Em seu divertidíssimo livro sobre a história da medicina e das terapias "integrativas e complementares", Suckers, a jornalista britânica Rose Shapiro aponta uma distinção simples – e categórica – entre a ciência médica e as diversas tradições culturais em que terapeutas alternativos buscam (ou dizem buscar) inspiração: enquanto a ciência foi descobrindo inúmeras causas para as doenças (vírus, bactérias, genética, contaminantes ambientais, estilos de vida, etc.), os integrativos costumam se agarrar a uma monocausa, a causa única de todo mal: desequilíbrio. Desarmonia. Desalinhamento. Seja do chi, do prana, do yin, do yang, da moral (o Dr. Edward Bach, criador dos Florais homônimos, dizia que toda doença é uma manifestação de culpa), das vértebras, da dieta ou de algo genérico como "as vibrações", sempre há uma coisa fora da ordem que, se recolocada no devido lugar, traz a cura. Mesmo se reconhecem a existência de causas imediatas para a doença – um parasita, uma infecção, uma mutação – esses terapeutas tendem a pressupor que o agente só conseguiu atacar o paciente porque seu "campo energético" já havia sido previamente "desequilibrado".
Um corolário dessa doutrina da causa única é a da cura única, a panaceia: o ritual, a dieta, o passe mágico ou o suco que reequilibra as energias deve ser capaz de curar qualquer coisa. Essa ideia de energias desequilibradas extrai seu apelo de diversas fontes. Ele se encaixa muito bem, por exemplo, com noções arraigadas que ligam a doença à culpa, ao pecado, à impureza. Reequilibrar energias é apenas um código moderno para purificar-se, fazer as pazes com os espíritos; dietas estritas ou exóticas são as novas penitências: em vez ajoelhar no milho, deixar de comê-lo. E para pôr a cereja no bolo temos, é claro, nossa amiga de sempre, a mídia dita “de bem- estar”, principalmente as revistas e sites que têm mulheres – adolescentes ou adultas – como público-alvo, e que fazem da venda de dietas, cremes e procedimentos vários para “purificação das energias”, seu carro-chefe. O vínculo cultural perverso entre uma feminilidade idealizada e certas noções de “pureza” converte-se em ferramenta sub-reptícia de marketing.
Cristal mágico
Mês passado, a revista “Glamour” publicou algo (não sei como encaixar aquela peça execrável na classificação de gêneros jornalísticos do eminente professor José Marques de Melo) sobre o “poder” da garrafas de água com cristais dentro. Entre as fontes citadas há uma “acupunturista licenciada e praticante de medicina integrativa” que afirma que “os elixires de gemas são medicina energética".
Para quem estiver inclinado a dar um desconto porque, afinal, a “Glamour” não é exatamente uma publicação a ser levada a sério, dois anos atrás, em março de 2018, a “Marie Claire”, que alguém, um dia, me disse que era uma revista feminina sóbria, escrita para mulheres adultas e inteligentes, trouxe uma peça sobre o uso de cristais em cosméticos que inclui a seguinte pérola (ou talvez eu devesse dizer, ametista): “O quartzo é um ótimo condutor de energia, usado em celulares, chips e relógios. Ele tem o mesmo poder sobre os seres humanos”.
Essa história do poder esotérico dos cristais tende a voar abaixo do radar da maioria das publicações críticas e céticas. Existe uma quantidade razoável de material escrito, por exemplo, sobre as falhas e armadilhas da astrologia ou da homeopatia, mas a única obra específica sobre curandeirismo envolvendo cristais que conheço é o livro Crystal Power: The Ultimate Placebo Effect, do professor universitário americano Lawrence E. Jerome. Publicado originalmente em 1989, não me parece que a obra tenha tido mais de uma edição.
Energia
A “energia” de que a pessoa ouvida pela “Marie Claire” está falando é elétrica ou mecânica. Tem de ser, se a referência é o uso de quartzo em equipamentos eletrônicos.
Cristais de quartzo têm propriedades piezoelétricas. Eles produzem um campo eletromagnético quando deformados, e sofrem deformação quando submetidos um campo eletromagnético: em outras palavras, se você aperta ou estica um cristal, ele produz um pouco de eletromagnetismo; se você aplica eletromagnetismo ao cristal, ele se contrai ou se estica.
Isso faz com que cristais sejam úteis para sintonizar rádios, televisores (o modo de vibração natural do cristal filtra a frequência eletromagnética desejada) e em fones de ouvido (o sinal elétrico faz o cristal vibrar, reproduzindo o som). Cristais de quartzo também são usados como osciladores em relógios, computadores e celulares. O quartzo é um transdutor – transforma um tipo de energia em outro – não um “condutor”, como quer a revista.
O corpo humano, é claro, não tem nada a ver com isso. Osciladores de quartzo são usados em marca-passos, mas esses são cristais especialmente selecionados, inseridos num contexto tecnológico, dentro de um dispositivo que é implantado cirurgicamente no paciente, após recomendação específica. Não é uma pedra genérica moída para esfregar na pele, como no caso dos cristais usados em cosméticos.
Fake news lato sensu
O que a fonte ouvida por “Marie Claire” faz é o que se chama, tecnicamente, de equivocação: usar a mesma palavra com dois sentidos diferentes, sem avisar o leitor da mudança. No sentido (1), "celulares, chips, relógios", energia é uma quantidade física; no (2), "corpo humano", é uma metáfora para... sei lá. Bem-estar? O texto da “Glamour”, por sua vez, é ainda mais vago. Não fica claro o que seria um “elixir de gema” – água que molhou um cristal? – e nem o que se entende por “medicina energética”.
A tal “acupunturista licenciada” tenta elaborar um pouco: ela cita acupuntura, reiki e homeopatia como “medicamentos energéticos”. Se levarmos em conta que, com exceção da acupuntura, são tratamentos em que nada acontece – preparados homeopáticos não têm princípio ativo, e no reiki tradicional o terapeuta manipula um “campo” imaginário, sem jamais entrar em contato com o corpo do paciente – “medicamento energético” parece ser código para “medicamento nenhum”.
Ambos os textos se valem do velho truque jornalístico de usar declarações entre aspas como álibi: jornalistas sempre podem alegar que quem disse a bobagem foi a fonte, não eles/elas, e que sua obrigação é reproduzir a fala da fonte com o máximo de fidelidade, convenientemente omitindo que o princípio fundamental do ofício não é o de reproduzir asneiras ao pé da letra, mas sim, o de chegar o mais próximo possível da verdade.
Por que femininas?
Uma questão que fica em aberto é por quê, “revistas femininas”? Um levantamento informal da paisagem de mídia sugere que as publicações que têm a mulher como público-alvo parecem mais afeitas ao esoterismo do que as voltadas para homens, ou que não têm um público definido por gênero.
O M de Mulher, que se arroga “melhor site feminino da América Latina”, dá destaque para o horóscopo logo na primeira página. A internacional Allure trouxe, só neste ano, guias sobre astrologia financeira e tarô. Goop, a empresa de “bem-estar” de Gwyneth Paltrow, promove bobagens esotéricas para mulheres. E, claro, temos os exemplos prévios de “Glamour” e “Marie Claire”.
Essa intuição tem apoio em dados. A tabela abaixo, reproduzida do livro Mismeasure of Woman, da psicóloga Carol Tavris, compara importantes revistas femininas e masculinas no quesito “tem horóscopo?”. Os dados são antigos (do início da década de 90) mas, ainda assim, sugestivos:
Por que isso? A questão da “pureza” parece insuficiente: sabonetes, perfumes e xampus, em princípio, não requerem esoterismo para vender. E nem faz sentido apelar para o velho clichê de que haveria algo essencialmente irracional na feminilidade. Este artigo todo gira em torno de um par de livros racionalistas escritos por mulheres, afinal. A própria Tavris rejeita a ideia de que mulheres sejam “mais supersticiosas ou crédulas do que os homens – ou, na reinterpretação feminista-cultural dessa diferença, tenham a mente mais aberta ou maior espiritualidade!”.
A hipótese que ela levanta é que revistas femininas sobre “beleza, juventude e a busca da perfeição” tratam de temas que geram ansiedade e em relação aos quais há uma percepção de impotência – ninguém, é óbvio, consegue manter-se eternamente jovem, ou ser “perfeito” – percepção essa que talvez possa ser mitigada, nas palavras da autora, por “boas estrelas e bons cosméticos”.
Isso traz à tona outra questão, de por que existe um mercado eminentemente feminino para revistas sobre “beleza, juventude e a busca da perfeição”. Tavris vai buscar a resposta nos tipos de narrativa que são usados para definir os papéis de gênero na sociedade, e recomendo a leitura de seu livro para quem quiser ter contato com algumas ideias interessantes a respeito.
No que toca o tema imediato deste artigo, a sugestão que fica é a de que o “modelo de negócio” da mídia de feminina bem-estar se reduz à velha falcatrua de criar dificuldades para vender facilidades: e se as dificuldades são, de fato, insuperáveis (ou imaginárias) e as expectativas, inatingíveis, o sobrenatural entra como paliativo.
Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência