A miséria do desprezo pelas Humanas

Editorial
29 abr 2019
Pintura "A Morte de Sócrates", de Jacques-Louis David
Pintura "A Morte de Sócrates", de Jacques-Louis David (século 18)

No DVD "Romance", de Chico Buarque, antes da música "Todo Sentimento" o artista diz: "A arte é inútil. " E prossegue explicando que ninguém cria uma música ou obra de arte com um propósito específico, mas que, com frequência, encontra pessoas que lhe dizem que aprenderam português ouvindo suas músicas, ou que as canções inspiraram uma história real de amor.

A reflexão buarquiana põe em foco a miséria intelectual e emocional de um certo utilitarismo vulgar, que  preconiza que o ser humano só “precisa”, realmente, de casa, remédio, roupa e comida; que poesia, reflexão e liberdade são luxos. Na peça “Liberdade, Liberdade”, Millôr Fernandes e Flavio Rangel transcrevem trecho do julgamento, na Rússia soviética, do poeta Joseph Brodsky, acusado de não contribuir para a causa comunista – porque escrevia poesia em vez de trabalhar numa fábrica.

Em que pese a ojeriza do atual governo a tudo que diz respeito ao “comunismo”, quando o atual ministro da Educação, Abraham Weintraub, declara que o filho de uma família de agricultores deveria se contentar em ser veterinário, médico ou dentista – “imagina a família de agricultores que o filho retorna da faculdade com título de antropólogo?”, disse ele, com aparente escândalo, ao jornal Correio Braziliense – sua fala vem de um espaço mental não muito distante do dos juízes soviéticos.

Também é desse cubículo claustrofóbico que emana o recente tuíte do presidente Jair Bolsonaro, afirmando que o governo federal deve desincentivar o estudo de Ciências Humanas e Humanidades – Bolsonaro citou especificamente sociologia e filosofia –, porque o “objetivo é focar em áreas que gerem retorno imediato ao contribuinte, como: veterinária, engenharia e medicina”.

Há pelo menos um trio de equívocos embutido na manifestação presidencial: um, que apenas as áreas técnicas aplicadas (engenharia, etc.) geram retornos imediatos; dois, que retornos imediatos são só o que importa; três, que o conhecimento técnico aplicado surge por geração espontânea, num vácuo, sem nenhuma contribuição da pesquisa básica ou interdisciplinar.

Para ficar na questão dos médicos, citada pelo presidente: de acordo com o relatório sobre Demografia Médica, publicado pelo Conselho Federal de Medicina em 2018, o Brasil já conta com quase meio milhão de médicos formados.

Diz a apresentação do texto que “nunca houve um crescimento tão grande da população médica no Brasil num período tão curto de tempo. Em pouco menos de cinco décadas, o total de médicos aumentou num ritmo três vezes maior do que o de brasileiros”. É perfeitamente possível argumentar que o que falta, hoje, não é investimento na formação de médicos, mas sim, estratégias para levar os que estão sendo formados a atuar nas regiões mal servidas. E este é um desafio eminentemente sociológico. Que, se bem enfrentado, trará “retorno imediato ao contribuinte”.

Mas, claro, retorno imediato está longe de ser o único objetivo válido do investimento público e da atividade humana. O físico britânico Michael Faraday, que no século 19 criou duas das invenções mais práticas da história — o motor elétrico e o gerador elétrico –  respondia àqueles que sempre perguntam sobre a utilidade de algo novo: "Qual a utilidade de um recém-nascido?". Essa frase havia sido dita por Benjamin Franklin, em 1783, ao presenciar voos em balões.

Planck, Poincaré, Bohr, Heisenberg e outros tantos físicos que contribuíram para o nascimento da mecânica quântica certamente nunca imaginaram que essa fantástica teoria serviria para o desenvolvimento de lasers que auxiliam em cirurgias, equipamentos de ressonância magnética ou no estabelecimento do GPS ou na funcionalidade dos smartphones.

Falando em smartphones: a Teoria Matemática da Comunicação, publicada por Claude Shannon em 1948, é o que torna a internet possível – e o trabalho de Shannon é, fundamentalmente, matemático e filosófico. Mas, sem ele, a engenharia que conecta o mundo numa única rede seria inconcebível.

De acordo com artigo sobre os 100 anos da mecânica quântica publicado em 2001 na revista Scientific American ("100 years of quantum misteries”. Para acesso aberto, veja aqui), cerca de 30% do PIB dos Estados Unidos é baseado em alguma invenção que só se tornou possível por causa da mecânica quântica. Poderíamos preencher todo o espaço disponível neste editorial somente para apontar as tecnologias que hoje se utilizam dessa teoria, originada em pesquisa básica e sem perspectiva de “retorno imediato para o contribuinte”.

Como se vê, é muito fácil enumerar os benefícios tecnológicos da pesquisa fundamental em ciências exatas e biológicas. Isso acontece porque tais benefícios transformam a paisagem física ao nosso redor – água limpa, remédios, novas máquinas, mais produtos.

A filosofia, por sua vez, transforma e amplia a paisagem mental; o que nem sempre é imediatamente perceptível. Todos tendemos a achar que o mundo de ideias e conceitos em que estamos inseridos é “óbvio” e “normal”. Mas bastam cinco minutos de reflexão para mostrar que não é bem assim.

Há 400 anos, em boa parte do mundo Ocidental, a tortura e morte de inimigos do governo era um entretenimento que ocorria em praça pública; há três mil, leis permitiam que os pais vendessem as filhas como escravas. Há cem anos, mulheres eram impedidas de votar; há pouco mais de 40 anos, aqui mesmo no Brasil, o divórcio era ilegal e encarado como uma ameaça às “famílias de bem”.

Cada uma dessas mudanças envolveu trabalho filosófico – a clarificação de conceitos, a definição de princípios, o exame do sentido de ser humano. Na Grécia Antiga, Sócrates, o pai da filosofia no Ocidente, disse que “a vida não examinada não merece ser vivida”. E esse exame é trabalho das Ciências Humanas, das Artes e das Humanidades. Sócrates, aliás, foi condenado à morte porque seus ensinamentos estariam “desencaminhando a juventude”. Seria uma vítima, avant la lettre, da Escola Sem Partido?

Em “Liberdade, Liberdade”, o juiz russo pergunta ao poeta: “Quem reconheceu o senhor como poeta e lhe deu um lugar entre eles?”. Brodsky responde: “Ninguém. E quem me deu um lugar entre a raça humana?”. Ele ainda tinha 20 e poucos anos.  Em 1987, depois de emigrar para os Estados Unidos, Joseph Brodsky viria a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura.

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