Verdadeira autonomia em saúde requer boa informação

Artigo
9 jun 2025
Imagem
duas pssoas discutindo

 

Nos últimos anos, tornou-se comum e socialmente aceito ouvir que "o paciente tem o direito de escolher seu tratamento", que "cada um sabe o que é melhor para si" ou que "a decisão final é sempre do paciente". Esse discurso, aparentemente libertador e democrático, funciona muito bem em uma era de crescente desconfiança nas instituições e de valorização da individualidade.

No entanto, por trás dessa retórica sedutora, há uma distorção perigosa do conceito de autonomia do paciente, que tem sido explorada por movimentos antivacina, promotores de pseudoterapias e negacionistas.

A confusão não é acidental. Nasce da incompreensão sobre o que realmente significa autonomia em saúde e sobre como deve ser exercida, dentro de um sistema que preza pela prática baseada em evidências e pelo bem-estar do paciente. Para compreender essa armadilha conceitual, precisamos distinguir entre dois tipos muito diferentes de autonomia: a autonomia formal e a autonomia substancial.

 

A diferença

Autonomia formal é um conceito relativamente simples: é o direito legal e ético que temos de tomar nossas próprias decisões, incluindo em saúde. É uma conquista histórica importante, resultado de décadas de luta contra diversas formas de autoritarismo, incluindo o autoritarismo médico, e é um pilar inquestionável da relação terapêutica moderna.

A autonomia substancial, por outro lado, é bem mais complexa. Não se resume ao direito de escolher, mas à capacidade efetiva de fazer escolhas informadas, deliberadas e alinhadas com os próprios valores e objetivos de vida, com base em uma compreensão clara do cenário. Isso significa compreender genuinamente as opções disponíveis, seus riscos e benefícios, as evidências que as sustentam e as consequências de cada alternativa.

Uma pessoa pode ter plena autonomia formal, ou seja, o direito de recusar uma vacina, por exemplo, sem ter autonomia substancial – caso sua decisão tenha sido baseada em informações falsas, medos irracionais ou compreensão distorcida dos riscos envolvidos (conforme discutimos neste artigo).

Tome como exemplo a minha carteira de motorista: tenho habilitação dupla (A e B). Portanto, tenho a autonomia formal para decidir, por exemplo, pilotar uma moto a qualquer momento. Mas, de modo substancial, seria arriscado (para mim e para os outros) fazer isso sem um novo treinamento, uma vez que desde que fiz a prova prática em 2007 nunca mais encostei em uma motocicleta. O exemplo ilustra que o direito de fazer algo não implica automaticamente a capacidade de fazê-lo de forma segura ou benéfica.

Movimentos antivacina e promotores de terapias alternativas descobriram há algum tempo que invocar a "autonomia do paciente" é uma estratégia retórica poderosa. Ao enquadrar decisões perigosas ou sem fundamento científico como “exercício de liberdade individual”, conseguem desviar o foco das (ausentes) evidências científicas para questões de direitos pessoais. "Você tem o direito de escolher", dizem, transformando uma decisão que deveria ser baseada na melhor evidência disponível (e em um diálogo informado com profissionais qualificados) em questão ideológica de liberdade versus opressão.

Essa estratégia é eficaz porque se aproveita de duas tendências psicológicas: aversão natural ao paternalismo explícito e tendência a superestimar a capacidade de avaliar informações complexas, especialmente em áreas onde não temos expertise. "Você é quem sabe o que é melhor para você" soa empoderador e respeitoso. Mas, na prática, pode ser uma forma sutil de abandonar um paciente à própria sorte em meio a um oceano de desinformação.

O problema se agrava quando a retórica da autonomia é usada para legitimar a recusa de intervenções com benefícios claros e bem documentados, ou a aceitação de intervenções de benefício duvidoso, comprovadamente ineficazes ou até mesmo perigosas.

 

Escolha desinformada

Aqui chegamos a um paradoxo importante: defender a autonomia formal sem garantir as condições para autonomia substancial pode, na verdade, minar a verdadeira liberdade de escolha. Uma pessoa que decide não vacinar seu filho, baseada na crença de que vacinas causam autismo (uma alegação já amplamente refutada pela ciência e desmascarada como fraude) não está exercendo autonomia genuína, está sendo vítima de desinformação e, consequentemente, pode estar agindo contra os melhores interesses de seu filho e da saúde pública.    

Isso não significa que devemos voltar ao paternalismo médico. Significa que precisamos de uma abordagem mais sofisticada e eticamente robusta, que reconheça que autonomia real requer informação de qualidade, tempo para deliberação e apoio para compreender opções complexas. É aqui que entra o conceito de tomada de decisão compartilhada.

A tomada de decisão compartilhada não é apenas "informar o paciente e deixá-lo decidir". É um processo estruturado que inclui: comunicação bidirecional sobre a condição clínica; apresentação clara das opções baseadas em evidência (incluindo a opção de não intervir, quando apropriado); exploração dos valores e preferências do paciente; deliberação colaborativa; e implementação de uma decisão consensual. É um processo que leva tempo, requer habilidades específicas e exige ferramentas adequadas de comunicação. É um modelo que visa empoderar o paciente através do conhecimento e do diálogo, não da simples delegação da escolha.

O que frequentemente acontece na prática é que profissionais de saúde, pressionados pelo tempo, pela falta de treinamento em comunicação ou inseguros sobre como lidar com a resistência do paciente, acabam usando a retórica da autonomia como forma de evitar conflitos ou de se eximir de uma responsabilidade profissional mais profunda. "O paciente não quer se vacinar? Tudo bem, ele tem o direito de escolher". Isso pode parecer respeitoso, mas pode ser uma forma disfarçada de abandono.

O verdadeiro respeito à autonomia do paciente exigiria investigar as razões da recusa, esclarecer dúvidas, corrigir informações incorretas e ajudar a pessoa a tomar uma decisão genuinamente informada. Isso é trabalhoso e nem sempre funciona, mas é o que distingue o cuidado centrado no paciente de mero formalismo.

O problema se torna ainda mais grave quando consideramos que a capacidade de exercer autonomia substancial não é igual para todos. A autonomia formal estabelece o direito universal de escolher e opera segundo o princípio da igualdade, tratando todos da mesma forma. A abordagem pode acabar perpetuando desigualdades ao não considerar diferentes necessidades individuais.

Em contraste, a autonomia substancial se apoia no princípio da equidade, reconhecendo que cada indivíduo demanda diferentes tipos e níveis de apoio para exercer a capacidade plena de decidir. A ausência desse suporte afeta de maneira desproporcional as populações mais marginalizadas.

 

Dimensão estrutural

Esta assimetria na capacidade de exercer autonomia substancial revela uma questão estrutural frequentemente ignorada nos debates sobre direitos do paciente: a autonomia não existe no vácuo, mas é moldada por condições materiais, educacionais e sociais. Uma mãe trabalhadora que precisa decidir sobre a vacinação de seu filho, mas só tem acesso a grupos de WhatsApp, não está operando no mesmo campo de possibilidades que um especialista com acesso direto à literatura científica e treinamento para interpretá-la.

Essa disparidade se manifesta de formas particularmente perversas no contexto das pseudoterapias. Pacientes em situação de vulnerabilidade (seja por doenças graves, limitações financeiras ou baixa escolaridade) tornam-se alvos preferenciais de discursos que prometem "devolver o controle" por meio de escolhas alternativas. A retórica da autonomia, nestes casos, funciona como uma cortina de fumaça que encobre a exploração da vulnerabilidade alheia.

As instituições de saúde, por sua vez, podem compactuar com essa confusão conceitual, ainda que passivamente. Ao adotar uma postura de neutralidade aparente ("respeitamos a escolha do paciente"), eximem-se da responsabilidade de educar, esclarecer e, quando necessário, confrontar de maneira construtiva decisões baseadas em informações incorretas. Essa postura constitui uma forma sutil de negligência.

A proliferação de discursos sobre saúde na internet agravou esse paradoxo: nunca tivemos tanto acesso a conhecimento médico, mas também nunca foi tão difícil distinguir informação confiável de desinformação sofisticada. Algoritmos de redes sociais, desenhados para maximizar engajamento, frequentemente amplificam conteúdos sensacionalistas e emocionalmente carregados em detrimento de informações científicas mais sóbrias e factuais. Neste contexto, defender apenas a autonomia formal do paciente, sem preocupação com a qualidade do ambiente informacional no qual ele transita, é como oferecer liberdade para nadar em águas sabidamente impróprias para banho.

Existe um sistema que proclama respeitar a autonomia enquanto sistematicamente falha em criar as condições para que seu exercício genuíno. Mais preocupante ainda é quando essa mesma estrutura deficiente é invocada para justificar decisões prejudiciais. "O paciente foi informado e escolheu assim" é a frase que encerra a discussão, independentemente da qualidade da informação fornecida ou das condições em que a "escolha" foi feita.

A comunicação em saúde ética, eficaz e baseada em evidências torna-se, assim, uma competência técnica tão importante quanto o domínio de procedimentos clínicos. Não se trata de uma soft skill opcional, mas de uma ferramenta essencial.

 

Considerações finais

A armadilha da autonomia mal compreendida revela o conflito entre ideais democráticos de liberdade individual e a realidade de que escolhas genuinamente livres requerem condições específicas que não estão disponíveis para todos.

Superar essa armadilha exige mais do que boa vontade ou ajustes pontuais em práticas clínicas. Demanda a reorganização de como pensamos o cuidado em saúde, reconhecendo que a autonomia substancial é um objetivo a ser construído, não uma condição natural que acatamos passivamente.

Isso implica investimentos em educação em saúde, desenvolvimento de ferramentas de comunicação mais eficazes e acessíveis, treinamento de profissionais em competências comunicacionais e, fundamentalmente, o reconhecimento de que a saúde é um bem comum que transcende escolhas individuais, com implicações coletivas significativas.

A verdadeira autonomia em saúde não se conquista apenas decretando que se trata de um direito de todos os seres humanos, mas constrói-se como possibilidade real através de estruturas sociais e institucionais que lhe deem substância. Esse é, talvez, um dos desafios mais urgentes e complexos da área da saúde contemporânea.

André Bacchi é professor adjunto de Farmacologia da Universidade Federal de Rondonópolis. É divulgador científico e autor dos livros "Desafios Toxicológicos: desvendando os casos de óbitos de celebridades" e "50 Casos Clínicos em Farmacologia" (Sanar), "Porque sim não é resposta!" (EdUFABC), "Tarot Cético: Cartomancia Racional" (Clube de Autores) e “Afinal, o que é Ciência?...e o que não é. (Editora Contexto)

Sua Questão

Envie suas dúvidas, sugestões, críticas, elogios e também perguntas para o "Questionador Questionado" no formulário abaixo:

Ao informar meus dados, eu concordo com a Política de Privacidade.
Digite o texto conforme a imagem

Atendimento à imprensa

Harmonic AG 

11 99256-7749  |  andre@harmonicag.com.br