Os 50 anos do experimento da prisão de Stanford

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11 nov 2021
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“Procuramos estudantes universitários do sexo masculino para experimento sobre vida na prisão. 15 dólares por dia por 1-2 semanas começando em 14 de agosto. Para mais informações & inscrições, compareça à Sala 248, Jordan Hall, U. Stanford”.

No verão de 1971, o anúncio acima circulou nos classificados de dois jornais do Vale do Silício, na Califórnia. Era o começo de uma história que acaba de completar meio século – e se incorporou com igual força à cultura pop e aos livros didáticos de psicologia.

O mais comum é contá-la da seguinte forma: Philip Zimbardo, um jovem professor de psicologia da Universidade Stanford, montou uma prisão de mentirinha no porão do Jordan Hall, prédio-sede do Departamento de Psicologia. O anúncio atraiu 75 voluntários. Uma pré-seleção isolou 24 jovens psicologicamente saudáveis, que foram divididos aleatoriamente em dois grupos: guardas e prisioneiros. Eram 9 titulares e 3 reservas em cada grupo. 21 deles acabaram participando de fato.

Todos os participantes receberam uma remuneração generosa de US$ 15 – o equivalente a US$ 100 atuais, em valores reajustados pela inflação – para cada dia dedicado à encenação. Zimbardo obteve as autorizações necessárias de todos os comitês de ética e fiscalização.

Os bandidos de mentira foram pegos em casa por carros de polícia de verdade, algemados, despidos na marra, higienizados com um spray e forçados a vestir uniformes numerados. As celas não tinham janelas, e a ausência de luz natural desregulou seus ciclos circadianos.

Por sua vez, os escalados para o papel de guarda vestiam fardas cáqui, empunhavam cassetetes e usavam óculos espelhados para esconder as expressões faciais. Embora não tivessem recebido nenhuma instrução específica, logo começaram a agir de maneira cruel e abusiva.

Os detentos acordavam no meio da madrugada para contagens desnecessárias e eram forçados a defecar e urinar em baldes, que não podiam esvaziar. Usavam toucas apertadas que escondiam o cabelo. O sadismo dos guardas levou um prisioneiro ao colapso. Ele urrou desesperado e implorou para ser liberado. Outro rapaz fez greve de fome em protesto, e foi trancado na solitária. No segundo dia, houve uma rebelião. Flexões, às vezes com alguém sentado nas costas do punido, tornaram-se castigo corriqueiro. As humilhações idealizadas e praticadas pelos guardas foram ficando mais sórdidas, forçando o encerramento precoce do experimento no sexto dia.

O Stanford Prison Experiment se tornou tão célebre que passou a ser conhecido apenas pela sigla SPE (a usaremos deste parágrafo em diante). A moral da história, repetida como um mantra por Zimbardo ao longo de décadas, se resumia na frase o poder da situação: qualquer pessoa mentalmente sã, mesmo que tenha uma personalidade afável, pode agir de maneira cruel e desumana ao assumir um papel social tóxico em um dado contexto.

A descrição original do estudo, publicada em 1973 e intitulada “Interpersonal Dynamics in a Simulated Prison” (“Dinâmicas interpessoais numa prisão simulada”, disponível aqui), não é citada com muita frequência. Os resultados do SPE começaram a ser amplamente divulgados, de maneira informal, pouco após o encerramento do estudo, e boa parte da história canônica narrada acima vem de palestras de Zimbardo, dos numerosos textos de divulgação científica e reportagens escritos sobre o SPE ou dos mais de dez filmes e documentários que o abordam.

Perante o público, Zimbardo tornou-se o Carl Sagan da psicologia, e num sentido bem literal: a emissora pública dos EUA, a PBS, o convidou para apresentar um programa sobre a mente humana que seguisse a mesma linha do clássico Cosmos. Hoje, ele é figurinha carimbada em TED Talks e outros eventos de divulgação científica. Quando militares americanos que guardavam a prisão de Abu Ghraib no Iraque em 2003 estupraram e torturaram prisioneiros de guerra, Zimbardo se tornou um importante consultor para a investigação.

Nos últimos vinte anos, porém, surgiram evidências sólidas de que o SPE foi manipulado para atingir resultados desejados de antemão, e tentativas de replicá-lo sugerem que pessoas comuns, postas no papel de guardas, não se tornam automaticamente cruéis.

Em 2019, o psicólogo Thibault Le Texier da Universidade de Nice, na França, publicou a crítica mais minuciosa já feita ao SPE em um periódico da Associação Americana de Psicologia (APA). Após revisar a documentação do projeto doada pelo próprio Zimbardo a Stanford, e entrevistar 15 participantes, Texier resumiu todas as objeções éticas e metodológicas feitas ao longo de duas décadas. Vamos a elas.

 

Jogo dos sete erros

No final do primeiro semestre de 1971, Zimbardo passou um trabalho em grupo para seus alunos em uma disciplina de graduação sobre psicologia social: conceber e realizar um experimento sobre alguma situação de uma lista pré-determinada. Ela continha as seguintes opções: dependentes químicos moradores de rua, idosos em asilos, membros de cultos religiosos e detentos em prisões.

O grupo de cinco alunos que ficou com as prisões usou o dormitório da faculdade ao longo de um final de semana para realizar um experimento idêntico, em muitos aspectos, ao que seria o SPE alguns meses depois. Eles até mesmo entrevistaram Carlo Prescott, um ex-detento que cumpriu 17 anos no célebre presídio de San Quentin, e que se tornaria o principal consultor de Zimbardo.

De acordo com Texier, Zimbardo não credita o trabalho dos alunos de graduação nos slides e nem no vídeo que usou em palestras ao longo de décadas, e o menciona apenas de passagem em alguns livros e artigos científicos.

Todo pesquisador não só pode como deve refazer estudos feitos por outros pesquisadores – esse é o controle de qualidade básico do método científico –, mas é essencial informar quais aspectos do estudo original foram incorporados, ou não, à nova tentativa.

Porém, Texier lista evidências numerosas de que os guardas do SPE não imaginaram procedimentos como as contagens noturnas ou as flexões. Na verdade, os rapazes não só foram instruídos explicitamente a impor várias dessas regras de conduta como 11 delas (de um total de 17) já constavam do experimento amador no dormitório de Stanford.

O que nos leva ao segundo ponto: Zimbardo sempre afirmou que tanto os guardas como os prisioneiros tinham liberdade total de ação e reagiam apenas uns aos outros. As gravações e anotações do experimento, porém, revelam que Zimbardo informou o grupo dos guardas, antes do início dos trabalhos, que a intenção era criar um ambiente hostil, capaz de gerar sentimentos como revolta, humilhação, constrangimento etc.

Crueldades específicas, como forçar os detentos a defecar e urinar em baldes, não foram sacadas espontâneas: na verdade, se basearam em descrições do ex-detento Prescott sobre a vida no cárcere real, coisa que o próprio Prescott admitiu num artigo de jornal, em 2005. Ele escreve: “Afirmar que os ‘guardas’ brancos de classe média alta mentalmente sãos teriam imaginado essas coisas por conta própria é absurda”.

Os estudantes que assumiram o papel de guardas não foram informados de que eram objetos de estudo: ao longo do experimento, acreditaram ser ajudantes de Zimbardo, e admitiram agir de modo a cumprir o papel de guarda o melhor possível. Veja, por exemplo, um relato do guarda número 4, cuja identidade não foi revelada, logo após a experiência: “Pensei que seria o melhor para o estudo se apresentasse o que imaginei ser uma relação realista entre guarda e prisioneiro. (...) Ao longo de todo o experimento, fui um ator”.

Mesmo que não houvesse instruções, porém, uma crítica recorrente é que o desenho do estudo subentendia que os guardas deveriam ser cruéis – e selecionava pessoas mais aptas a exercer o papel desta maneira.

Um estudo de 1975, que entrevistou 150 universitários, mostrou que 90% deles, ao lerem uma descrição do SPE, deduziram automaticamente que os pesquisadores esperariam um comportamento hostil dos guardas. Um outro estudo sugere, inclusive, que o viés começou no momento da convocação dos voluntários, já que o anúncio no jornal informava tratar-se de um experimento sobre “vida na prisão” – o que já o deixava mais atraente para pessoas com certos traços de personalidade.

(Essa ideia condiz com evidências de que jovens mais propensos à violência se alistavam com mais frequência na SS, a organização paramilitar nazista que organizou o Holocausto. A seguir, falaremos mais sobre o uso do SPE como explicação para o horror nazista)

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Os relatos originais do SPE constantemente enfatizam o grau de imersão dos voluntários. A sensação de impotência dos prisioneiros fictícios teria sido suficiente para fazê-los esquecerem-se de que, na verdade, não havia nenhuma assimetria hierárquica – e que os guardas eram só outros estudantes. Entrevistas e anotações, porém, levam a crer que os voluntários passaram a maior parte do tempo cientes da artificialidade da situação.

Por exemplo: uma gravação emblemática do SPE é o surto do estudante Douglas Koppi, prisioneiro número 8612, que chuta a porta e grita “Vocês não sabem que quero sair? Aqui dentro tá f**a, não aguento mais uma noite, eu não consigo!” Koppi já afirmou muitas vezes, porém, que fez esse show de propósito, para forçar a própria saída – porque Zimbardo proibiu, na prática, que os voluntários desistissem sem um motivo de força maior.

“A razão pela qual aceitei o trabalho é que pensei que usaria as duas semanas para ficar sentado sozinho e estudar para minhas provas de admissão no mestrado (GREs)”, explicou em uma entrevista concedida em 2018. Após pedir gentilmente para ler na cela e ter o pedido negado, Koppi primeiro fingiu uma dor de estômago para ser liberado. Depois, simulou o surto, para forçar sua soltura.

Uma entrevista com Koppi publicada pelo escritor Ben Blum em 2018, no Medium, foi o estopim do maior escândalo em torno do SPE. Embora as críticas ao experimento no meio acadêmico já estivessem se acumulando com força desde o início de 2000 (e, com menos intensidade, desde a data de sua publicação), foi Blum que trouxe o assunto à mídia, gerando um artigo bastante crítico na Vox. Zimbardo pediu e conseguiu direito de resposta.

O francês Texier lista dezenas de outros problemas de viés e imprecisão na coleta de dados, que seriam difíceis apresentar exaustivamente neste espaço. Por exemplo: Zimbardo e seus colegas gravaram apenas 15 das 150 horas de experimento, e o artigo científico original, de 1973, admite que, “em sua maior parte, nossas preocupações na hora das filmagens eram cinematográficas: nós retratamos principalmente momentos dramáticos ou pouco usuais. (...) As ocorrências comuns, regulares e mundanas (...) são as que melhor representam a realidade (...) e nós não as gravamos (ou as gravamos pouco)”. Apesar disso, Zimbardo usa esses vídeos como fonte para uma tabela em que lista interações de teor majoritariamente negativo registradas entre prisioneiros e guardas.

Um último problema são evidências de que Zimbardo sabia qual conclusão queria alcançar antes de terminar o estudo. O professor de Stanford se comovia há anos com as más condições dos presídios da época, e defendia reformas urgentes no sistema carcerário, para que os presos não saíssem da cadeia piores do que entraram. Declarações da época do SPE mostram que ele sempre teve a intenção de usar o experimento como ilustração de suas ideias.

Em 2006, com financiamento e cobertura da emissora BBC, os psicólogos Stephen Reicher e Alexander Haslam, das universidades britânicas de Sr. Andrews e Exeter, replicaram o experimento de Zimbardo por oito dias, mas evitando influir na conduta dos 15 participantes (e, é claro, obedecendo a restrições éticas que não existiam em 1971). Eles relatam que os guardas, mais do que os presos, tiveram dificuldade em assumir seus papéis e impor autoridade. (Para os interessados, Zimbardo publicou uma resposta no mesmo periódico.)

 

A popularidade do SPE

Entre as décadas de 1960 e 1970, uma área chamada psicologia social ganhou bastante espaço tanto na academia quanto na mídia.

O julgamento e execução do oficial nazista Adolf Eichmann em Israel, em 1962, abasteceu um grande debate sobre a motivação dos alemães que trabalharam nos campos de concentração durante a 2ª Guerra. A comoção foi comparável ao problema das fake news ou à COVID-19: um assunto que normalmente ficaria restrito à esfera acadêmica se tornou corrente em jornais e mesas de bar.

Todos tinham curiosidade de saber se obedecer a ordens e estar imerso em um ambiente cruel são circunstâncias suficientes para fazer pessoas equilibradas se comportarem de maneira hedionda – mesmo sem qualquer histórico de violência ou diagnóstico de distúrbio mental.

Um marco dessa época foi o famoso experimento de Stanley Milgram, em que os cientistas pediam – mas não obrigavam – voluntários a dar choques elétricos de intensidade crescente em outras pessoas. Os choques não eram reais por razões éticas óbvias, mas os envolvidos não sabiam disso.

Antes do experimento, estudantes de psicologia e psiquiatras consultados por Milgram estimaram que apenas algo entre 1% e 3% dos participantes topariam dar o choque final, de 450 volts. Na prática, 65% aceitaram. Esse resultado, ao contrário do de Zimbardo, já foi replicado com relativo sucesso por experimentos subsequentes. 

Parte do sucesso duradouro de Zimbardo, porém, nasceu justamente do fato de que seu experimento foi divulgado como um acontecimento pop e entendido como uma continuação natural do trabalho começado por Milgram. David Amodio, um conhecido psicólogo social da Universidade de Nova York (UNY), comentou em 2018, no auge do escândalo causado pelo texto de Ben Blum no Medium: “A fraude mais séria parece ter ocorrido entre Zimbardo e uma audiência conivente na mídia, nos responsáveis por políticas públicas e na população em geral”.

Mídia à parte, o experimento permanece vivo no imaginário universitário. Uma análise de dez livros didáticos introdutórios sobre psicologia social, publicada em 2014, mostra que a maioria cita o SPE de maneira neutra ou laudatória, citando pouco ou nada das falhas metodológicas e éticas. O mesmo vale para as menções feitas em textos acadêmicos em áreas como direito penal e criminologia. Em 2016, questionários respondidos por 117 professores de disciplinas universitárias introdutórias em psicologia confirmaram que o SPE permanece popular em sala de aula – e as menções geralmente apoiam a conclusão básica do estudo, mesmo quando há menções breves aos problemas.

Para o psicólogo Ronaldo Pilati da Universidade de Brasília (UnB) – que trabalha com psicologia social e já investigou a distorção de dados e outras questões metodológicas em artigos científicos –, o SPE sobrevive na cultura universitária, em parte, porque o processo de atualização dos livros didáticos é lento em incorporar as críticas recentes, mas também porque os autores, mesmo que saibam delas, tendem a ser influenciados pela fama do estudo fora da academia e seu lugar ao lado do experimento de Milgram no cânone da psicologia.

Richard Griggs, um dos psicólogos responsáveis por gerar os dados sobre livros didáticos, defende que talvez a solução não seja tirar o SPE de vez dos cursos, mas sim usá-lo em aula como mau exemplo: uma ilustração de como pesquisadores interessados em projeção midiática e carreira podem manipular estudos, às vezes de maneira inconsciente.

É uma mensagem positiva para a psicologia contemporânea, que passa pelo que se denomina crise de reprodutibilidade (entenda melhor nestes dois textos de Pilati para a RQC): estudos antigos e bem conhecidos como o SPE, que muitas vezes servem de base para explicações bem aceitas sobre a mente humana, não dão os mesmos resultados quando são repetidos de maneira independente por outros pesquisadores, anos depois.

Uma tentativa de replicação de uma centena de estudos de psicologia publicada no periódico Science em 2015 revelou que 97% dos experimentos originais exibiam valores-p significativos (um índice tradicionalmente usado para avaliar a confiabilidade das conclusões de um estudo, mas que também vem sofrendo críticas), mas que só 36% das reproduções batiam a mesma marca.

Os erros de metodologia nos estudos originais em geral não são fruto de desonestidade intelectual pura e simples, mas da pressão para gerar resultados relevantes e contraintuitivos que chamem a atenção em meio à concorrência no meio acadêmico. A publicação de artigos em periódicos renomados é essencial para conseguir bolsas e fazer uma carreira sólida como pesquisador. Ou seja: não é só a psicologia que está em crise. A ciência como um todo vem olhando com cautela para si mesma, e descobrindo onde precisa melhorar.

Bruno Vaiano é jornalista

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