
Recentemente, me enviaram (com justificada indignação) o link do Instagram de um profissional de saúde antivacinas. Encontrei ali uma sequência de posts que me chamou a atenção tanto pelo conteúdo em si (declaradamente antivacina), quanto pela retórica empregada. O "doutor" iniciava seu argumento contra a vacinação para gripe enunciando uma lista de ameaças sanitárias supostamente fictícias: "hepatite misteriosa", "varíola do macaco 1 e 2", "472 ondas do Kovyd", "triplidemia", "doença do carrapato", "surto de escarlatina", "pneumonia silenciosa chinesa" e até mesmo "varíola do mamute do Ártico".
A ideia era ironizar o aumento do número de casos de influenza, comunicado pela mídia como sendo preocupante, principalmente para crianças e idosos, em contraste com a baixa adesão vacinal. Em seguida, afirmava que tudo isso fazia parte de uma "narrativa do medo" orquestrada pelo "lobby da indústria farmacêutica" para vender vacinas e "controlar a população pelo medo das doenças e continuar lucrando".
É fato que a indústria farmacêutica não é uma “entidade boazinha” e carrega diversas manchas em seu histórico (comentamos sobre um desses casos neste artigo). A questão central, porém, não é se a indústria farmacêutica merece nosso ceticismo (sabemos que merece), mas como esse ceticismo legítimo pode ser manipulado por indivíduos com seus próprios interesses ocultos.
Foi exatamente isso que observei no caso em questão. Após construir essa narrativa de “denúncia”, o sujeito prosseguiu: “Ain, esse médico é antivax... Eu apenas trago dados claros e informação. Para quem quiser enxergar, enxergue. Pois essas discussões são proibidas e tem muito mais coisa que ninguém te fala”. Aqui, ele passa a se posicionar como “vítima perseguida”, uma espécie de mártir detentor de um "conhecimento oculto" e disposto a revelar "verdades que ninguém te fala". E então, usando elementos do marketing digital, surge a oferta: um curso de "verdades ocultas sobre vacinação" com desconto promocional: de R$ 197 por R$ 47.
Observando essa sequência, percebi estar diante de uma ironia gritante, mas não menos educativa. Ali estava, em tempo real, uma demonstração do que decidi chamar de "Lobby Camaleão": uma estratégia na qual se utilizam críticas indefinidas e genéricas a “lobbies farmacêuticos” para construir, no mesmo movimento retórico, o próprio lobby, disfarçado de resistência “heroica”.
Anatomia do camaleão
A estratégia funciona por meio de uma dupla camuflagem: o lobby real e tangível (por exemplo, para vender um curso antivax) se torna invisível ao projetar acusações contra um lobby vago e intangível (a “Big Pharma”). O resultado é uma inversão: aquilo que deveria ser questionado (o produto duvidoso que está sendo vendido) "atravessa a porteira" sem escrutínio, protegido pela cortina de fumaça da indignação direcionada contra um suposto inimigo que, embora mereça críticas, entra aqui apenas como foco de distração.
Se a indústria farmacêutica já cometeu excessos, faz lobby e já priorizou lucros sobre segurança em ocasiões bem documentadas (sendo punida em mais de uma oportunidade), é natural que, ao vê-la citada em tom de crítica, sintamos simpatia pelo crítico. O problema surge quando essas críticas (e a simpatia) são sequestradas para blindar práticas que deveriam estar sujeitas ao mesmo escrutínio.
Não há necessidade de análises complexas quando se tem vilões claramente definidos e legitimamente criticáveis. O praticante do “Lobby Camaleão” se posiciona como alternativa livre de interesses corporativos, criando uma falsa dicotomia entre a pureza moral do denunciante e a corrupção bem documentada do denunciado.
Mecanismos da camuflagem
Para compreender por que o Lobby Camaleão é tão eficaz, é preciso examinar seus mecanismos de ação. O primeiro é o que podemos chamar de "viés de confirmação moral": a tendência de aceitar alegações que confirmam nossa visão ética de mundo (especialmente quando essa visão inclui desconfiança de grandes corporações) sem submetê-las ao mesmo rigor crítico que aplicaríamos a alegações no sentido contrário. Quando alguém se apresenta como defensor dos "verdadeiros interesses da população", contra forças que sabemos serem de alguma forma problemáticas, a resposta emocional pode contornar os filtros racionais.
O segundo mecanismo é a "ilusão de assimetria": a crença de que somos movidos por princípios puros enquanto nossos adversários são guiados por interesses escusos. Isso cria um ponto cego cognitivo que isentas nossas motivações de questionamento. O praticante do “Lobby Camaleão” explora a assimetria posicionando-se do lado "moral" da equação, o que automaticamente projeta suspeitas sobre quem o questiona. Isso aconteceu comigo: quando fiz um comentário no post em questão, apontando para a estratégia empregada, fui acusado de ser “vendido para a indústria farmacêutica” (quando na verdade sou professor/pesquisador de uma instituição pública federal).
O terceiro elemento é a pose de vítima perseguida. Ao afirmar que "essas discussões são proibidas" ou que podem ser "perseguidos por falar a verdade", os praticantes evocam casos de cientistas e jornalistas que enfrentaram pressões por questionar grandes corporações, apropriando-se indevidamente de uma aura de heroísmo.
Da crítica ao lucro
Observando o caso específico que motivou esta análise, é possível identificar uma sequência estratégica que pode ser dividida em cinco fases distintas (e que se repete em contextos distintos, como na venda de tratamentos pseudocientíficos):
Fase 1: Estabelecimento do tom conspiratório. Uso de ironia para insinuar a existência de uma grande conspiração. No caso observado, termos fabricados para gerar um tom de ridículo, como "472 ondas do Kovyd" e "varíola do mamute do Ártico" são apresentados como equivalentes a preocupações sanitárias legítimas (como a gripe), dando a impressão de que tudo se encontra no mesmo plano. O objetivo é implicar a existência de uma conspiração responsável por toda e qualquer demanda por vacinas.
Fase 2: Identificação de um “vilão plausível”. Por exemplo, um agente de histórico conturbado: o "lobby da indústria farmacêutica". A atribuição é atraente porque oferece uma explicação simples para fenômenos complexos, e porque parte de padrões reais de comportamento corporativo previamente documentados.
Fase 3: Posicionamento (pseudo)heroico. O proponente se apresenta como a voz corajosa que ousa desafiar o sistema corrupto, apropriando-se da legitimidade de críticos sérios que enfrentaram retaliações reais. Frases como "essas discussões são proibidas" e "tem muito mais coisa que ninguém te fala" criam uma sensação de acesso privilegiado a informações.
Fase 4: Imunização preventiva por vitimização. Antecipando críticas, o proponente se defende: "Ain, esse médico é antivax!", rebatendo com "eu apenas trago dados claros e informação para que haja reflexão", imitando a linguagem de denúncia de pesquisadores e divulgadores científicos. Essa estratégia ganha credibilidade porque se baseia em padrões reais de silenciamento de vozes críticas.
Fase 5: Monetização disfarçada (ou não tão disfarçada assim). Finalmente, surge a oferta comercial disfarçada de solução independente: o curso que revelará "as verdades ocultas sobre vacinação", posicionado como alternativa aos produtos da indústria. O desconto de R$ 197 para R$ 47 é apenas um toque que cria uma urgência adicional.
A sofisticação do Lobby Camaleão é que ele não inventa críticas “do nada”, mas se apropria de críticas históricas para criar um verniz de legitimidade. A indústria farmacêutica realmente merece escrutínio constante: seus conflitos de interesse são reais e seus excessos, documentados. A comunidade científica que critica seus estudos presta um serviço essencial à sociedade e frequentemente enfrenta pressões reais.
O problema surge quando essa crítica legítima se torna uma ferramenta de distração que impede o questionamento de outros interesses comerciais. Ao comprarmos um curso sobre "verdades ocultas da vacinação" porque estamos revoltados com o “lobby da indústria farmacêutica”, demonstramos que nosso ceticismo é seletivo e pode ser manipulado. A pergunta fundamental é: essa desconfiança justificada sobre grandes corporações nos torna automaticamente imunes à manipulação por outros agentes? A resposta é: Não.
Danos colaterais
As consequências do Lobby Camaleão transcendem o prejuízo financeiro dos consumidores ludibriados. A estratégia contribui para a polarização artificial de debates que deveriam observar mais nuances. Críticas válidas sobre conflitos de interesse ficam contaminadas, dificultando discussões honestas sobre regulação sanitária e transparência corporativa. O resultado é uma polarização onde críticas válidas à indústria e a defesa de políticas públicas baseadas em evidências (como vacinação) ficam espremidas entre extremos. Essa dinâmica contamina o ceticismo legítimo, que deveria ser aplicado racionalmente a toda informação que se apresenta como científica.
No caso específico que analisei, minha resposta ao "doutor" tentou resumir essa ironia: "É admirável seu trabalho consistente... de marketing. Mais criativa ainda é a estratégia utilizada no post: criar um post criticando a ‘narrativa do medo’ usada para ‘lucrar com vacinas’ e fazer isso criando um post que usa a mesma narrativa do medo em relação ao uso de vacinas para lucrar vendendo curso antivacina. Se como profissional de saúde deixa muito a desejar, como marqueteiro está de parabéns."
Considerações finais
O Lobby Camaleão representa um desafio complexo porque se apropria de críticas históricas para fins questionáveis. Combater essa estratégia não requer que abandonemos as críticas à indústria farmacêutica. Pelo contrário, requer que protejamos essas críticas da apropriação comercial por oportunistas. Em um mundo onde informações sobre saúde são abundantes, mas de qualidade variável, é necessário estarmos sempre vigilantes contra manipulação, seja ela praticada por grandes corporações ou por seus pseudocríticos comerciais.
O camaleão é um animal fascinante, capaz de mudanças para se camuflar no ambiente. Mas na esfera da informação em saúde, mudanças de cor retóricas para disfarçar interesses comerciais merecem ser vistas pelo que realmente são: estratégias de marketing que parasitam reflexões necessárias, simultaneamente se beneficiando e sabotando o trabalho legítimo de críticos honestos.
André Bacchi é professor adjunto de Farmacologia da Universidade Federal de Rondonópolis. É divulgador científico e autor dos livros "Desafios Toxicológicos: desvendando os casos de óbitos de celebridades" e "50 Casos Clínicos em Farmacologia" (Sanar), "Porque sim não é resposta!" (EdUFABC), "Tarot Cético: Cartomancia Racional" (Clube de Autores) e “Afinal, o que é Ciência?...e o que não é. (Editora Contexto)