Cerveja diminui risco de cálculo renal?

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1 abr 2024
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anúncio antigo de cerveja

 

Se você sentiu certo espanto em relação à pergunta, imagine minha reação ao ouvi-la.

Meu pai tratou uma crise renal aguda no ano passado e, por conta disso, foi aconselhado a realizar exames trimestrais para verificar o reaparecimento de cálculos renais – as famosas pedras nos rins. Na mais recente consulta, meu pai ouviu a sugestão, aparentemente baseada em estudos, de tomar uma lata de cerveja ao dia para diminuir o risco de formação de cálculos.

Ao receber essa sugestão terapêutica pouco ortodoxa, ele achou curioso e decidiu compartilhá-la comigo. Apesar de ter ficado perplexo e experimentado um momento semelhante ao “piripaque” do Chaves, decidi entender a base teórica da prescrição médica.

Em geral,, quando o título de um artigo é uma pergunta, o artigo em si acaba se revelando um longo texto que, no fim, diz que a resposta é “não”. Este aqui não é exceção à regra.

 

Pedras renais                      

De acordo com o artigo “Kidney Stone Pathophysiology, Evaluation and Management: Core Curriculum 2023”, de autoria de Shastri, S. et al, a litíase renal, popularmente conhecida como formação de pedras nos rins, caracteriza-se pelo desenvolvimento de massas sólidas e cristalinas entre o espaço urinário e os rins. Essas massas sólidas são compostas por substâncias que originalmente encontravam-se dissolvidas na urina e que, por alguma razão, precipitam-se, saindo da solução e formado aglomerados. Existem diversas causas possíveis, fatores de risco e opções de tratamento.

Uma das razões para a precipitação é a supersaturação urinária. Este é um estado em que os solutos (materiais dissolvidos) na urina estão presentes em uma concentração excessiva. Além disso, fatores genéticos, metabólicos e ambientais podem predispor ao problema.

Os autores destacam que a supersaturação é modulada pelo equilíbrio entre inibidores e promotores de cristalização, além do volume e do pH urinário. Embora crie um ambiente propício para a formação de cálculos renais, a supersaturação, por si só, não é suficiente para o seu desenvolvimento. A formação de pedras renais inicia-se, geralmente, com um núcleo que fornece substrato para o crescimento de cristais em uma urina supersaturada.

 

Onde entra a cerveja?

Não sei se houve algum estudo anterior a este, mas a primeira pesquisa que encontrei sobre cerveja e cálculo renal foi “Primary Liquid Intake and Urinary Stone Disease” de Shuster, J., publicado em 1985. Esse estudo tentou estabelecer, a partir de dados de cerca de 2,3 mil pessoas, moradoras de regiões costeiras e montanhosas dos Estados Unidos, a relação entre o consumo de seis diferentes bebidas (cerveja, café, leite, água, chá e refrigerante) e o risco de pedras nos rins.

As principais conclusões indicam que o café e a cerveja parecem estar negativamente associados ao cálculo renal na região montanhosa, enquanto o refrigerante aparece positivamente associado à patologia. Essas conclusões não implicam necessariamente uma relação de causa e efeito.

Como possível explicação para o resultado favorável ao café e à cerveja, os autores salientam que são duas bebidas com efeito diurético.

Investigando um pouco mais a fundo a relação entre diferentes tipos de bebidas e a incidência de cálculos renais, Curhan, G. et al. realizaram uma pesquisa prospectiva intitulada “Prospective Study of Beverage Use and the Risk of Kidney Stone”. O estudo contou com 45.289 homens com idades entre 40 e 75 anos, sem histórico de pedras renais, e teve um acompanhamento de seis anos, durante os quais ocorreram 753 casos de pedras renais.

Para averiguar a dieta dos participantes, foram utilizados questionários com 110 itens alimentícios e 21 bebidas. Com base nas respostas, estimou-se o consumo. Além disso, foram coletadas informações sobre a ingestão de cálcio, tanto de forma isolada quanto dentro de um multivitamínico.

Para determinar a quantidade ingerida de uma bebida específica ingerida, pediu-se aos participantes que descrevessem a frequência de consumo usando nove categorias, variando de “menos de uma vez por mês” até “seis ou mais vezes por dia”, e também que informassem o tamanho da porção padrão consumida (por exemplo: um copo pequeno de suco, uma lata de cerveja, etc). O consumo médio diário de cada bebida foi calculado a partir da frequência relatada multiplicada pelo tamanho da porção.

Durante o período de acompanhamento de seis anos, foram registrados 753 casos de pedras renais sintomáticas. Após controlar variáveis de confusão, constatou-se que os homens que ingeriam mais líquido (2,5 litros ou mais ao dia) apresentavam um risco relativo 65% menor de desenvolver pedras renais em comparação àqueles que consumiam menos de 1,3 litro.

Além disso, ao controlar simultaneamente os seguintes fatores de risco: idade, profissão, região geográfica, consumo de suplementos de cálcio e potássio, proteína animal, uso de tiazida (um medicamento com efeito diurético) e ingestão de fluído total, os autores descobriram que a presença de determinadas bebidas específicas associava-se à ocorrência de pedras renais.

Ao utilizar um modelo adicional que incluía todas as bebidas, mas não a ingestão de líquidos totais, observou-se que o chá, a cerveja, o vinho e o café, tanto com quanto sem cafeína, apresentavam uma associação inversa em relação ao risco. Sucos de toranja e maçã apresentaram uma associação direta com o risco.

Contextualizando, para cada porção de 240 ml consumida diariamente, o risco de formação de pedras diminuiu na seguinte maneira: café com e sem cafeína, 10%; chá, 14%; cerveja, 21%; e vinho, 39%.

Como possível explicação para o efeito da cerveja e do vinho, os autores salientam que, por serem duas bebidas que contêm álcool em sua composição, podem inibir a secreção do hormônio antidiurético, aumentando o fluxo urinário e diminuindo a concentração urinária. De acordo com os resultados apresentados, as bebidas alcoólicas associam-se a uma queda no risco de cálculos renais. Mas tenho razões para desconfiar dessa interpretação.

Sendo justo com Curhan e colegas, entre as limitações apontadas eles mencionam que fatores de risco não dietéticos podem ter influenciado os resultados. Entretanto, acredito que haja um complicador ainda mais relevante: a utilização de questionários alimentares. Por mais importantes que sejam, esses questionários nem sempre refletem a realidade com precisão. Existe o risco de os participantes subestimarem o quanto consumiram de alguma bebida específica, seja por falta de memória – afinal, estamos lidando com 21 itens – ou para evitar julgamentos.

Se parássemos por aqui, e levando em consideração esses problemas metodológicos, chegaríamos ao seguinte consenso: são necessárias mais pesquisas clínicas, com metodologias mais rigorosas e com um maior número de voluntários.

 

Novas evidências?

Em 2014, Wang, X. et al. publicaram um artigo intitulado “Systematic Review and Meta-analysis of the Effect of Alcohol Intake on the Risk of Urolithiasis Including Dose-Response Relationship”. Os autores conduziram uma metanálise para avaliar quantitativamente a correlação entre o consumo de álcool e o risco de pedras nos rins, resumindo os resultados de estudos anteriores sobre o assunto. Inicialmente, foram encontrados 527 artigos. Entretanto, após aplicar os critérios de exclusão – que envolveram data de publicação, língua (chinês ou inglês) e questões metodológicas –-, esse número caiu para oito, e mesmo esses estudos não foram considerados, em média, de alta qualidade.

Verificou-se que o consumo de álcool estava associado a uma redução do risco de litíase renal. No entanto, os estudos avaliados eram todos muito diferentes entre si, o que levanta dúvidas sobre a validade de combinar os resultados.

Ao analisar os tipos específicos de bebida alcoólica, constatou-se que o consumo de cerveja reduzia o risco de pedra nos rins em 57%, em estudos que não eram muito diferentes uns dos outros. Entretanto, essa associação positiva não apareceu nem para o vinho, nem para as bebidas destiladas.

Em relação à dose-resposta, constatou-se que o consumo de 10g/dia de álcool (aproximadamente 300 ml de cerveja ou 125 ml de vinho) diminuía em 10% o risco de cálculo.

Como possível explicação para a associação positiva da cerveja, os autores apontam que esse efeito protetor pode ser resultado tanto do álcool, que estimula a formação de uma urina mais diluída e aumenta a produção urinária, quanto da água (cervejas, em geral, são quase 95% água). Uma maior ingestão de água aumenta o fluxo de urina e também a torna mais diluída.

Além disso, os autores aventam a possibilidade de que algumas substâncias presentes no lúpulo possam atenuar a liberação de cálcio ósseo e reduzir a excreção de cálcio na urina. Mas todas essas especulações empalidecem diante dos problemas de qualidade dos estudos reunidos para a análise. A questão, portanto, segue em aberto.

 

Meio milhão de voluntários

Em 2021, o pesquisador Wang, H. e colegas publicaram o artigo intitulado “Consumption of Tea, Alcohol, and Fruits and Risk of Kidney Stones: A Prospective Cohort Study in 0.5 Million Chinese Adults”.  O objetivo deste estudo foi investigar se o consumo individual ou combinado de chá, álcool e frutas afetava o risco de pedras renais em integrantes do China Kadoorie Biobank (CKB), um estudo prospectivo com 512.725 participantes, com idades entre 30 e 79 anos, recrutados de 10 áreas geograficamente definidas, sendo cinco urbanas e cinco rurais, entre os anos de 2004 e 2008.

Para formar a amostra, os autores excluíram os participantes que relataram um histórico de doença crônica renal (7.575), câncer (2.578) e que não apresentavam valores de IMC (2). Ficaram com 502.621 participantes.

Para verificar a frequência do consumo, pediu-se aos participantes que relatassem o nível de consumo de chá e de álcool nos 12 meses anteriores. Os questionários traziam as opções  de resposta ‘Nunca’, ‘Apenas ocasionalmente’, ‘Apenas em determinadas estações’, ‘Todo mês’, ‘Nada menos que semanalmente’, ou ‘Pelo menos uma vez por semana’.

Aqueles que responderam que consumiam as bebidas pelo menos uma vez na semana foram depois questionados sobre a frequência específica (1 a 2 dias, 3 a 5 dias ou quase todos os dias). Outras questões envolviam o tipo exato de chá e/ou álcool consumido e o volume diário.

Em relação ao consumo de frutas frescas, usou-se um questionário de frequência alimentar qualitativo. Pediu-se aos participantes que declarassem o quanto haviam consumido nos últimos 12 meses, sendo que dentre as respostas disponíveis, poderiam assinalar as opções: ‘Nunca’, ‘Todo mês, mas não semanalmente’, ‘1 a 3 vezes por semana’, ‘4-6 por semana’ e ‘todos os dias’.

Os participantes que relataram consumo diário de chá e álcool eram predominantemente do sexo masculino, enquanto aqueles que relataram consumo diário de frutas eram, em sua maioria, mulheres.

Durante um acompanhamento médio de 11 anos, foram documentados 12.407 casos de pedras renais. Ao comparar os participantes que não consumiram chá nos últimos 12 meses com aqueles que consumiram três ou mais xícaras por dia, verificou-se uma redução linear no número de casos de pedras nos rins. Além disso, para aqueles que beberam sete xícaras ou mais por dia, a redução chegou a 73%.

Também se constatou que os participantes que consumiram de 30 gramas a 59,9 gramas de álcool por dia apresentaram uma redução de 79% no risco de pedras renais, comparados com aqueles que não haviam consumido álcool nos últimos 12 meses.

O consumo de frutas também mostrou associação com um menor risco de pedras renais, com uma redução de 81% no risco para aqueles que consumiram frutas diariamente, em comparação ao grupo que consumia menos que semanalmente.

Os autores concluem que o consumo diário de três ou mais xícaras de chá (aproximadamente 900 ml), consumo de 30 gramas ou mais de álcool, e o consumo de pelo menos quatro frutas por semana estão associados à redução no risco de pedras renais. Aumentar o consumo de chá e frutas poderia diminuir esse risco de forma independente, mesmo para aqueles participantes que não consumiram álcool.

Além disso, salientam que, devido aos conhecidos efeitos deletérios do consumo de álcool para a saúde, não se aconselha a ingestão com o intuito de reduzir o risco de pedras renais.

Como limitações, destaca-se a falta de informações sobre a ingestão total de líquidos, os tipos e tamanhos específicos de frutas e outros fatores dietéticos, como ingestão de água e outras bebidas. Além disso, as informações sobre o consumo de chá, álcool e frutas foram autorrelatadas, o que abre espaço para vieses e distorções.

Resumindo: existem estudos que mostram alguma associação entre consumo de álcool, mais especificamente sob a forma de cerveja, e redução do risco de pedras nos rins. Mas, primeiro, são estudos de qualidade questionável, o que põe a associação detectada sob suspeita; segundo, mesmo se a associação for real e causal (ou seja, existir de fato e não for apenas uma coincidência), não se sabe qual componente da cerveja (água, lúpulo, álcool etc.) traria a proteção. O mais provável é que seja a água!

Com tudo isso em mente, o que resta é que os riscos do álcool superam – e muito – qualquer suposto benefício que provavelmente poderia ser atingido pelo aumento da ingestão de água. Caso você queira curtir uma gelada no final da tarde, beba com moderação e porque está a fim, não em razão de algum suposto “benefício para a saúde” imaginário.

Mauro Proença é nutricionista

 

 

REFERÊNCIAS

SHASTRI, S. et al. Kidney Stone Pathophysiology, Evaluation and Management: Core Curriculum 2023. Am J Kidney Dis. 2023 Nov;82(5): 617-634. Disponível em:  https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/37565942/.

SHUSTER, J. et al. Primary liquid intake and urinary stone disease. J Chronic Dis. 1985;38(11):907-14.Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/4055979/#:~:text=It%20was%20also%20found%20that,a%20person's%20primary%20liquid%20intake.

CURHAN, G. et al. Prospective study of beverage use and the risk of kidney stones. Am J Epidemiol. 1996 Feb 1;143(3):240-7. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/8561157/.

WANG, X. et al. Systematic review and meta-analysis of the effect of alcohol intake on the risk of urolithiasis including dose-responde relationship. Urol Int. 2015;94(2):194-204. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/25033956/.

WANG, H. et al. Consumption of Tea, Alcohol, and Fruits and Risk of Kidney Stones: A Prospective Cohort Study in 0.5 Million Chinese Adults. Nutrients. 2021 Mar 29;13(4):1119. Disponível em:  https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/33805392/.

                                                                                                   

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