Síndrome de Havana e as conveniências da ignorância

Apocalipse Now
6 abr 2024
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Grilo

 

Dois artigos publicados recentemente no respeitadíssimo periódico médico JAMA mostram que pacientes sofrendo da “misteriosa” doença que ficou conhecida na década passada como “Síndrome de Havana” não diferem em nada, fisicamente, de pessoas saudáveis. Esses resultados reforçam o consenso científico, que vem se formando desde 2017, de que a Síndrome de Havana é uma doença psicogênica: isto é, com causas psicológicas e emocionais.

As únicas diferenças encontradas entre vítimas e não vítimas, segundo o par de estudos que saiu no JAMA, dizem respeito à presença subjetiva dos sintomas da síndrome (e, claro, de suas consequências objetivas), que incluem depressão, estresse pós-traumático e fadiga. Doenças psicogênicas não são “falsas” e nem resultado de “fingimento”: crenças e estados emocionais podem gerar reações físicas notáveis, incontroláveis e involuntárias. Isso ocorre o tempo todo – como quando alguém cora de vergonha, por exemplo. A vergonha é uma emoção social, que depende de certas crenças e do contexto, e o fluxo de sangue para o rosto não está sob controle consciente.

A imprensa americana entrou em polvorosa após a publicação. Da famosa série de documentários telejornalísticos 60 Minutes à revista Time, passando pelo Wall Street Journal e pelo Washington Post, ergueu-se uma gritaria que ora acusa agentes russos, usando algum tipo de arma secreta, de serem os causadores da doença, ora exige “mais investigações” para pôr a questão às claras – mudando alguns nomes e palavras-chave, poderia ser o velho coro dos homeopatas pedindo “só mais um estudo”, “rigoroso”.

O mistério, que para a ciência já está resolvido, segue, no universo da mídia e da política, ainda em aberto. Muitos dos títulos e peças de opinião publicados exigindo mais investigação e apontando o dedo para alguma super-arma russa imaginária batem na tecla de que a Síndrome de Havana é “real”. Como se problemas psicogênicos não fossem reais o bastante.

Há um preconceito implícito aí, trazido pela persistente convicção de que fenômenos gerados na mente ou estão sob controle absoluto da vontade (e que, portanto, doenças de causa emocional são “fraqueza”) ou não são “de verdade”, não passam de “fita” ou “fingimento”. O livro “Havana Syndrome”, de Robert W. Baloh e Robert E. Bartholomew, descreve como uma das primeiras vítimas da síndrome, ao ser confrontada com o diagnóstico psicogênico, declarou-se “insultada”.

 

O caso

Não sei o quanto a questão da “Síndrome de Havana” é conhecida no Brasil. Resumindo, a partir de 2016, primeiro um, depois dois, e por fim diversos funcionários da Embaixada dos Estados Unidos na capital de Cuba começaram a se queixar de estranhos sintomas, aparentemente neurológicos – dores de cabeça, tonturas, sonolência, dificuldade de concentração. Muitas vezes, os surtos eram precedidos por ruídos estranhos, às vezes descritos como “estalos” ou “sons altos e metálicos”.

Em uma representação diplomática baseada em território hostil, os casos logo passaram a ser vistos como questão de segurança, e o mito da “arma sônica” nasceu. A ideia geral seria de que agentes russos, com o beneplácito do governo cubano, estariam usando canhões de ultrassom, ou infrassom (ou, mais tarde, micro-ondas) para interferir com o funcionamento do cérebro dos americanos.

A hipótese é conveniente por vários motivos, todos errados, e também é inacreditável, agora por razões bem sólidas. No que diz respeito à conveniência, é uma explicação lisonjeira, que escapa dos preconceitos e estigmas normalmente associados a condições psicogênicas, além de converter as vítimas em personagens de um excitante techno-thriller; tem vilões fáceis de identificar; serve como uma luva à retórica anticubana popular em setores da direita americana.

Mas é inacreditável porque armas assim não existem – e, de acordo com as leis da física, provavelmente nem poderiam existir. Mesmo se existissem, é inexplicável o fato de “canhões” apontados para edifícios afetarem apenas os americanos lá dentro, e nenhum dos cubanos. As únicas armas sônicas cuja existência é conhecida são as que produzem barulho: barulho alto, insuportável, doloroso, em geral para dispersar multidões ou forçar a evacuação de edifícios.

Por fim, os “estalos” e “sons metálicos” ouvidos antes de certos episódios agudos da Síndrome foram, em alguns casos, gravados e, depois, identificados por biólogos como o canto de cigarras e grilos.

 

O poder da conveniência

Mas o poder do que soa mais conveniente não deve ser subestimado, ainda mais quando vaidades, preconceitos e considerações geopolíticas de grupos poderosos estão envolvidos. Em 2018, o mesmo JAMA que agora publica os dois estudos que falharam em encontrar causas físicas para a Síndrome de Havana havia publicado artigo afirmando haver evidência de danos palpáveis no cérebro de um grupo de pacientes, danos causados “pela exposição a uma fonte de energia desconhecida”.

O artigo ainda dizia que a causa psicogênica devia ser descartada porque não havia sinais de “fingimento” dos pacientes, o que só mostra que os autores não entendiam nada de efeitos psicogênicos.

O trabalho foi abraçado pela mídia e rechaçado pela comunidade científica. Um dos revisores que havia analisado o artigo antes da publicação (Robert W. Baloh) revelou que havia recomendado que o trabalho fosse rejeitado. O periódico europeu de neurociência Cortex publicou uma peça de repúdio, em que os autores concluem que o único mistério da Síndrome de Havana é “como um artigo neuropsicológico tão pobre poderia ter passado pelo escrutínio de revisores especialistas em uma revista de primeira classe”.

 

Ignorância construída

O poder combinado da conveniência e do preconceito ainda se faz sentir. Os dois artigos recentes no JAMA, por exemplo, pisam em ovos para não atribuir a Síndrome a causas psicogênicas, referindo-se aos sintomas da doença como Incidentes de Saúde Anômalos (e usam até uma sigla para isso, AHI) e preservando a aura de “mistério”.

O historiador Robert N. Proctor cunhou o termo “agnotologia” para se referir ao estudo da produção social da ignorância: da pesquisa a respeito de como grupos, comunidades ou mesmo sociedades inteiras dispendem energia para se manter ignorantes de certas coisas, e dos interesses a que essa ignorância produzida serve, em cada caso.

O não reconhecimento “agnotológico” de causas psicogênicas em situações como a Síndrome de Havana, em certas reações adversas atribuídas a vacinas ou em certos casos de covid longa, por exemplo, pode ter conjuntos de causas diversos, mas, em todos, preconceito e estigma certamente desempenham algum papel. Ninguém quer ser “acusado” de ter um problema que “é só coisa da sua cabeça”. Mas diagnóstico não é acusação, e o que é o ser humano, afinal, para além daquilo que tem dentro da cabeça?

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares) e "Que Bobagem!" (Editora Contexto)

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