Especulação “científica” sobre tecnologia ET carece de evidência

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18 set 2023
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monstro marinho

 

O apreço a títulos e prêmios poderia ficar restrito a militares e religiosos que têm fixação em hierarquias, independentemente dos méritos pessoais do ocupante do posto. Essa reverência ao cargo per se, sem uma análise crítica de quem o ocupa, não deveria existir onde se espera que a razão fale mais alto. O desejável, porém, não é o que acontece na realidade, e a confusão entre título e mérito ocorre com bastante frequência nos mais diversos setores da sociedade – assume-se que uma alta posição alcançada ou honrarias conquistadas são credenciais que imunizam, ou redimem, as pessoas das besteiras que fazem.

Exemplos não faltam. Meu predileto é Linus Pauling, químico, ganhador do Prêmio Nobel de Química e da Paz, que defendia que doses cavalares de vitamina C poderiam prevenir o câncer – esta alegação, que nunca teve respaldo científico, é uma das responsáveis pela proliferação da crença de que essa vitamina ajuda a evitar resfriado. Charles Richet, ganhador do Nobel de Medicina em 1913 e defensor da parapsicologia, é o criador da palavra “ectoplasma” – a substância que aparece no fantasma Geleia do filme Os Caça-Fantasmas.

Abraham Loeb (ou apenas Avi Loeb) é um físico americano com extenso currículo acadêmico, tendo sido inclusive chefe do departamento de Física e Astronomia da prestigiosa Universidade de Harvard. Recentemente, Loeb ganhou holofotes por ter sugerido que o Oumuamua, uma rocha interestelar que passou pelo Sistema Solar em 2017, poderia ter vindo de uma civilização tecnológica extraterrestre. A alegação sensacionalista repercutiu na mídia graças ao costumeiro jornalismo declaratório que abusa da criação de falsas polêmicas – a hipótese alienígena não encontra respaldo na comunidade acadêmica.

No final de agosto, Loeb publicou um preprint (versão preliminar de um artigo científico, antes de ser submetido à revisão pelos pares) onde mais uma vez considera a possibilidade de engenharia extraterrestre, mas desta vez a afirmação parte da análise de esferas encontradas no fundo do Oceano Pacífico. Uma versão do artigo, traduzida em uma linguagem mais amigável, pode ser encontrada aqui.

O texto voltado ao público geral adota um tom sensacionalista (“notícias maravilhosas!”, “o sucesso da expedição não foi uma coincidência...”), é recheado de belas fotos e, em alguns momentos, adota uma narrativa paranoica, ironizando os “especialistas que estavam cansados de ouvir as afirmações de Avi Loeb”. Ignorando, porém, esses detalhes e a sugestão de que os resultados indicam uma origem tecnológica extraterrestre, o artigo poderia ser apenas mais uma pesquisa analisando os componentes de algo encontrado no mar.

O artigo de Loeb e colaboradores estuda basicamente a composição química de esferas coletadas em uma expedição ao Pacífico realizada de 14 a 23 de junho de 2023. De acordo com os pesquisadores, os fragmentos são provenientes do impacto do meteoro interestelar IM1 em Papua-Nova Guiné: as minúsculas esferas teriam sido produzidas quando gotículas de material da superfície do meteorito, derretidas pelo contato com a atmosfera, colidiram com as águas frias do oceano. A medição, através do uso de uma técnica denominada espectrometria de massa, identificou elementos “comuns” (sódio, magnésio, alumínio, silício etc.), ou seja, não houve nenhum sinal estranho de algum componente misterioso.

A descoberta que causou surpresa ao grupo de pesquisadores foi a abundância anômala dos elementos berílio, lantânio e urânio em relação à composição padrão dos meteoritos mais comuns. A anomalia foi batizada com o acrônimo BeLaU (por causa da sigla dos três elementos na tabela periódica; piadas de quinta série são dispensáveis). Os elementos apareceram, respectivamente, com massas 300, 500 e 600 vezes (valores aproximados) maiores do que o esperado em um meteorito usual originado no Sistema Solar. A avaliação de alguns detalhes técnicos como: por que somente BeLaU chamou a atenção dos autores e outros elementos, com abundâncias comparáveis, foram descartados; ou se os métodos usados são apropriados, deve ser feita por especialistas em astronomia e no âmbito acadêmico – como em todas as situações, a análise crítica dos pares deve sempre preceder qualquer comunicação mais ampla, mas não é bem isso que acontece com a mídia em geral.

Pressupondo que os resultados estão corretos, a detecção de anomalias é interessante e gera uma questão a ser respondida. O próprio artigo traz uma série de hipóteses para explicar a abundância do BeLaU como, por exemplo, que ela poderia ser “potencialmente” explicada se o IM1 viesse de um exoplaneta com núcleo de ferro e uma crosta altamente diferenciada, ou que o meteoro tivesse sido ejetado de uma supernova após sofrer um processo de enriquecimento e fragmentação. Mesmo que essas hipóteses sejam futuramente refutadas por especialistas, elas ainda se mantêm dentro daquilo que consideramos razoável do ponto de vista científico.

Anomalias ou comportamentos especiais de algumas substâncias não são tão incomuns. Podem ser encontrados na água, por exemplo – sua expansão quando congela é uma propriedade incomum. Apesar de nos dias de hoje conhecermos o motivo para tal expansão, em algum momento da história isso não era sabido – e se, ao invés de se buscar uma solução razoável, os pesquisadores tivessem apelado para uma hipótese ad hoc, inserida sem nenhuma justificativa clara, do tipo “a água se expande para homenagear o Príncipe Namor”, talvez nunca chegássemos à resposta correta. E é esse tipo de afirmação, forçada e injustificada, que Loeb levanta como sua terceira hipótese.

Além das duas hipóteses mencionadas anteriormente, Loeb coloca uma terceira possibilidade, chamada por ele mesmo de “exótica”. Propõe que a abundância tem origem em uma tecnologia extraterrestre – obviamente, nenhuma evidência razoável acompanha a proposta estapafúrdia, apesar de o artigo dizer que esta interpretação será considerada criticamente ao longo de futuros trabalhos.

Ainda que um cientista de Harvard possa dizer que não necessita de exposição na mídia e o artigo declarar que não existe conflito de interesse, é possível conjecturar que talvez haja uma vontade exagerada de procurar alguma evidência escondida, que só se revela a um grupo especial. Afinal, Avi Loeb faz parte da Breakthrough Initiatives, uma organização fundada pelo empresário russo Yuri Milner para, entre outras coisas, buscar evidências de vida extraterrestre. E, a despeito da ausência declarada de conflito de interesse, não custa lembrar que a publicação do preprint (e do artigo em tom mais popular) coincidiu com o lançamento de (mais um) livro de Loeb sobre vida alienígena e viagens interestelares, intitulado “Interestellar: The Search for Extraterrestrial Life and Our Future in the Stars”.

J.C. Fumoux, um ufólogo, mapeou 76 pontos onde havia algum relato de aterrissagem de OVNI, ocorrido em setembro e outubro de 1954. A ideia de Fumoux era que os extraterrestres são inteligentes e os pousos deveriam obedecer a uma certa lógica. Fumoux assumiu que a combinação dos locais de pouso deveria formar triângulos isósceles. O ufólogo calculou, portanto, todas as combinações de triângulos isósceles e percebeu que eles davam um número maior do que seria esperado por acaso – prova, para ele, irrefutável da existência de ETs.

O exemplo do parágrafo anterior é somente para mostrar como é possível “forçar a barra” o quanto se queira quando se quer enxergar algo onde nada existe. A pesquisa de vida fora da Terra é um assunto legítimo e a área de astrobiologia é um campo sério de estudo. Afirmações levianas, porém, com explicações espúrias de inteligência extraterrestre, devem ser vistas neste momento apenas como devaneios (intencionais ou não). Em tempo, seria importante inserir uma errata na carta da Breakthrough Initiatives: onde está escrito que os pesquisadores devem “dedicar tempo, recursos e paixão” à busca de vida fora da Terra, é imprescindível incluir a palavra “razão”.

Marcelo Yamashita é professor do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência

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