O “mistério” do colágeno tipo 2

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6 jan 2022
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osso

 

Estava relendo o excelentíssimo artigo da Alicia Kowaltowski sobre suplementos de colágeno no instagram do IQC, quando me deparei com os seguintes comentários “Fui indicada a tomar o colágeno tipo 2 para as articulações, pois tenho DTM (disfunção temporomandibular e dor orofacial). Então isso não adiantaria??”; “E o colágeno tipo 2? Um ortopedista já me receitou para uma lesão na articulação do joelho...”.

Como já faz três anos desde a publicação do artigo citado original, acho válido revermos a literatura científica. Afinal, há muitos profissionais que ainda o prescrevem. Será que há alguma novidade nesse campo?

Dando um breve resumo:

Colágeno é uma proteína presente na pele, nos ossos e nas cartilagens, e de baixo valor biológico. “Baixo valor” é uma nomenclatura utilizada quando a proteína não apresenta todos os aminoácidos essenciais. Aminoácidos são as unidades químicas que formam as proteínas, e são considerados “essenciais” aqueles de que o corpo humano precisa, mas é incapaz de fabricar por conta própria. Para manter o organismo saudável, precisam ser obtidos de alguma fonte externa – nos alimentos ou sob a forma de suplementação.

Após ser ingerido – como parte da dieta ou concentrado em suplementos –, o colágeno sofre um processo de hidrólise (“quebra” ocasionada pela presença de água), liberando aminoácidos individuais, dipeptídeos (moléculas formadas por dois aminoácidos) e tripeptídeos (moléculas de três aminoácidos) que serão absorvidos pelo corpo.

Após a absorção, essas moléculas estarão disponíveis para uso pelo organismo em diversas funções. É importante notar que, uma vez que a molécula original de colágeno é desmontada no interior do corpo humano, suas “peças” não ficam marcadas como sendo “de colágeno”: são reaproveitadas em um sem-número de processos fisiológicos e bioquímicos que podem não ter nada a ver com a produção de mais colágeno.

Proteínas não são como carros que, depois de passar por um desmanche, terão as peças originais reaproveitadas no conserto de outros veículos da mesma marca: aminoácidos, vale repetir, não têm “marca”.

Tendo isso em mente, qual seria a hipótese para a suplementação de colágeno tipo 2?

Resumindo o informe técnico de um fabricante: “O colágeno tipo II (sic) é a principal proteína estrutural na cartilagem, responsável pela sua resistência, tração e firmeza. Ele age juntamente com o sistema imunológico para o tratamento das articulações, desacelerando a destruição articular, diminuindo a inflamação, prevenindo o ataque auto-imune (sic) às nossas cartilagens e, consequentemente, atenuando o quadro de dor, melhorando a mobilidade e a flexibilidade das articulações”.

Ao contrário do que acontece com alguns outros suplementos, o colágeno tipo 2 tem permissão legal para sugerir certos benefícios. A instrução normativa número 76, de 5 de novembro de 2020 da Anvisa, estabelece que suplementos alimentares com 10 mg de colágeno tipo 2 não desnaturado, e que atendam a alguns critérios técnicos, podem alegar que trazem auxílio à manutenção da função articular.

Contudo, vale destacar que a Sociedade Brasileira de Reumatologia (SBR) publicou uma nota, em 2016, destacando que não havia, até então, comprovação científica dos benefícios do colágeno para as articulações. 

Como podemos observar, não há um consenso estabelecido sobre a eficácia do suplemento e, por conta disso, será necessário verificar a literatura científica.

Num trabalho publicado como Crowley, D. et al (2009), os autores pesquisaram a segurança e a eficácia do colágeno tipo 2 não desnaturado para o tratamento da osteoartrite no joelho. Trata-se de um estudo duplo-cego randomizado com grupo controle, contou com 52 voluntários e durou por 90 dias.

Os voluntários foram divididos em dois grupos. O primeiro foi orientado a consumir quatro cápsulas ao dia, sendo duas de açúcar pela manhã (uma forma de preservar o efeito placebo, visto que o outro grupo deveria consumir mais cápsulas) e duas de UC-II (colágeno tipo 2), totalizando 20 mg ao dia. O segundo grupo, por sua vez, foi orientado a consumir quatro cápsulas ao dia das moléculas glucosamina e condroitina (375 mg e 300 mg, respectivamente), totalizando 1500 mg de glucosamina e 1200 mg de condroitina.

Para avaliação dos voluntários, foram utilizadas diversas ferramentas, caso dos questionários WOMAC (avalia a qualidade de vida em pacientes portadores de osteoartrose em três frentes: dor, rigidez articular e atividade física), VAS (afere a intensidade de dor sentida pelo paciente em uma escala de 0 a 10) e questionário algofuncional de Lequesne (índice composto de 11 questões sobre dor, desconforto e função, sendo seis questões sobre dor e desconforto, uma sobre distância a caminhar e quatro distintas para quadril).

Após 90 dias de pesquisa, os autores verificaram melhora nas pontuações atribuídas nos questionários WOMAC, VAS e Lequesne, com o grupo que recebeu o tratamento com UC-II apresentando melhores escores quando comparado ao grupo G+C. Aos detalhes:

 

WOMAC

O grupo tratado com UC-II apresentou melhores valores com relação à “dor ao caminhar em uma superfície plana”, “dificuldade de caminhar em uma superfície plana” e “realizar tarefas domésticas pesadas” quando comparados ao grupo G+C. Além disso, os pesquisadores ressaltam que o grupo suplementado com UC-II apresentou melhores pontuações em todas as visitas quando comparados ao grupo G+C, principalmente nos marcadores “subindo escadas aos 30 e 60 dias” e “à noite na cama”.

 

VAS

Os pesquisadores não encontraram valores significativos para os componentes do VAS. Contudo, salientam que o grupo tratado com UC-II apresentou melhores resultados com relação aos marcadores “dor ao subir e descer degraus”, “dor noturna” e “dor ao descansar”, quando comparados ao grupo C+G.

Igualmente importante, os pesquisadores observaram que ambos os tratamentos reduziram a pontuação do questionário VAS. Contudo, o UC-II demonstrou ser mais efetivo após 90 dias, visto que diminuiu o escore em 40%, enquanto o G+C reduziu, somente, 15%.

 

Lequesne

Neste, não foram observados valores significativos para os componentes do questionário. Além disso, não houve nenhuma diferença entre os grupos com relação ao escore final. Contudo, o grupo suplementado com colágeno tipo 2 apresentou valores mais positivos com relação aos marcadores “dor após levantar” e “distância máxima percorrida” quando comparados ao G+C.

Os autores veem uma grande “chance” do UC-II ser eficaz, visto que o grupo tratado com ele apresentou uma diminuição de 20,1% no escore final, enquanto o outro apresentou uma diminuição de 5,9%.

Por fim, os pesquisadores concluem que a suplementação de colágeno tipo 2 melhorou a realização das atividades diárias e a qualidade de vida.

Então é isso? Colágeno tipo 2 funciona contra artrite?

Antes de correr para a farmácia, vamos prestar atenção em alguns detalhes importantes.

Além de a amostra do estudo ser pequena (52 voluntários), os critérios de inclusão permitiam aos participantes que realizassem outras formas de terapia, como fisioterapia, tratamento contraste (utilização de compressas quentes e frias) e exercícios físicos. O problema: do modo como o estudo foi feito, não dá para separar eventuais benefícios trazidos por esses tratamentos dos que teriam sido produzidos pelas cápsulas.

Além disso, a escolha das substâncias usadas para fazer a comparação no estudo (glocosamina e condroitina) é problemática, já que não são nem exatamente placebos (o que faria do estudo um exemplo do desenho clássico “tratamento proposto versus placebo”), nem cumprem o papel biológico de proteínas (nesse caso, a comparação poderia ajudar a ver se os benefícios atribuídos ao colágeno, caso existam, não seriam proporcionados também por uma outra proteína qualquer).

Por fim, não houve investigações do consumo alimentar dos voluntários, não sendo possível saber se as dietas consumidas estavam adequadas com relação a macro e micronutrientes. Citando novamente a SBR (2017): “Vale destacar que com exceção de dietas para o emagrecimento de pacientes obesos, não há, até o momento, nenhum alimento ou dieta que melhore a osteoatrose” (mas como o mundo é injusto, uma má alimentação pode piorar a qualidade de vida de qualquer indivíduo).

Como adoro fazer o papel de advogado do diabo, devo lembrar que o estudo de Crowley, D. é do ano de 2009, ou seja, passaram 12 anos desde a sua publicação. Há estudos muito mais recentes, que abordaremos a seguir.

Mohammed, A. e He, S. (2021) conduziram um estudo duplo-cego, randomizado com grupo controle, para investigar a eficiência de um colágeno tipo 2 hidrolizado no alívio do desconforto das juntas. A amostra foi composta por 90 participantes e durou oito semanas. Para avaliar os voluntários, foram utilizados o questionário WOMAC e VAS.

Os resultados apontam que os pacientes que receberam o colágeno tipo 2 tiveram uma redução de 48,6% no escore final do WOMAC, enquanto o outro grupo só apresentou uma diminuição de 31%. Com relação ao VAS, foi observado que o grupo suplementado com o colágeno tipo 2 apresentou uma redução de 56,2% com relação às dores, enquanto o grupo controle apresentou uma redução de 42,7%.

Ao término da pesquisa, os autores concluíram que o colágeno tipo 2 foi eficaz em reduzir as dores nas juntas e a rigidez, culminando no aumento da mobilidade.

Eis que entram os pormenores:

 

1. A pesquisa foi financiada pela AvicennaNutraceutical (empresa responsável pelo colágeno utilizado). Isso não significa que a pesquisa seja ruim, mas nos alerta para a possibilidade de um viés de confirmação.

 2. Não foi investigado/divulgado se os participantes apresentaram perda de peso, visto que, como mencionado anteriormente, uma redução pode levar à melhora dos quadros de dor (além do mais, o grupo suplementado com colágeno tinha uma maior porcentagem de indivíduos com sobrepeso e obesos).

 

Por último, mas não menos importante, trago um ponto que pode parecer má vontade minha, mas prometo que não é o caso.

A literatura científica disponível apresenta inúmeros estudos que, de acordo com seus autores, “provam” as benesses do colágeno para as articulações. Contudo, não há especificidade. Muitos autores defendem que o colágeno tipo 2 não desnaturado seria a melhor maneira de combater as dores articulares. Outros defendem que o colágeno hidrolisado seria a melhor opção. Ainda há os que defendem o tipo 2, porém hidrolisado, demonstrando não haver um consenso sobre qual substância é a mais indicada.

Não há, até o momento, um parecer fidedigno que sustente os benefícios propostos pela ingestão de colágeno. No máximo, há hipóteses que apontam que haveria alguma lógica na suplementação e estudos conflitantes de boa e má qualidade. Isso, somado ao fato de que os aminoácidos não têm “marca” – que toda proteína ingerida é desmontada em peças que servem para inúmeras funções –, deve produzir algum ceticismo quanto às alegações de que a suplementação com uma proteína específica trará benefícios específicos. Nada disso significa que a substância não funcione. Só nos indica que há um longo caminho a percorrer antes de indicá-la como terapêutica.

Sugestão do autor:

Se tiver que escolher entre gastar dinheiro com o suplemento ou com outras frentes de atuação (exercício físico, alimentos “saudáveis” e profissionais de saúde que se baseiam na ciência), opte pela segunda opção.

 

Mauro Proença é nutricionista

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