O poder da pseudociência no esporte profissional

Questão de Fato
17 fev 2022
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corrida

 

O espanhol Rafael Nadal tornou-se o tenista masculino com maior número de títulos de Grand Slam da história (21 até agora) ao vencer o Aberto da Austrália no dia 30 de janeiro último. E ele alcançou o feito sem cruzar com seus dois principais concorrentes: o suíço Roger Federer e o sérvio Novak Djokovic, ambos com 20 Grand Slams no currículo. Enquanto o primeiro se recupera de uma lesão, o segundo foi deportado da Austrália por não ter se vacinado contra a COVID-19.

Esse não é o primeiro papelão de Djokovic na pandemia. Em junho de 2020, enquanto a recomendação era de isolamento e suspensão de atividades não essenciais, o sérvio organizou um torneio sem quaisquer preocupações sanitárias, que terminou em casos da doença entre tenistas e espectadores. Ele próprio se infectou.

Para além do coronavírus, Djokovic já declarou em uma live que “conhece algumas pessoas que, [...] por meio do poder da gratidão, conseguiram transformar [...] a água mais poluída na água mais curativa, porque a água reage”.

Também é autor de um livro com o título em português “Sirva Para Vencer: A Dieta Sem Glúten Para a Excelência Física e Mental”, que defende a restrição dessa proteína para todas as pessoas. Djokovic diz sofrer de intolerância ao glúten (em seu livro, alega ter descoberto o quadro após um nutricionista pedir para ele segurar um pedaço de pão, o que o fez se sentir fraco). Para constar: não há comprovação de que o glúten comprometa o raciocínio ou o vigor de pessoas sem determinadas condições médicas específicas, como doença celíaca.

Djokovic não é o único atleta a endossar posturas anticientíficas em seu cotidiano. O jogador de futebol Alexandre Pato defendeu a atitude antivacina de Djokovic nas redes sociais – e depois apagou o post. Tom Brady, um dos maiores jogadores de futebol americano da história - e mais conhecido no Brasil como marido de Gisele Bündchen -, desenvolveu junto com um guru o Método TB12 para manter a forma. Entre outras coisas, ele não come morangos, tomate, pimenta, cogumelos e berinjela. Já jogadores de basquete da NBA chegaram a usar uma pulseira que melhoraria o desempenho físico.

Mas o que faz esportistas profissionais aderirem a práticas pseudocientíficas?

“Faltam pesquisas que investiguem essa pergunta a fundo, mas há características na vida de um atleta que ajudam a respondê-la”, afirma a psicóloga Katia Rubio, coordenadora do Grupo de Estudos Olímpicos da Universidade de São Paulo (GEO-USP) e fundadora da Associação Brasileira de Psicologia do Esporte.

 

O corpo como laboratório

Segundo Ronaldo Pilati, professor de psicologia social da Universidade de Brasília, um dos primeiros passos para cair em um discurso anticientífico é sentir alguma insatisfação, ter demanda não atendida ou meta a ser alcançada. “A busca sem critérios por soluções pode favorecer as estratégias pseudocientíficas, dependendo do entorno social”, diz.

No caso de um esportista profissional, em que a diferença de 1 segundo em uma prova pode separar o sucesso do fracasso, há uma procura constante por pequenos detalhes que supostamente aprimorariam a performance. “O corpo é o instrumento de trabalho dos atletas. Eles farão de tudo, dentro dos limites da lei esportiva, para tentar alcançar um maior rendimento”, explica Rubio.

Nos Jogos Olímpicos de 2016 no Rio de Janeiro, o nadador americano Michael Phelps apareceu nas piscinas com manchas roxas nas costas. Eram consequências do chamado “cupping”, ou terapia de ventosas. Nessa técnica, as tais ventosas são colocadas na pele e, por meio de calor ou sucção, gera-se um vácuo que supostamente ajudaria a regenerar a musculatura e aliviar as dores. O procedimento já foi testado para dores em diferentes cantos do corpo e problemas que vão de acne a tosse, mas os estudos em geral são de baixa qualidade – e não trazem resultados claros, embora à medida que a qualidade do trabalho aumenta, menor é o efeito percebido. Uma pesquisa recente exclui qualquer benefício da prática para dores lombares, por exemplo.

Ainda assim, as manchas roxas nas costas de Phelps ganharam o noticiário e a adesão de outros atletas. “Se um nadador de elite adota um procedimento, é provável que outros entrem na onda para não ficarem para trás. Um imita o outro”, analisa Rubio.

A psicóloga pondera que os atletas estão na “fronteira do conhecimento” do condicionamento físico. Até por isso, são suscetíveis a testar técnicas que supostamente trariam vantagens, mesmo que não comprovadas por pesquisas de qualidade. Curiosamente, no entanto, os esportistas e suas comissões técnicas tendem a ignorar a possibilidade de que experimentações tragam efeitos negativos.

Em 2017, o próprio Djokovic perdeu parte da temporada por causa de uma dor no cotovelo, mas adiou a cirurgia indicada para esses casos por acreditar que se recuperaria naturalmente, de forma holística. Sem sucesso, ele finalmente se submeteu à operação no começo de 2018, e só aí conseguiu voltar às quadras sem desconfortos.

Aliás, um artigo publicado no Instituto Ludopédio pelo profissional de educação física e cientista social Cristiano Mezzaroba e pelo também cientista social Daniel Machado da Conceição lembra que alguns atletas alegaram que não se vacinaram contra a COVID-19 por medo de o imunizante alterar os resultados de exames de doping. Outros disseram estar com receio de ele afetar o desempenho esportivo. Mas Mezzaroba e Conceição destacam que ambos os argumentos são, provavelmente, desculpas para justificar motivos obscuros. Ora, diversos atletas tomaram a vacina e nenhum foi pego no doping por esse motivo. E, enquanto Djokovic ficou de fora do Aberto da Austrália, o vacinado Rafael Nadal levantou a taça.

 

“Atleta é também cidadão”

A frase acima, dita por Rubio, destaca o óbvio: os esportistas estão sujeitos, como o resto da população, a influências do ambiente político. Na Sérvia de Djokovic, apenas 47% da população está vacinada, segundo o site Our World in Data. Além disso, sua esposa já postou no Instagram um vídeo em que o teórico da conspiração Thomas Cowan diz que a tecnologia 5G de internet móvel é a causa do coronavírus. Conclusão: o tenista está inserido em um meio onde a vacinação não é vista com bons olhos.

O surfista Kelly Slater também não se vacinou contra a COVID-19 por motivos ideológicos. “Mas ele vem de uma onda antivacina mais californiana, de não querer nada que não seja natural”, diferencia Rubio. Já o jogador de basquete Kyrie Irving se recusa a tomar o imunizante por uma suposta defesa irrestrita de liberdades individuais, especialmente popular nos Estados Unidos.

“Há uma dinâmica e trocas de informações entre os grupos nos quais essas pessoas se inserem. É um tecido social que dá sustentação para decisões como essa”, aponta Pilati.

Justamente por integrarem a sociedade, os atletas profissionais – mesmo os mais famosos – precisam se submeter às normas sociais e regras vigentes. Decisões como a de barrar a entrada de Djokovic na Austrália ou a de suspender a partida de futebol entre Argentina e Brasil porque jogadores não cumpriram regras de isolamento exigidas pela Anvisa ajudam a delinear outro pressuposto óbvio: ninguém deveria estar acima da lei.

 

Dinheiro

Além das premiações dos torneios, atletas podem forrar suas contas bancárias propagandeando produtos e serviços. E, no confronto entre o bolso e a defesa da ciência, muitas vezes o primeiro leva a melhor.

Em 2010, jogadores de ponta da NBA (entre eles Shaquille O’Neal e Kobe Bryant) promoveram uma pulseira chamada Power Balance. A fabricante alegava que, ao colocá-la no braço, o usuário ganharia flexibilidade, equilíbrio e potência. Cristiano Ronaldo, David Beckham, Rubens Barrichello e outros esportistas também apareceram em público com a tal Power Balance. Só naquele ano, a empresa teria ganhado US$ 35 milhões em vendas.

Mas estudos mostraram que a Power Balance não gerava qualquer benefício para além do placebo. A empresa sofreu diferentes processos por publicidade enganosa e teve de admitir que seu produto era ineficaz. O que, convenhamos, não deveria ser uma surpresa. Não há motivo razoável para imaginar que uma pulseira faça as pessoas jogarem melhor basquete, futebol ou o que for.

Antes de apoiar um produto com alegações tão extraordinárias, seria de esperar que os atletas e os profissionais que os cercam exigissem evidências igualmente extraordinárias. Mas não é esse o caso.

“Há uma dinâmica comercial no mundo do esporte profissional que pode favorecer a adesão a produtos sem eficácia comprovada”, aponta Rubio.

 

Superstição

O nadador que usa sempre a mesma sunga nas provas não necessariamente faz isso para ganhar uns trocados por exposição de marca. “Os atletas são muito supersticiosos”, diz Rubio.

Uma de suas alunas, a profissional de educação física Bianca Silva, revisou estudos que investigaram a superstição e os movimentos repetitivos no esporte (entrar sempre com o pé direito em quadra, adotar um ritual antes de sacar, etc) como um projeto de iniciação científica. “Os estudos são contraditórios em seus resultados, mas é possível que uma superstição traga mais segurança para o atleta”, aponta Bianca.

Em uma entrevista para Veja Saúde, o psicólogo americano e estudioso das superstições Stuart Vyse afirma que, na maioria das vezes, essas manias “não fazem mal”. No entanto, ressalta que há circunstâncias nas quais podem ser negativas.

“Se levadas muito a sério, as superstições nos aproximam de raciocínios mágicos. É uma fresta na porta que leva às pseudociências”, alerta Pilati. Para quem realmente acredita que vestir aquela sunga velha da primeira vitória ajudará a superar seus adversários, imaginar que uma pulseira pode melhorar o equilíbrio e a força pode não ser tão absurdo. 

Seja com superstições ou estratégias pseudocientíficas, Pilati pede atenção com o viés de confirmação. As pessoas, principalmente quando engajadas em um tema, tendem a lembrar ou interpretar fatos de acordo com suas crenças ou hipóteses. Se o corredor crê que um dilatador nasal o ajuda durante uma competição, ele tende a supervalorizar sua importância nas vitórias, e a esquecer seu uso nas derrotas. E não, a ciência não mostra que esse tipo de adesivo no nariz favorece a respiração e a oxigenação dos tecidos.

“Esse é um dos motivos pelos quais o argumento de que ‘para mim funcionou’ não deveria ser considerado. A autoavaliação é muito limitada”, ensina Pilati.

 

Este artigo foi atualizado em 19/02/2022 para incluir uma nova referência, com resultado negativos, sobre o uso de ventosas,

 

Theo Ruprecht é jornalista com foco nas áreas de saúde e ciência, e um dos criadores do podcast Ciência Suja

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