignorá-las.
Uma resposta um pouco mais sofisticada é de que tenho a convicção pessoal de que a deferência especial – obrigatória ou não – concedida pela opinião pública e pela imprensa às alegações formuladas sob o manto da religião é responsável por muito do que há de errado no mundo. “O Livro dos Milagres” é um exemplo de que essa deferência não é necessária, que tais alegações podem ser tratadas de modo objetivo.
Há ainda quem diga que tratar essas alegações de modo objetivo, como se fossem reivindicações de fato, é errar o alvo. Seria como “testar cientificamente um poema”. A isso, minha resposta ecoa um bordão clássico do pátio da escola: não fui eu que comecei.
Convido o crítico a ler um panfleto de grupo católico conservador afirmando que certa hóstia verteu sangue, ou assistir a um exorcismo conduzido em rede nacional de TV, e seguir afirmando que a hóstia sangrenta ou o demônio expulso são, para o autor do panfleto ou para o possuído exorcizado, não realidades concretas, mas meras “elaborações poéticas”.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp) e coautor de "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)