Criacionismo busca recriar no Brasil sua "Era de Ouro"

Apocalipse Now
20 fev 2020
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Pode-se dizer que o criacionismo, entendido como o movimento que busca impor o relato bíblico de Gênesis 1:1-11:9 (dos seis dias da criação à queda da Torre de Babel) como fato científico, viveu sua Era de Ouro nos Estados Unidos entre 1923 e 1987. A primeira data marca a publicação de “The New Geology”, de George McCready Price, uma criativa reinterpretação do registro fóssil à luz do mito da Arca de Noé, e que serviu de livro-texto e inspiração para gerações de criacionistas “científicos”. Já o ano de 1987 assistiu à a decisão da Suprema Corte americana no caso Edwards v. Aguillard, quando ficou definido que o ensino de criacionismo em escolas públicas fere a cláusula constitucional de separação entre estado e igreja.

Nos mais de 60 anos entre início e fim, a Era de Ouro criacionista foi marcada por eventos como a aprovação, em 1925, da Lei Butler, no Tennessee, proibindo o ensino da evolução, e a consequente condenação (depois revertida) do professor John Scopes no famoso “Julgamento do Macaco” – que inspirou o filme “O Vento Será Tua Herança”, de onde saiu a ilustração deste artigo. 

Leis contra o ensino da Teoria da Evolução perdurariam por décadas em estados como Arkansas e Mississippi, além do próprio Tennessee, e uma vez derrubadas, muitas vezes ressurgiam sob a forma de legislação exigindo “tratamento equilibrado” entre evolução e criacionismo nas escolas públicas. Tudo isso chegou ao fim com Edwards v. Aguillard.

Entre nós

No Brasil, a Era de Ouro do criacionismo pode estar começando agora, quase um século depois do início da matriz americana e mais de três décadas após seu fim. Uma breve tentativa de revivê-la nos EUA, sob o disfarce de “design inteligente”, foi fulminada pelo Judiciário em 2005.

Aqui em Pindorama, menos de uma geração atrás, tudo isso parecia muito estranho e exótico. Quando o biólogo americano Douglas Futuyma, um dos principais defensores do ensino da evolução nos Estados Unidos esteve no Brasil, para dar uma palestra na Unicamp, em maio de 2008, sua presença mal foi notada pela mídia. Não se viu nada de “polêmico” ali, com “valor de notícia”.

Mas havia correntes subterrâneas em movimento. Quase simultaneamente à visita de Futuyma, a então ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, chamou atenção ao participar de um Simpósio sobre Criacionismo e Mídia, realizado na cidade de São Paulo. 

O suposto apoio de Marina – que é fiel da igreja evangélica Assembleia de Deus – ao criacionismo viria a ser usado contra ela em suas campanhas como candidata à Presidência do Brasil, em 2010, 2014 e 2018. Pressionada pelos críticos, Marina passou a declarar publicamente que, a despeito de sua fé pessoal, não se opõe ao ensino da evolução e nem defende que o criacionismo entre no currículo das escolas públicas.

Doze anos depois da visita de Futuyma e da primeira polêmica envolvendo Marina Silva e criacionismo, a situação é bem outra: o governo de Jair Bolsonaro abriga, em seu primeiro escalão, uma ministra – Damares Alves – que lastima publicamente o ensino de evolução nas escolas públicas, considerando-o uma “derrota” do cristianismo evangélico. O governo Bolsonaro também recentemente nomeou, para o comando do órgão federal responsável por fazer o controle de qualidade dos cursos nacionais de mestrado e doutorado, a Capes, um notório promotor da “teoria” do design inteligente.

Alguns anos da chegada de Bolsonaro ao poder, em 2014, o deputado Pastor Marco Feliciano havia apresentado um projeto de lei que pretendia tornar o ensino do criacionismo obrigatório em todo o Brasil. A proposta acabou arquivada, sem ter ido à votação, em 2019.

Onda evangélica

O que mudou entre 2008, 2014 e o presente? Um dado que fica penosamente claro é o de que a aceitação “pacífica” da evolução no Brasil, menos de duas décadas atrás, não era fruto da boa educação científica dos brasileiros, e sim um reflexo da composição religiosa da população, e do modo como essa composição se reflete no jogo de forças políticas da cena nacional.

Enquanto o Brasil era um país majoritariamente católico – uma igreja que não tem problemas doutrinários com a teoria da evolução – o criacionismo era visto como uma questão menor, que chegava à grande mídia como curiosidade, ou em denúncias envolvendo o currículo de escolas confessionais protestantes. 

Não que a Igreja Católica tenha, historicamente, resistido à tentação de tentar impor sua agenda teológica à sociedade civil: o Brasil precisou esperar a chegada ao poder de um ditador protestante – o general Ernesto Geisel, luterano – para finalmente ver legalizado o divórcio, em 1977, vencendo a oposição quase centenária do clero católico (a primeira proposta de lei legalizando a dissolução de casamentos no Brasil datava de 1893). Apenas acontece de a disputa criação/evolução não ser um ponto nevrálgico da teologia romana.

Nos arquivos do jornal O Estado de S. Paulo – um dos mais antigos do Brasil, publicado desde 1875 – a palavra “criacionismo” aparece pela primeira vez em 1977. A Sociedade Criacionista Brasileira (SCB) data o início de suas atividades a partir do lançamento do jornal Folha Criacionista, em 1972, com conteúdo traduzido de originais da Creation Research Society (CRS) dos Estados Unidos. A CRS é um grupo criacionista da modalidade “Terra jovem” – isto é, que acredita que o Universo foi criado há poucos milhares de anos, e que lendas bíblicas como o Grande Dilúvio de Noé representam fatos históricos.

De 1980 a 1999, o termo “criacionismo” é citado 13 vezes em O Estado de S. Paulo. Na década de 2000 o número de menções salta para 91, e a partir de 2010 acumulam-se mais 58. Das 163 menções desde 1875, 91% aconteceram neste século. Outro grande jornal brasileiro, Folha de S. Paulo, contabiliza 237 citações da palavra “criacionismo” desde a década de 1970, sendo 87% concentradas após o ano 2000. 

Esse aumento da visibilidade pública do criacionismo, e da presença da questão no debate político, acompanha o crescimento da fração evangélica da população.  Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a parcela de evangélicos entre os brasileiros era de 6,6% em 1980, 9% em 1991, 15,4% em 2000 e 22,2% em 2010. A proporção de católicos, por sua vez, caiu de 92% (1970) a 64% (2010). Estima-se que, em 2022, menos da metade dos brasileiros professará a religião católica. 

Confusão

Parte importante da agenda criacionista – pelo menos desde a publicação do livro de Price nos Estados Unidos – envolve dar à “teoria” um verniz de respeitabilidade científica. A Associação Brasileira de Pesquisa da Criação (ABPC) surgiu em 1979, mas a estratégia, no Brasil, deu seu passo mais significativo em 2017, quando a Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo, uma instituição antiga e bem conceituada – em 2019, foi ranqueada como a quarta melhor universidade privada do país – firmou parceria com o Discovery Institute dos Estados Unidos, think tank famoso por promover a “teoria do design inteligente” (DI) que embora, a rigor, não seja o mesmo que criacionismo bíblico, na verdade foi concebido como ponta-de-lança para abrir espaço para a Bíblia nas aulas de ciência.

O fruto dessa aliança é o núcleo Discovery-Mackenzie de Pesquisa em Ciência, Fé e Sociedade. O reitor do Mackenzie responsável por estabelecer o laço entre a Universidade e o Discovery Institute, Benedito Guimarães Aguiar Neto, é exatamente o nome indicado pelo governo para assumir o comando da Capes. 

Além de validar e controlar a qualidade dos programas de pós-graduação oferecidos no Brasil, a Capes também tem a prerrogativa de conceder bolsas de estudos, financiando – e, assim, incentivando ou desestimulando – programas de pesquisa. 

Que esse poder estratégico de influenciar os rumos da ciência brasileira possa ser usado para consolidar uma Era de Ouro criacionista no Brasil é algo que preocupa a comunidade científica, e explica as duras críticas de acadêmicos à nomeação, para o posto, de alguém que acredita que o que o Discovery Institute faz merece mesmo ser chamado de “ciência”. 

O presidente da República anterior, Michel Temer, chegou a considerar, em 2016, a nomeação de um criacionista para comandar o Ministério da Ciência e Tecnologia, mas recuou diante da repercussão negativa da proposta na academia. O governo atual não teve os mesmos escrúpulos, nem o mesmo apreço pela opinião dos cientistas. 

 

Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência

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