“Do contra” não, negacionista mesmo

Artigo
2 fev 2022
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Apesar de ainda estar “no prelo”, o artigo de Rajão e colaboradores representa um marco no combate às pseudociências e aos negacionismos nesta “terra em que se plantando tudo dá”. O artigo revela a atuação de um grupo de pesquisadores que busca legitimar as demandas socioeconômicas da elite ruralista brasileira sem considerar o ethos consensual praticado pela comunidade de cientistas.

Ancorados no conceito dos contrarians, em bom português os “do contra”, os autores demonstram, por meio de um estudo de caso, que a Embrapa Territorial e seu líder, Evaristo de Miranda, exerceram influência política que teve consequências ambientais nefastas, como a prorrogação da primitiva queima da cana-de-açúcar e o relaxamento do Código Florestal em 2012. Além disso, os disparates anticientíficos produzidos pelo grupo estão no âmago da caquistocracia pós-democrática: políticas de redução de multas por crimes ambientais, perseguição a indígenas, sem-terra e quilombolas e, a “cereja do bolo”, a negação das recentes queimadas na Amazônia.

Em oposição às práticas de atuação típicas de pseudocientistas, o decoro dos autores, per si expresso na publicação em uma revista revisada por pares e de boa reputação, ampara-se também nas sólidas evidências apresentadas. Mas o artigo peca pelo excesso de decoro científico ao caracterizar negacionistas apenas como “contrarians”.

As práticas apontadas no artigo são claramente anticientíficas, como a criação de falsas controvérsias, a ocultação de evidências, a invenção de fatos, a distorção e negação da literatura, o uso indevido de credenciais e a divulgação de dados à imprensa e tomadores de decisão sem a devida revisão por pares. Um exemplo bem documentado no artigo foi a atuação política e anticientífica que resultou na drástica redução das áreas de preservação permanente e de reserva legal (des)protegidas pelo Código Florestal de 2012.

A literatura que suporta o artigo é atual e consensual. Além de desconstruir as alegações dos “do contra”. O conceito de contrarians, apesar de anglófilo e datado nestes tempos negacionistas, fornece uma boa estrutura teórica para os dados obtidos pelos autores nos sites da Câmara, do Senado e de outros órgãos oficiais, nos “artigos” de Evaristo de Miranda e da Embrapa Territorial e nas publicações da imprensa. Talvez os autores não fossem tão condescendentes com o negacionismo dos “contrarians” se tivessem lido o livro de Pigliucci e Boudry (2013) ou alguns dos trabalhos de Sven Hansson, especialmente “Negação da ciência como uma forma de pseudociência (2017)”.

A reputação ilibada dos autores do artigo, que não faz acusações levianas mas apresenta evidências verificáveis de má conduta científica, também é digna de nota. A descrição da retórica anticientífica em casos semelhantes é importante porque nos permite identificar seu grau de prevalência nas mais diversas camadas da atual sociedade brasileira. A revelação das práticas anticientíficas que há mais de 30 anos influenciam governos, chega em boa hora para despertar o senso crítico da combalida comunidade científica brasileira. O artigo deve ser lido e discutido por todos que se interessam pela verdadeira ciência neste país.

 

Valério Andrade Melo é engenheiro florestal, com mestrado na área pela Universidade Federal de Viçosa. É professor de ecologia no Departamento de Ciências Biológicas da Universidade Estadual de Santa Cruz, onde coordena o Coletivo Cético M.Faraday do Programa Caminhão com Ciência, um projeto permanente de extensão que faz popularização da ciência em escolas da região sul da Bahia. É editor da Wikipédia, com foco em verbetes sobre biodiversidade, educação, religiões e pseudociências, membro do Grupo Wikimedia no Brasil e do Guerrilla Skepticism on Wikipedia

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