Quem tem medo do aspartame?

Artigo
7 jul 2023
colher de açúcar

 

Enquanto escrevia outro artigo, meu pai me enviou a seguinte matéria do Poder 360: “OMS classificará adoçante de Coca Zero como potencial cancerígeno”. Destarte, imaginei que se tratava de mais uma notícia sensacionalista que realizara alguma ilação indevida. Contudo, para minha surpresa, trata-se de uma ação promovida pela Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer (IARC), um órgão que faz parte da OMS.

Para entender o que foi concluído pelos pesquisadores, busquei o documento completo da IARC. Mas ainda não foi divulgado: o prazo é 14 de julho. Portanto, não se sabe quais evidências foram analisadas para classificar o aspartame como possivelmente carcinogênico (grupo 2B na tabela da IARC). Por mais que o nome assuste, essa classificação – como veremos – apresenta nuances essenciais que devem ser consideradas.

Então, antes que o desespero venha, ressalto que o alarde criado e amplificado é injustificável – pelo menos até agora. Só poderemos ter uma avaliação concreta após analisar o relatório final da agência.

 

O que é aspartame?

Aspartame é um edulcorante não calórico, com alto poder adoçante e muito utilizado pela indústria alimentícia, sendo incorporado em refrigerantes de baixa caloria, chicletes, cereais matinais e, até mesmo, em pastas de dente.

BUTCHKO, H. et al. (2002) realizaram uma revisão ampla a respeito da segurança do edulcorante com o intuito de esclarecer algumas preocupações relacionadas a problemas de saúde – adiantando, só utilizarei informações referentes a sua composição química, visto que há um conflito de interesse homérico neste artigo: dois dos pesquisadores são afiliados à Nutrasweet Company (uma empresa do ramo de edulcorantes).

Segundo os autores, o aspartame é um edulcorante de alta intensidade único, visto que seus metabólitos, formados após a digestão, são dois aminoácidos comuns na alimentação, o ácido aspártico e a fenilalanina, e o metanol.

Esses subprodutos são utilizados pelo organismo da mesma maneira que quando consumidos em outros alimentos. Para um exemplo prático, um copo de leite desnatado apresenta seis vezes mais fenilalanina e treze vezes mais ácido aspártico. Isso também é observado com relação ao metanol, já que um copo de suco de tomate apresenta uma concentração seis vezes superior quando comparado a um refrigerante adoçado 100% com aspartame.

 

E a notícia?

Semelhante a uma brincadeira de telefone sem fio, a matéria da agência Reuters – os primeiros a noticiarem – sofreu diversas distorções desde sua publicação. Algumas foram brandas (“OMS deve declarar adoçante aspartame como cancerígeno”). Outras, por sua vez, extrapolaram o limite do bom senso (“Substância da Coca Zero pode ser classificada como cancerígena pela OMS”).

Por conta disso, esta seção será um resumo das partes principais da notícia, utilizando minhas próprias palavras.

Segundo a Reuters, duas fontes que tiveram acesso ao documento da IARC afirmam que o aspartame, um dos adoçantes artificiais mais comuns do mundo, será classificado como possivelmente carcinogênico agora em julho.

Contudo, essa classificação não leva em consideração o quanto da substância pode ser ingerido diariamente de forma segura, ou seja, qual o limite a partir do qual o consumo se torna efetivamente arriscado. Essa definição é responsabilidade do Comitê Misto FAO/OMS de Especialistas em Aditivos Alimentares (JEFCA) e das agências regulatórias nacionais.

Em 1981, O JEFCA considerou que o aspartame, desde que dentro da ingestão diária aceitável (IDA) – 0,40 mg/kg -, é seguro para o consumo. Para atingir o limite estipulado, um adulto de 60 kg precisaria beber entre 12 a 36 latas de refrigerante diet todos os dias. O comitê do JEFCA também publicará um relatório em 14 de julho.

Como dito anteriormente, não sabemos o que virá na versão final do documento da IARC. Contudo, a agência divulgou em 26 de junho uma “amostra” do que fora analisado para a elaboração.

De acordo com o documento “Aspartame: Questions and Answers”, a agência avaliou um potencial efeito carcinogênico do aspartame (fez uma “identificação do perigo”). Diante disso, o JEFCA atualizará sua “avaliação de risco”, incluindo uma revisão do IDA e de exposição diária.

O objetivo da “identificação de perigo” é constatar que determinada substância/hábito apresenta potencial de prejudicar a saúde humana. A “avaliação de risco”, por sua vez, tem como objetivo analisar a probabilidade do perigo em questão – seja substância/prática – provocar danos. Por exemplo, água é um perigo – pessoas podem se afogar –, mas só se torna um risco concreto em grandes quantidades (ninguém se afoga num pingo de chuva, afinal).

Ou seja, a IARC concluiu que há potencial carcinogênico no aspartame, enquanto o JEFCA está conduzindo uma análise de avaliação de risco. Esse é o motivo de ambas as monografias serem consideradas complementares.

A decisão de avaliar o aspartame partiu do grupo de aconselhamento de recomendações prioritárias da IARC no ano de 2019. Dentre as substâncias que seriam avaliadas ou que sofreriam reclassificação, o aspartame foi considerado um agente de alta prioridade, devido a algumas evidências emergentes relacionadas a câncer em humanos e estudos em animais. Ao todo, o grupo de pesquisa da IARC coletou mais de 7.000 referências e incluiu aproximadamente 1.300 estudos em sua revisão.

Como ocorre a análise da IARC?

Um grupo de especialistas internacionais e independentes da agência revisa, criticamente, a evidência científica segundo os critérios do IARC Monographs Preamble.

Em resumo:

“O grupo de pesquisa considera estudos epidemiológicos relevantes, biópsias de câncer em modelos animais, possíveis mecanismos de ação e informações de exposição em humanos. É importante ressaltar que apenas estudos publicados na literatura científica são revisados”.

“Sob determinadas circunstâncias, materiais disponíveis publicamente podem ser revisados, desde que seja possível analisar a qualidade dos métodos e dos resultados. Entende-se por materiais: teses de doutorado, banco de dados e relatórios de agências governamentais”.

Podemos definir o processo de revisão em cinco etapas.

1. Compreender e identificar informações relevantes – Pesquisa em bancos de dados biomédicos (Pubmed, Pubchem), consultas com especialistas e outros especialistas técnicos, ou através do “Call for Data” (uma oportunidade para autoridades reguladoras enviarem artigos não publicados para serem analisados).

2. Triagem, seleção e organização dos estudos – A secretaria da IARC utiliza critérios de exclusão pré-definidos com o intuito de eliminar artigos que não estejam relacionados à investigação em questão.

3. Avaliação da qualidade do estudo – O grupo de especialistas avalia a qualidade dos artigos incluídos baseados na metodologia, desenho e outras variáveis relevantes.

4. Reportar as características dos estudos incluídos e avaliação da qualidade do estudo – Revisão e descrição das características e resultados pertinentes durante a análise dos artigos.

5. Sintetizar e avaliar a força da evidência – O grupo de especialistas sumariza os pontos fortes e as limitações de cada linha de investigação (câncer em humanos, modelos animais, mecanismos de ação).

Após todo esse processo, a substância é enquadrada em uma das quatro categorias: 1 (agente carcinogênico para humanos), 2A (provavelmente carcinogênico para humanos), 2B (possivelmente carcinogênico para humanos) e 3 (não classificado como carcinogênico para humanos). Havia uma categoria 4, para substâncias demonstradamente não carcinogênicas, mas ela está sendo abandonada. 

 

As categorias

Se não houver mudanças no documento final, o aspartame fará parte do grupo 2B. Mas o que isso significa? Faltou boa vontade dos jornais em buscar essa informação e tranquilizar o público.

Segundo a IARC, agentes e substâncias podem ser categorizadas em quatro classificações distintas:

Grupo 1. Agentes carcinogênicos para humanos: aqui estão os agentes ou substâncias para os quais a IARC considera haver evidências suficientes que permitem afirmar que sim, causam câncer em seres humanos. A avaliação leva em conta resultados de estudos epidemiológicos que demonstram a ocorrência de câncer em humanos expostos ao agente em questão. Ou, ainda, quando há evidências suficientes de carcinogenicidade em modelos animais e respaldadas por evidências fortes de humanos expostos ao agente e que exibiram uma ou mais características-chave da carcinogênese. O tabaco está aqui.

Grupo 2A. Agentes provavelmente carcinogênicos para humanos: para classificar agentes nessa categoria, os pesquisadores consideram que há evidências limitadas de carcinogenicidade em humanos e/ou evidências suficientes em modelos animais, ou uma forte evidência mecanicista – basicamente, quaisquer alterações químicas ou fisiológicas que ocorram frente à exposição ao agente – que demonstrem características-chave da carcinogênese em humanos. Evidência limitada de carcinogenicidade significa que existe uma associação positiva entre a exposição ao agente e o câncer, mas reconhece-se a possibilidade de a associação ter outras explicações para além de uma relação de causa e efeito (geralmente conhecidas como vieses, coincidência ou fatores de confusão).

Grupo 2B. Agentes possivelmente carcinogênicos para humanos: essa categoria é geralmente utilizada quando uma das seguintes avaliações é feita pelo grupo de pesquisa:  evidência limitada de carcinogenicidade em humanos, evidência insuficiente de carcinogenicidade em modelos animais ou forte evidência mecanicista que demonstre características chave da carcinogênese em humanos.

Grupo 3. Agentes não classificados em relação ao seu potencial carcinógeno em humanos:

Essa categoria é usada para agentes que apresentam evidências inadequadas de carcinogenicidade em humanos, evidência de carcinogenicidade limitada ou inadequada em experimentos com animais e evidências mecanicistas limitadas ou inadequadas.

Vale ressaltar que as classificações refletem a visão da IARC quanto ao grau de evidência científica de que um agente pode causar câncer, mas não indicam o grau de risco. Isso ocorre porque tipos de exposição, duração, quantidade consumida, tipos de câncer associados a diferentes agentes e até mesmo os grupos populacionais em risco podem variar de acordo com cada agente em análise.

Igualmente importante: é possível que dois agentes façam parte do mesmo grupo e, mesmo assim, serem extremamente diferentes em relação ao risco de desenvolvimento da doença. Isso fica nítido quando observamos o Grupo 1. Estão alocados nessa categoria tanto o consumo de carnes processadas (os embutidos) quanto o hábito de fumar tabaco. Acho que ninguém em sã consciência afirmaria que comer um salaminho tem o mesmo efeito deletério que fumar um cigarrinho.

Sabe o que já está na mesma categoria em que o aspartame talvez venha a ser classificado? Extrato da folha inteira de Aloe Vera – que alguns nutricionistas indicam beber para melhorar refluxo, mesmo sendo proibido pela Anvisa –, gasolina e campos magnéticos de baixíssima frequência. Apesar dos quatro exemplos estarem na mesma classificação, seria inverídico assumir que têm o mesmo potencial carcinogênico e, mais grave ainda, decretar que apresentam risco efetivo de câncer.  

 

Resultado

Talvez o JEFCA traga um parecer totalmente contrário à sua avaliação de 1981, apresentando um IDA muito inferior ao anterior e um novo limite de exposição diária. Todavia, o cenário onde o comitê mantém sua posição anterior e não realiza nenhuma alteração também é possível – e, na minha opinião, muito mais provável.

A verdade é que é impossível traçar conclusões firmes sem ver os documentos na íntegra. Sabemos dos pecados cometidos pelos veículos midiáticos. Não podemos decorrer em erros semelhantes e afirmar – sem provas – o que os relatórios dirão.

Até a divulgação oficial de ambos os documentos, sugiro que se leve em consideração um trecho presente no “Aforismos Sobre a Interpretação da Natureza e o Reino do Homem – Livro I” de um carcinogênico do grupo 1, Francis BACON.

“Assim, não é de se dar asas ao intelecto, mas chumbo e peso para que lhe sejam coibidos o salto e o voo. É o que não foi feito até agora; quando vier a sê-lo, algo de melhor será lícito esperar-se das ciências”. Em outras palavras, não se façam saltos de lógica com informações incompletas.

 

Mauro Proença é nutricionista

Referências

BUTCHKO, H. et al. Aspartame: review of Safety. Regul Toxicol Pharmacol. 2002. Apr;35(2 Pt 2):S1-93. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/12180494/.

RIGBY, J. e NAIDU, R. Exclusive: WHO’s cancer research agency to say aspartame sweetener a possible carcinogen – sources. 2023. Disponível em: https://www.reuters.com/business/healthcare-pharmaceuticals/whos-cancer-research-agency-say-aspartame-sweetener-possible-carcinogen-sources-2023-06-29/.

International Agency for Research on Cancer (IARC). Aspartame Questions and Answers. 2023. Disponível em: https://monographs.iarc.who.int/wp-content/uploads/2023/06/Meeting134-QA-June2023.pdf.

International Agency for Research on Cancer (IARC). IARC Monographs on the Identification of Carcinogenic Hazards to Humans. 2019. Disponível em: https://monographs.iarc.who.int/wp-content/uploads/2019/07/Preamble-2019.pdf

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