Volta e meia, um ou outro dos textos da suíte de artigos críticos à psicanálise publicada há alguns meses aqui na Revista Questão de Ciência reemerge em algum canto da internet, às vezes dando origem a debates produtivos mas, com frequência que já começa a gerar um certo ennui, como alvo para críticas rasas ou, pior, tentativas de “desmonte” por parte de gente que confunde amplitude de autoestima com profundidade de conhecimento.
Um clichê que se repete nessas “desconstruções” de meia-tigela é a alegação de que, se o método psicanalítico é inválido, então ciências humanas são impossíveis. Em outras palavras: se a psicanálise não presta, as Humanidades — incluindo História, Ciência Política, Linguística, Economia — também não valem nada. Como instrumento retórico, é o equivalente de uma tomada de reféns por terroristas: a psicanálise seria o homem-bomba no prédio das Humanas. Se explodir, leva todo mundo junto.
Trata-se de um argumento que desempenha diversas funções. Uma das mais salientes é mobilizar as ansiedades e angústias que, muitas vezes, assombram os departamentos de Ciências Humanas, que sofrem com dificuldades de financiamento e, não raro, veem-se desvalorizados frente aos ramos das ciências biológicas e exatas aplicadas. O homem-bomba imaginário manipula o sentimento de autopreservação das Humanas/Humanidades, convocando-o para a defesa da “irmã”.
Em meio à angústia, no entanto, corre-se o risco de perder de vista dois fatos muito importantes: um deles é a arrogância cósmica da alegação — de que áreas de investigação com processos e resultados que vêm sendo refinados há séculos, quando não milênios, passariam, de repente, a ser inviáveis se concluirmos que um conjunto de ideias ruins de menos de 150 anos foi formulado de modo inválido.
O outro, ainda mais importante, é que o status da alegação de arrogância cósmica (AAC) — de que se a psicanálise não tem base, as Humanidades em geral também não têm — é absolutamente irrelevante para responder à questão de fundo, de se a psicanálise, afinal, tem alguma base. Se a AAC estiver correta e, além disso, a psicanálise não tiver base, teremos de jogar fora todo o pensamento sobre humanidade e instituições construído, pelo menos, desde Platão e Confúcio. O que vai ser meio chato, mas é melhor encarar a verdade do que persistir no erro.
“Estelionato intelectual”
Felizmente para quase todos os envolvidos, no entanto, a AAC é uma bobagem. Muitas das linhas de fato e argumento que se acumulam contra a psicanálise são produzidas dentro das próprias Humanidades. Um espantalho muito usado por membros acuados do movimento psicanalítico é o de dizer que as críticas vêm dos “fundamentalistas da neurociência”, como se o que estivesse em jogo fosse uma espécie de disputa de território entre a gangue das Exatas/Biológicas, com seu “reducionismo farmacológico”, e a das Humanas.
Existem, é fato, críticos duros na psicanálise no mundo biomédico. Sir Peter Medawar (1915-1987), biólogo e ganhador do Nobel de Medicina, certa vez se referiu à doutrina como “o mais estupendo ato de estelionato intelectual do século 20, e um produto terminal — algo semelhante a um dinossauro ou um zepelim na história das ideias”. Medawar disse isso em 1975, e o prestígio intelectual da psicanálise realmente entrou em forte declínio, nas décadas seguintes, em todo o mundo; o Brasil sendo uma das raras exceções.
“Biologismos” à parte, no entanto, os mais fortes argumentos contra a teoria e a prática psicanalítica vêm da Filosofia, da História e da própria Psicologia. Em Filosofia da Ciência, a psicanálise é citada como exemplo canônico, evidente e nada controverso, de pseudociência (ou, entre filósofos que não gostam desse conceito específico, de “ideologia epistemicamente injustificada”) pelo menos desde Karl Popper (1902-1994). Mario Bunge (1919-2020) e Adolf Grünbaum (1923-2018) elaboraram também críticas filosóficas e metodológicas que são largamente independentes do “critério da demarcação” popperiano (há quem ataque Popper para defender Freud). Grünbaum, aliás, insistia que Popper havia criticado a psicanálise pelos motivos errados.
Um resumo do trabalho de Grünbaum sobre psicanálise, publicado na New York Review of Books em 1985, dizia: “muito do que parece obviamente correto em Freud (…) como o inconsciente e a motivação irracional de muitos comportamentos humanos, já era conhecido antes dele, e Freud introduziu uma linguagem técnica desnecessária e um pano de fundo metafísico duvidoso para descrever esses fenômenos”.
“Teoria da mente”
Entre outros pontos, Grünbaum ataca o hábito psicanalítico (e que, por obra e graça da popularidade de Freud e seguidores, acabou virando uma espécie de cacoete cultural, principalmente na crítica das artes) de usar afinidades simbólicas para postular relações de causa e efeito: se algo, num sonho, digamos, pode ser interpretado como um símbolo de sexo, então o sonho foi causado por algum tipo de ansiedade ou desejo sexual. O filósofo pergunta: o que justifica essa inferência, do simbólico para o causal?
O psicanalista, psicólogo e filósofo americano Paul E. Meehl (1920-2003) registrou o argumento de Grünbaum como “um problema que, se não puder ser resolvido, levará a mais um século em que a psicanálise poderá ser aceita ou rejeitada principalmente como uma questão de gosto pessoal. Se isso acontecer, prevejo que ela será abandonada, aos poucos mas com certeza, tanto como um modo de terapia quanto como uma teoria da mente”.
Décadas depois do desafio lançado, a justificativa para conectar simbolismo a causalidade segue ausente, e o processo de desaparecimento da doutrina encontra-se já bem avançado.
Para fechar esta — brevíssima — passada de olhos pelo panorama filosófico, o recente livro de ensaios Philosophy of Pseudoscience, editado por Massimo Pigliucci e Maarten Boudry, para a Editora da Universidade de Chicago, menciona a psicanálise diversas vezes, incluindo um capítulo específico sobre como Freud manipulava recursos retóricos para contradizer-se, sem parecer estar se contradizendo. O autor do capítulo, Frank Cioffi, é um antigo crítico de Grünbaum, que lhe parecia leniente demais com Freud.
Depois dos filósofos, os historiadores.
Com a publicação, em 1985, da versão não-censurada da correspondência entre Freud e aquele que foi, durante boa parte de sua vida, seu melhor amigo e modelo de médico e homem de ciência, o grande charlatão Wilhelm Fliess (1858-1928) e depois, a partir da virada do século, da liberação para o público das cartas trocadas pelo pai da psicanálise com a noiva, Martha Bernays (1861-1951), o que emerge é um retrato bem pouco lisonjeiro.
Fliess, para quem estiver curioso, foi o inventor da pseudociência do biorritmo e tinha a ideia de que o nariz era a porta da mente – que a cauterização de pontos específicos da mucosa nasal (com aplicação tópica de cocaína, por exemplo), ou cirurgias no nariz, poderia resolver praticamente todo tipo de distúrbio, especialmente sexual. Freud foi cobaia de algumas dessas intervenções, e se mostrou tão encantado com os resultados que encaminhou pacientes ao amigo. Pelo menos uma delas ficou desfigurada e quase morreu.
Autoficção
Muito da crítica filosófica à psicanálise conclui que Freud, assim como seus seguidores, não tinha justificativa racional para afirmar o que afirmava. Retórica e autoengano, não lógica, guiavam o percurso entre observação e teoria.
Nesse sentido, todo o edifício psicanalítico não passaria de um conjunto de opiniões – ousadas, intrigantes, revolucionárias, como se queira chamá-las –, mas sem base nenhuma para além do carisma pessoal de seus propagadores. Aplicando a Navalha de Hitchens (um “instrumento filosófico” nomeado em homenagem ao jornalista Christopher Hitchens [1949-2011]), “o que não requer evidência para se afirmar, não requer evidência para se descartar”.
Essas críticas, duras como são, pressupunham que Freud era, pelo menos, honesto no que propunha: que seus relatos de casos correspondiam aos fatos, que seus insights e inspirações, obtidos por meio de introspecção, haviam surgido do modo como os descrevia.
A leitura das cartas, divulgadas a partir do último quarto do século passado, desfaz tudo isso. Os textos de Freud, tal como publicados por Freud, estão repletos de distorções, mentiras e de instâncias de fraude pura e simples. Algo que os fãs de Freud podem afirmar, sem erro, é que ele era um gênio literário. Mas seu gênero era a autoficção.
Histórias e biografias baseadas nas cartas não-censuradas e em depoimentos de ex-pacientes de Freud, como Sergei Pankeev (1886-1979), o “Homem dos Lobos”, são pouco conhecidas no Brasil, onde a principal fonte para material crítico ainda é O Livro Negro da Psicanálise, publicado em 2011 pela Civilização Brasileira, com uma introdução em que a tradutora praticamente pede desculpas por ter ousado verter uma obra, assim tão subversiva, para o vernáculo. Por aqui, as fileiras da ortodoxia seguem dogmaticamente cerradas, talvez porque a falsa ameaça do homem-bomba que vai explodir e levar as Humanidades consigo ainda seja levada a sério.
Para quem lê inglês, o cardápio é mais variado: autores importantes são Richard Webster, Frederick Crews, Malcolm McMillan.
Voltando ao Homem dos Lobos. Pouco antes de morrer, Pankeev, declarado “curado” por Freud sessenta anos antes, e usado por ele como uma das provas cabais da eficácia de seu método, disse a uma jornalista: “A coisa toda é uma catástrofe. Estou no mesmo estado de quando encontrei Freud pela primeira vez, e ele até já morreu”.
No livro Psychology Gone Wrong, os psicólogos poloneses Tomasz Witkowski e Maciej Zatonski são categóricos: “todos os casos usados por Freud são completamente irrelevantes. Foram todos inventados ou adulterados”.
“Mas funciona!”
Uma resposta comum às críticas centradas em Freud é de que a psicanálise evoluiu muito desde seu tempo, portanto, fossem quais fossem seus erros e pecados, eles seriam irrelevantes para o estado atual da arte. Morris N. Eagle, ele mesmo psicanalista de renome e psicólogo, aceitou o desafio de engajar a literatura psicanalítica do fim do século 20 sob uma perspectiva filosófica. Seu diagnóstico:
“Discussões complexas sobre a natureza da ciência, e se a psicanálise é uma ciência, distraem-nos e desviam nossa atenção do fato, simples, e claríssimo, de que mesmo de um ponto de vista informal de puro bom senso, e mesmo aplicando os critérios mais liberais e frouxos possíveis, a maioria das alegações e formulações que descrevi são ou incoerentes, ou sem nenhum apoio em evidências”.
E enquanto à Psicologia? Ela se vira muito bem sem a psicanálise, muito obrigado. Uma avaliação das tendências da pesquisa científica em psicologia publicada em 1999 afirmava que “a pesquisa psicanalítica tem sido virtualmente ignorada pela corrente principal da pesquisa psicológica nas últimas décadas”. O estudo apontava “um declínio consumado da psicanálise, um declínio observado da psicologia comportamental, a ascensão da psicologia cognitiva e o possível início da ascensão da psicologia neurocientífica”. Vinte anos depois, o quadro não parece ter mudado.
O argumento final é de que, a despeito das incoerências, tropeços históricos, falta de consistência filosófica e de validação empírica de seus conceitos-chave, os métodos e técnicas desenvolvidos no seio das terapias psicodinâmicas — categoria que inclui a psicanálise, suas heresias e filhotes — podem ser úteis para algumas pessoas. Sobre isso, três pontos.
Primeiro: há concepções terapêuticas contidas nessa linhagem que podem estar tão distantes da psicanálise “raiz” quanto uma galinha está de um velociraptor, com diferentes ênfases e compromissos teóricos. É razoável imaginar que algumas modalidades ajudem algumas pessoas em algumas coisas.
Segundo: o que costuma unir essas terapias, no entanto, é o mito de que o inconsciente humano é uma espécie de calabouço cujos habitantes (memórias, desejos, símbolos) precisam ser reconhecidos e confrontados, para que haja plena saúde mental. Não está claro que o balanço entre benefícios e malefícios de abraçar esse mito seja positivo. Para começo de conversa, trata-se de um mito: não corresponde ao que a ciência tem descoberto sobre as várias operações inconscientes do cérebro.
Essas operações existem, mas não há nada que sugira que estão consolidadas num calabouço de traumas, memórias e desejos reprimidos. E essa visão mítica, além de falsa, é perigosa, porque abre caminho para fantasias de diversos tipos, inclusive para a conversão de preconceitos e “intuições” do terapeuta em convicções do paciente: um conteúdo imaginário para um inconsciente imaginário.
Os escândalos de memórias reprimidas nos Estados Unidos, que devastaram famílias e levaram inocentes à cadeia, foram desencadeados por processos psicodinâmicos, em que o resgate de “memórias reprimidas no inconsciente” produziu fantasias de abuso sexual, muitas induzidas pelos terapeutas.
Por fim, é bom lembrar que até consultas com astrólogos podem trazer uma percepção de benefício psicológico para algumas pessoas. Mesmos os estudos que apontam benefícios em algumas modalidades psicodinâmicas específicas mostram que elas não são, em geral, melhores do que outras formas de terapia com menor carga metafísica.
A longo dos milênios, todas as culturas tiveram de encontrar modos de lidar com o sofrimento mental, organizando narrativas em torno dele, dotando-o de sentido. A psicanálise é uma página dessa história — mas uma que, assim como os exorcismos e a comunicação com os mortos, já foi virada em boa parte do mundo.
A AAC e seu agente, o homem-bomba psicanalítico, são ameaças vazias. Já era hora de as pessoas pararem de prestar atenção neles: ignorados, devem parar de nos assombrar. E sem necessidade de terapia.
Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)