Pandemia de zumbis

Apocalipse Now
24 out 2020
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zumbis

Numa crônica anterior, mencionei brevemente o conceito de “ciência patológica” criado por Irving Langmuir (1881-1957)  em referência a programas de pesquisa, como parapsicologia ou homeopatia, que já deveriam ter sido abandonados — mas cujos entusiastas insistem em aferrar-se a variações estatísticas mínimas, “mistérios” cuja solução recusam-se a reconhecer, para preservar a chama acesa. Na ciência patológica, o que se mede, efetivamente, são as margens de erro dos equipamentos, a imperfeição das técnicas utilizadas, a vulnerabilidade dos instrumentos, flutuações aleatórias, os vieses psicológicos dos pesquisadores, não fenômenos do mundo real.

Outro conceito muito utilizado neste espaço é, claro, o de “pseudociência”. A palavra tem um pedigree filosófico meio complicado. Até hoje ninguém conseguiu criar um critério de demarcação claro, explícito e eficaz para separar ciência de pseudociência: embora os extremos do espectro (astronomia e astrologia, digamos) sejam fáceis de identificar, há todo um meio de campo disputado, onde a distinção é menos evidente e a palavra acaba se reduzindo a pouco mais do que um pejorativo intelectual.

De minha parte, costumo trabalhar com uma “definição instrumental” de pseudociência: são doutrinas e hipóteses que aspiram à autoridade social e epistêmica das ciências sem pagar o preço que as ciências pagam. Esse “preço” inclui coisas como a busca sistemática por evidência negativa, isto é, que milite ativamente contra a hipótese; consideração pela evidência negativa, se e quando encontrada; irreverência crítica frente à autoridade e à tradição; processo comunitário de crítica pelos pares.

Este mundo pandêmico, no entanto, levou-me a pensar que precisamos (ou, ao menos, eu preciso) de um terceiro conceito, algo intermediário entre ciência patológica e pseudociência, que tem um pouco dos dois mas não é semelhante o suficiente para se confundir com nenhum deles. No início da crise sanitária atual, cheguei a especular sobre os problemas da ciência feita às pressas, mas também não é exatamente disso que estou falando agora.

É, portanto, com alguma trepidação que ofereço ao mundo minha humilde contribuição à filosofia da ciência: o conceito de ciência zumbi.

 

Todo apagado por dentro”

Sei que o pessoal criacionista às vezes chama as evidências de que a evolução é real de “ciência zumbi”, no sentido de que essas evidências continuariam a ser citadas mesmo depois de terem sido refutadas (esse pessoal, caso alguém tenha alguma dúvida, está errado). Minha referência é outra: não são os mortos-vivos do cinema, mas os “zumbis filosóficos” (ou p-zombies, na abreviação inglês) que habitam o universo dos debates sobre a natureza da consciência que inspiram a minha ideia de “ciência zumbi”.

Um p-zombie é uma pessoa indistinguível de um ser humano qualquer, tanto em aparência como em comportamento — poderia ser um sósia seu, por exemplo, e que reagiria aos eventos da sua vida do mesmo modo que você —, mas totalmente desprovida de experiências subjetivas. Ou, nas palavras do filósofo australiano David Chalmers, “todo apagado por dentro”.

Se alguém xinga a mãe de um p-zombie, ele vai ficar vermelho, gritar e tentar esmurrar o canalha, mas na verdade, não sente raiva ou indignação. Podemos imaginar o p-zombie como uma espécie de piano, onde cada tecla produz uma nota — ou, no caso, cada estímulo, uma resposta — e que, como o piano, não tem nenhuma apreciação real da, ou mesmo a capacidade de compreender a, música.

A ciência zumbi então (s-zombie?) funcionaria da mesma forma: ela recebe dados, aplica protocolos e gera publicações, mas sem nenhuma apreciação real a respeito do que está fazendo — se a técnica estatística usada é adequada, se o resultado faz sentido, se existe uma questão bem formulada a ser respondida, se há mesmo algo relevante a dizer. Só o que lhe interessa é o “p<0,05”, o aceite de um editor, algo para pôr no relatório para o patrocinador e, caso o pesquisador seja brasileiro, uma linhazinha a mais no Lattes.

 

Epidemia de zumbis

O volume de s-zombie produzida durante a pandemia é imenso. O pré-print recente sobre o vermífugo do astronauta é um caso gritante, mas está longe de ser o único. Praticamente toda a produção sobre hidroxicloroquina e COVID-19 cabe na categoria, incluindo não só os mortos-vivos que vagam a esmo pelos repositórios de pré-print, mas também muita coisa publicada em periódicos que deveriam fazer uma curadoria um pouco mais cuidadosa da reputação que transferem ao que publicam e que, em tese, defendem.

Numa perspectiva mais social e histórica, parece meio inevitável que a via produtivista tomada pelo mundo acadêmico-científico acabasse incentivando a produção de s-zombies. Se quem não publica perece, publicar, mesmo que seja bobagem ou irrelevância, passa a ser questão de vida ou morte.

O processo de revisão pelos pares e o critério da importância editorial são filtros, é verdade, mas têm limites. Não só acabam entupidos e atordoados pelo excesso de submissões como enfrentam vulnerabilidades próprias da condição humana, incluindo sentimentos de lealdade pessoal, preconceito e vaidade. Além disso, são burláveis, como a proliferação de periódicos predatórios bem mostra.

Na pandemia, a tendência foi acelerada, e agravada pelos holofotes da mídia (com perdão do clichê), por pressões políticas e também, imagino, pelo forte impulso humano de, diante de uma emergência, fazer alguma coisa, qualquer coisa, mesmo que seja uma bobagem colossal.

Nas últimas duas décadas, o jornalismo foi sofrendo uma mutação em termos de incentivos (do prêmio de reputação, “melhor dar depois, mas dar correto”, passou-se a um prêmio de velocidade,“melhor dar primeiro e corrigir depois”), e a ciência da “cura” da COVID-19 aparentemente caiu sob o mesmo feitiço.

 

Cérebros!”

Uma coisa que a s-zombie tem em comum com os zumbis do cinema é o desejo de devorar cérebros. Ela estimula uma espécie de pensamento mágico em torno do processo científico, como se jalecos brancos, tabelas estatísticas e curvas de regressão tivessem algum poder milagroso. Quanto mais a ciência se esvazia de pensamento e se burocratiza, mais parecida fica com bruxaria.

Essa reverência pela forma, em detrimento do conteúdo e do raciocínio, tem um efeito profundamente deseducador. Não só o público fica com uma impressão errada, como os jovens e os futuros cientistas, também: os garotos começam a achar que é assim que se faz, que não há nada de mau em gerar números sem pensar se prestam para alguma coisa, ou o que querem dizer.

Os s-zombies se multiplicam dessa forma, cada artigo ruim ou irrelevante semeando e legitimando outros projetos de pesquisa “apagados por dentro”.

A ciência zumbi é especialmente insidiosa porque, em contraste com suas irmãs pseudociência e ciência patológica — quase sempre, relegadas para as franjas do meio acadêmico, ou já excluídas dele —, brota, muitas vezes, do próprio coração do sistema. Quem a pratica não é o maluco excêntrico. É o colega de laboratório, o doutorando do amigo, o membro da congregação, o diretor do Instituto, o Capes 1A, o membro da Academia Nacional disso ou daquilo.

Essa característica faz com que a s-zombie seja vista com complacência e, não raro, com um ar benevolente, como se seus produtos fossem travessuras inocentes ou deslizes infelizes, mas, sendo o mundo cruel como é, nada mais do que falhas compreensíveis e eminentemente perdoáveis. Comodismo e espírito de corpo alimentam o círculo vicioso da produção a qualquer custo e de qualquer jeito.

Uma certa proporção mínima, um resíduo, de s-zombie talvez seja mesmo inescapável. Mas, hoje em dia, as hordas parecem fora de controle, a relevância midiática inversamente proporcional à relevância científica. O que nos resta é torcer para que, quando a pandemia de SARS-CoV-2 passar, a pandemia de zumbis reflua junto.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência e coautor do livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto)

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