Cientistas publicam seus trabalhos em forma de artigos científicos, que são submetidos a um rigoroso processo de revisão pelos pares antes de serem publicados em revistas especializadas. Esse processo sempre é feito de forma isenta, sem interesses pessoais ou financeiros.
O parágrafo acima seria um retrato fiel da verdade se não fossem um pequeno detalhe. Humanos fazendo “humanices”…
O que é a revisão por pares?
Para entender a revisão por pares (peer-review, em inglês) vamos imaginar a seguinte situação:
Pesquisadores acreditam ter descoberto um novo antibiótico. Analisaram ação dessa nova droga e padronizaram um método para purificá-la. O passo seguinte é escrever um artigo contando a história da descoberta, desde a relevância do trabalho até os resultados encontrados. Os métodos utilizados são parte importante do trabalho, uma vez que qualquer outro pesquisador teria que ser capaz de replicar o estudo e obter o mesmo resultado.
Feito isso, os autores enviam o artigo para revistas científicas de uma área específica, nesse caso, uma revista de microbiologia ou de antibióticos. O trabalho será analisado primeiramente por um editor para ver se não tem nenhuma falha gritante no artigo. Caso não encontre nada muito absurdo, o editor envia o trabalho para pelo menos mais dois outros cientistas do mesmo campo de pesquisa, que serão os revisores do trabalho. Isso normalmente é feita de acordo com um método chamado “duplo cego” – ou seja, a pessoas que estão revisando o artigo não sabe de quem é o trabalho, e o cientista que submeteu o texto não sabe quem o está avaliando. Isso tudo é feito por intermédio do próprio editor.
Aqui começam muitos dos problemas da revisão por pares. Que ainda é o modelo mais comum de publicação científica que temos, mas nem por isso é o melhor. Por exemplo: será que os editores de todas as revistas científicas estão pensando apenas no progresso da ciência?
Suponha que quero criar uma revista sobre Terra plana. Então, peço a meus amigos que enviem artigos “comprovando” que a Terra é plana, mando esses resultados para serem analisados por outros amigos que também acreditam que a Terra é plana e, com isso, poderíamos publicar centenas de artigos dizendo que a Terra é plana – todos, “artigos que passaram pela revisão por pares”. Legal, não?
O problema da carteirada (ou argumento de autoridade) de um artigo científico
Pronto, agora temos artigos que passaram por revisão dos pares, e podemos jogar isso na cara daquele idiota no Facebook que acredita que a Terra redonda! É só jogar lá no meio e sair correndo. Afinal de contas, o artigo já passou pela revisão de especialistas, quem é a outra pessoa para duvidar de “provas comprovadas”?
É comum, em discussões sobre o que é ciência ou pseudociência, que ambos os grupos despejem artigos científicos publicados em revista com revisão pelos pares, simplesmente para “provar” seus argumentos
Também não é muito conhecida, fora da academia, a indústria de publicação de artigos científicos em revistas predatórias. Essas revistas têm apenas o interesse de cobrar taxas para publicar artigos, e aceitam qualquer coisa. Duvidam? Olhe só exemplo que foi publicado pelo International Journal of Advanced Computer Technology (quanto mais pomposo o nome, maior a carteirada).
Por “apenas” 150,00 dólares os autores conseguiram publicar rapidamente esse paper.
“Mas não tem gráficos e resultados...” Opa, claro que tem!
Temos também um artigo publicado pela função de autocompletar de um iPhone. O autor, Iris Pear (também conhecida com Siri Apple) da Universidade do Looping Infinito não só publicou o artigo como foi convidada para participar da International Conference on Atomic and Nuclear Physics. Realmente o iOS ganhou do Android nessa. Você pode conferir o árduo processo de escrever o paper no link www.bartneck.de/2016/10/20/ios-just-got-a-paper-on-nuclear-physics-accepted-at-a-scientific-conference/
Como saber se uma revista científica é confiável?
As revistas predatórias são fáceis de identificar. Se você pagar, consegue publicar e em pouco tempo.
Mas por que fazer diferença entre a Homeopathy e a Cell? Vale lembrar que ambas pertencem à mesma editora, a Elsevier, que não é considerada uma editora predatória pela comunidade científica.
A resposta simplória seria, “Porque homeopatia, assunto da Homeopathy, não tem eficácia comprovada pela ciência”.
Agora não sendo simplistas, vamos pensar no processo de submissão para essas duas revistas. Começando pela Homeopathy, que é a maior referência para publicações sobre homeopatia.
Os autores, editores e revisores partem do pressuposto que homeopatia funciona, mesmo havendo uma infinidade de estudos (por exemplo, este aqui) que mostram que o efeito de produtos homeopáticos não são melhores do que os percebidos nos grupos de controle, que não receberam nenhum tratamento.
O número de autocitação da própria revista também é alto. Isso significa que os novos estudos têm como base outros estudos publicados na mesma revista. A Homeopathy, além disso, dificilmente “retrata” – isso é jargão para a anulação de um artigo, quando se descobre que houve algum erro que torna seus resultados inválidos – trabalhos publicados.
A Cell é uma das maiores referências para diversas áreas da ciência da vida: biologia molecular, biologia celular, biologia de sistemas, células-tronco, biologia do desenvolvimento, genética e genômica, proteômica, pesquisa de câncer, imunologia, neurociência, biologia estrutural, microbiologia, virologia, fisiologia, biofísica e biologia computacional.
Os editores e revisores tentam encontrar falhas metodológicas e nas conclusões dos autores.
Existem citações de uma diversos estudos publicados em outras revistas científicas, não apenas na própria Cell.
Muitos dos artigos submetidos não passam nem mesmo pelo crivo inicial do editor.
Quando comprovado que houve falhas num trabalho publicado, eles retrataram o artigo.
Esses são apenas alguns pontos de diferenças entre essas duas revistas. Vale lembrar que quando o artigo é publicado, ele fica disponível para críticas de toda a comunidade científica. O que é muito bom, porque muitos artigos já foram retratados após falhas terem sido apontadas. Já houve casos em que os próprios autores descobriram que haviam feito algo errado, e eles mesmo pediram para que o artigo fossem retratado. Isso é ciência.
Garantia de sucesso
Então, isso significa que revistas de alto prestígio nunca publicaram ou irão publicar sobre homeopatia ou estudos que se provam errados?
Claro que não. Como já foi dito no começo do artigo, tanto quem publica na Homeopathy quanto na Cell são humanos. E humanos erram. Mas aceitar e retratar o erro também é trabalho da comunidade, principalmente da científica.
A Nature já publicou um celebre artigo sobre homeopatia. Que em seguida foi desmentido pelo mágico James Randi. E o artigo foi retratado.
A Science (outra revista de muito prestígio) publicou um artigo que concluiu a descoberta de bactérias capazes de substituir o fosfato por arsênio na estrutura de diversas moléculas, sendo uma delas o DNA. Isso traria uma tremenda revolução no mundo da biologia. O estudo foi feito por pesquisadores de Astrobiologia da NASA. Uma tremenda carteirada! Porém, a revisão foi feita por cientistas de uma campo muito específico e não diversificado.
Qualquer microbiologista que tivesse recebido a missão de revisar o artigo teria percebido diversas falhas graves nos métodos utilizados pelos autores. O que aconteceu após o artigo ter sido publicado. Inclusive, repetiram o experimento reportado pelos cientistas da NASA e mostraram qual era o erro.
Percebam como é difícil separar o joio do trigo, e os alhos dos bugalhos. A própria ciência se corrige ao longo do tempo. Ter um dogma imutável, que repele críticas bem embasadas, não faz parte da ciência, que pouco se importa com o que nós pensamos sobre um assunto. Por fim, afirmações extraordinárias (ainda) exigem evidências extraordinárias.
Luiz Gustavo de Almeida é biólogo e pesquisador do Laboratório de Genética Bacteriana do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo, coordenador dos projetos Cientistas Explicam e Pint of Science na cidade de São Paulo