Haverá justiça para as vítimas do negacionismo bolsonarista?

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30 jun 2023
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Ano passado, pouco antes do segundo turno, a revista Scientific American Brasil publicou um artigo meu a respeito do pleito. Reproduzo o texto abaixo, com algumas modificações e atualizações, para marcar a decisão do TSE de tornar o ex-presidente Jair Bolsonaro inelegível.

 

Há três anos, em meio à escalada do que viria a ser a maior crise sanitária global em mais de um século, o povo brasileiro olhou para o fundo do abismo aberto pelo desprezo do Estado, dos eleitores e da classe política pela ciência: morte, sofrimento, desamparo e desespero; colapso econômico; cientistas e instituições nacionais, capazes e competentes o suficiente para criar as vacinas de que tanto necessitávamos, impedidos de fazê-lo por uma combinação perversa de subfinanciamento e obscurantismo.

Conselhos baseados em evidência foram desprezados na formulação de políticas públicas, varridos para debaixo do tapete por uma mistura de ideologia cega e vaidade irresponsável. Na literatura científica, com revisão por pares, é possível encontrar pelo menos três artigos (Razafindrakoto et. al., 2021; Cabral et. al., 2021; e Xavier et. al., 2022) vinculando diretamente a tragédia brasileira na COVID-19 ao comportamento e às decisões negacionistas e anticientíficas do agora inelegível Jair Bolsonaro.

Com menos de 3% da população mundial, o Brasil respondia, em agosto de 2022, por mais de 10% das mortes globais causadas pelo SARS-CoV-2. Estimativas feitas por cientistas brasileiros e publicadas na grande imprensa (no jornal Folha de S. Paulo, por exemplo) apontam que os erros e omissões deliberadas do governo federal, no cenário pandêmico, causaram dezenas, se não centenas, de milhares de mortes.

O excesso de óbitos acumulado durante a pandemia, até o segundo semestre do ano passado – proporção de vidas perdidas acima do que seria esperado caso a COVID-19 nunca tivesse existido –, era de 23% no Brasil, segundo o site Our World in Data, ante 15% nos Estados Unidos, país com o maior número absoluto de mortes, lar de um movimento antivacinas enraizado, que não tem um sistema público de saúde universal e alvo de uma polarização política ainda mais severa do que a nossa. Na Itália, país duramente atingido no início da pandemia, essa taxa estava em 12%. No Uruguai, 7%. No Chile, 19% (na Nova Zelândia, país cuja liderança jamais cedeu terreno ao negacionismo, a taxa era negativa: -1%).

Ver Bolsonaro punido por sabotar – publicamente, publicitariamente, sem apresentar indícios ou provas, incitando seus seguidores a pôr a democracia em risco – a confiança na lisura do processo eleitoral é um alento, sem dúvida. Mas quando ele será punido por sabotar – publicamente, publicitariamente, sem apresentar indícios ou provas, incitando seus seguidores a pôr vidas em risco – a vacinação e as medidas não farmacológicas de contenção da COVID-19?

E mais: quando chegará, se é que chegará, a hora de a comunidade acadêmica brasileira fazer um acerto de contas com os “cientistas de Vichy” que traíram a fé pública, destruíram as próprias reputações e mancharam o nome de importantes universidades só para insuflar e propagar os delírios do capitão inelegível? Continuarão encastelados em seus privilégios, tendo como única punição efetiva o nojo no olhar dos alunos?

Bolsonaro foi punido pelo ataque às urnas. Os cúmplices da tentativa de golpe vêm sendo investigados pela polícia e punidos pela Justiça. Já o morticínio passa em silêncio, e os cúmplices refugiam-se na complacência dos colegas.

 

Carlos Orsi é jornalista, editor-chefe da Revista Questão de Ciência, autor de "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura) e coautor de "Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), obra ganhadora do Prêmio Jabuti, e "Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares)

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