É crucial entender o pensamento científico

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7 jul 2023
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A necessidade de letramento científico da população em geral é assunto antigo. Trata-se de tema relevante para a educação, desde a fundamental até a de nível pós-graduado, assim como é objeto de preocupação de diferentes ações de comunicação científica para o amplo público. Considerando a recente “pandemia” desinformativa, este tema volta à tona, sobretudo com o argumento de que incrementar o letramento científico é uma forma de inocular as pessoas contra a desinformação, especialmente aquela relacionada a temas científicos, como as orientações em saúde ou o aquecimento global. O argumento procede, mas há um problema de fundo que ainda precisa ser melhor compreendido cientificamente, algo que nosso grupo de pesquisa tem procurado elucidar nos últimos anos, visando propor soluções práticas para a sociedade.

À primeira vista e para boa parte da comunidade científica que estuda o assunto, o letramento científico se resolve com o desenvolvimento de habilidades cognitivas focadas na apreensão do que são conceitos e ideias científicas, assim como do método científico. Essa concepção de letramento restringe a ideia a uma capacidade racional de analisar informações, avaliar a qualidade da evidência que subsidia essa informação e então emitir um julgamento. Deixa de fora vários processos e mecanismos cognitivos e comportamentais que são parte relevante da elaboração do pensamento científico, que se define como um conjunto de processos cognitivos-afetivos e características pessoais que permite às pessoas aplicar o modo científico de raciocínio a diversas informações, ideias e temas de interesse.

Assim, entende-se que essa concepção restrita de letramento está desalinhada em relação aos modelos científicos atuais sobre cognição-afeto e comportamento humano. Isso produz problemas de percurso como, por exemplo, uma proposta limitadora do ensino de ciências (deveríamos dizer do ensino do pensamento científico). Talvez por concepções educacionais como essa é que se vê espanto e consternação quando uma pessoa com doutorado em uma área científica não se convence que evidências simples indicam que o planeta não é plano ou, então, quando um ganhador do Prêmio Nobel considera suficientes os relatos de abduzidos como prova de vida extraterrestre (acredite, ambos os casos são verdadeiros e registrados).

Defendo que boa parte deste problema se centra em uma concepção incompleta dos mecanismos psicológicos envolvidos na compreensão do pensamento científico. Pensamento científico vai além da aplicação do raciocínio científico a diferentes situações, mas engloba um conjunto de outros mecanismos. Na ciência psicológica o interesse pelo tema é antigo, com contribuições registradas até 1935. Ao menos dois autores (John Herring e Victor Noll) procuraram definir pensamento científico a partir de um amplo espectro de facetas e dimensões. Aparentemente, nas décadas seguintes, o interesse pelo estudo e sistematização do pensamento científico cessou. Na ciência psicológica e áreas correlatas houve o desenvolvimento de outros conceitos e mecanismos psicológicos relacionados ao pensamento científico, mas que não o abordam de forma focalizada. Aliado a isso, deve-se atentar para o fato de que os modelos mais influentes da psicologia científica contemporânea se modificaram, sobretudo nos últimos 40 anos, permitindo uma compreensão renovada dos mecanismos centrais do pensamento científico.

Pesquisa recente, feita em diferentes campos, tem procurado compreender de forma ampla o conjunto de fatores afetivos e cognitivos que desencadeiam e influenciam fenômenos que se tornaram corriqueiros na atualidade. Não serei exaustivo na lista, pois me restringirei a alguns exemplos. A pesquisa feita sobre os determinantes da desinformação nas redes sociais, sobretudo após 2016, produziu compreensão relevante para o tema do pensamento científico. Ou, então, as pesquisas sobre os determinantes da mentalidade conspiracionista, em voga nos últimos dez anos, mas que, em decorrência da pandemia de COVID-19 acentuou-se aceleradamente e que tem se demonstrado útil para a compreensão de diversos comportamentos coletivos.

Ainda poderia citar aqui os estudos sobre o raciocínio motivado, que é um processo básico da cognição humana, usualmente empregado como meio para rejeição de diversos tipos de informações, inclusive as científicas. Ainda valeria lembrar o papel que os mecanismos de pertencimento e identificação grupal desempenham como motivadores de coesão grupal, funcionando como uma estratégia poderosa que pode levar ao fracasso da lógica e da razão, impulsionando os indivíduos para rejeição motivada da realidade fática e servindo de lastro para, por exemplo, a proliferação da mentalidade conspiracionista. Cito aqui apenas alguns dos mecanismos psicológicos propostos, estudados e que resultaram em conhecimento relevante nos últimos 50 anos e que agora precisam ser utilizados para conceituar e compreender de maneira ampla o pensamento científico.

Já passa da hora das ciências comportamentais se debruçarem sobre a tarefa de conceituar e propor formas operacionais de medir os processos e características subjacentes ao pensamento científico. Esta é uma condição necessária para diversas tarefas urgentes. Uma compreensão boa e ampla do processo será útil para diferentes ações. Uma, particularmente importante, é como auxílio e mote para educação de ciências. A ideia é subsidiar um ensino que seja focado no processo científico como meio de propiciar a elaboração do pensamento científico, em detrimento de um enfoque exclusivo na literacia ou no raciocínio científico. Isto é importante, pois uma concepção ampla permite estratégias de ensino que promovam o pensamento científico de forma integral. Sem uma compreensão ampla, fica inviabilizado o emprego de recursos que permitam educar para o desenvolvimento do pensamento e do letramento científico.

Parte do problema da baixa frequência de adoção de ações e políticas baseadas em evidências científicas se dá pelo pouco letramento científico da população. Então, uma tarefa relevante é a promoção de educação científica que leve em conta a promoção do pensamento científico. Isto serviria tanto para incrementar a efetividade da adoção de políticas públicas pela população em diferentes áreas (saúde, educação, aquecimento global etc.) quanto como estratégia para a formação competente de gestores públicos formuladores de políticas. Em um cenário global de desafios cada vez mais urgentes, ações mais efetivas, baseadas em evidências, são ainda mais necessárias. Uma população com bom nível de pensamento científico é parte necessária para o enfrentamento destes e de vindouros desafios urgentes (e nem tão urgentes assim) da Humanidade.

 

Ronaldo Pilati é professor de Psicologia Social da Universidade de Brasília

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