Desde o início da pandemia de COVID-19, junto ao vírus disseminou-se a noção de que a doença era uma ameaça principalmente para as pessoas mais velhas, com crianças e jovens em geral “a salvo” de complicações, exceção para casos como imunossuprimidos e portadores de comorbidades graves. Diante disso, o desenvolvimento de vacinas contra o SARS-CoV-2 e sua posterior aplicação priorizaram as faixas etárias mais elevadas da população, que e fato correm maior risco de vida, se infectadas.
O risco menor a que jovens, e especialmente crianças, estão expostos não equivale a risco zero, no entanto. Em junho, levantamento publicado pelo jornal O Estado de São Paulo com base em dados do Sistema de Informação da Vigilância Epidemiológica da Gripe (SIVEP-Gripe), do Ministério da Saúde, revelou que quase 950 crianças, de zero a nove anos, tinham morrido de COVID-19 no Brasil até meados de maio deste ano. O número então equivalia a cerca de 32 mortes para cada 1 milhão de brasileiros nesta faixa etária, segunda maior taxa no mundo entre países com mais de mil mortes por milhão de habitantes na pandemia, e população de pelo menos 20 milhões de pessoas. Nos EUA, por exemplo, ela estava em 3,7 mortes para cada milhão de crianças, e nos Reino Unido e na França não passava de 0,5.
Cenário que piorou nos últimos meses. Monitoramento da Vital Strategies, organização internacional dedicada a análises e soluções em saúde pública, também com base do SIVEP-Gripe, indica que, de acordo com os dados disponíveis em 9 de agosto último, 3.207 crianças e bebês de 0 a 9 anos morreram de COVID-19 no Brasil desde o início da pandemia, sendo 2.729 com menos de 5 anos. Números bem acima dos registros oficiais, que apontam 1.281 mortes entre menores de 10 anos e 1.075 de crianças com até 5 anos, afirma a organização.
Segundo a médica epidemiologista Fatima Marinho, professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e consultora sênior da Vital Strategies no Brasil, a diferença se dá por diversas razões, sendo a principal a não realização de testes de diagnóstico em muitas das crianças vítimas da doença.
“Temos uma cultura entre os pediatras de não pedir estes testes, guiados pela noção de que crianças não evoluem para casos graves”, conta. “Mas, infelizmente, alguns casos se tornam graves, e a não realização dos testes não dão a oportunidade para pais e cuidadores ficarem atentos à evolução da doença. Eles procuram os serviços de saúde e, muitas vezes, voltam para casa sem diagnóstico, ou com diagnósticos errados”.
Ainda de acordo com a epidemiologista, embora uma boa parte das complicações da COVID-19 em crianças possa ser creditada à existência de comorbidades graves, como defeitos congênitos, especialmente problemas no coração, e diabetes, às vezes ainda nem diagnosticada, as estimativas apontam que cerca de 50% das mortes de menores de 18 anos foram de indivíduos sem comorbidades.
“É um número que assusta a gente, ainda mais diante da perspectiva de que a vacina ainda vai levar algum tempo para chegar às crianças menores”, alerta.
Atípica
Outro problema da COVID-19 em crianças e adolescentes é que em muitos casos a doença se manifesta de forma atípica, o que também dificulta o diagnóstico, destaca Fatima.
“São quadros muito diferentes do clássico observado em adultos, que geralmente têm febre, tosse e problemas respiratórios”, diz.
Pior, as complicações também podem aparecer tardiamente, algumas semanas após a resolução da infecção inicial pelo SARS-CoV-2, na forma do que está sendo chamada de Síndrome Inflamatória Multissistêmica Pediátrica (PIMS ou MIS-C, nas siglas em inglês). Observada e descrita desde o início da pandemia, esta rara condição se assemelha à síndrome do choque tóxico e à conhecida como Doença de Kawasaki, e inclui febre associada a problemas gastrointestinais (dor na barriga, vômitos e diarreia, por exemplo), cansaço, dor de cabeça, no pescoço e no peito, irritações na pele e outros sintomas que também variam muito entre as crianças acometidas. Quadro que pode evoluir rapidamente, necessitando tratamento especializado e complexo de urgência, muitas vezes indisponível, lamenta a pediatra Maria Célia Cervi, professora do Departamento de Puericultura e Pediatria da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP.
“Esta síndrome é o que mais tememos, e nos leva a ter uma mortalidade de crianças pela COVID-19 muito maior que a dos países desenvolvidos”, conta Maria Célia. “Ela vem de uma resposta mais agressiva da imunidade inata das crianças, umas três, quatro semanas após a infecção inicial pelo coronavírus, necessitando internação e tratamento complexo, com medicamentos caros, a que os pronto-atendimentos comuns não têm acesso. Assim, se a criança estiver em um local sem uma assistência de saúde melhor, como é a realidade em muitos lugares no Brasil, devido à desigualdade e disparidades do país, ela será mais uma vítima da COVID-19”.
Exemplo trágico desta equivocada noção de “grupos de risco” na COVID-19, cita Fatima, é o de jovem de 11 anos encarregada pela família de cuidar de uma tia atingida pela doença. Infectada, acabou desenvolvendo a síndrome inflamatória, que atingiu seu coração e levou à morte apenas um dia depois de internada no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP), em caso relatado em artigo publicado no periódico Lancet Child & Adolescent Health, em outubro do ano passado.
Isto sem falar no risco aumentado destas crianças em desenvolver a chamada “Covid longa”, em infecções que podem persistir por meses e deixar sequelas físicas e neurológicas permanentes, tal qual o déficit cognitivo que está sendo observado em pacientes maiores.
“Para todas as doenças, os extremos da vida são os de maior suscetibilidade” lembra Maria Célia. “Assim, na COVID-19 temos visto maior gravidade neonatal e na faixa etária dos lactantes, isto é, menores de 2 anos, que já eram de maior risco para doenças respiratórias graves, por seus sistemas ainda estarem se desenvolvendo tanto anatomicamente quanto fisiologicamente. A COVID-19 apareceu como um agente novo atuando nesses organismos ainda em desenvolvimento, e por isso também com um risco maior de agravamento”.
Delta
Cenário que deverá piorar com a disseminação da variante delta do coronavírus pelo país. Mais transmissível – estudos apontam que a taxa básica de transmissão da delta (R0) pode chegar a 8, ou mais do triplo da do vírus original -, a variante já provocou uma explosão de casos em países da Europa e nos EUA, atingindo principalmente as parcelas da população não vacinadas, entre elas, em especial, crianças e jovens, e deixando as autoridades sanitárias em alerta.
Na semana passada, por exemplo, o médico-chefe do Hospital Infantil de Nova Orleans, no estado americano da Louisiana, relatou que enquanto ao logo da pandemia a COVID-19 respondia por apenas 1% dos casos de pacientes internados na instituição, hoje elas alcançam cerca de 20%, metade delas com menos de dois anos e grande parte do restante, entre 5 e 10 anos.
“Não é a COVID do seu avô”, disse em entrevista ao programa de TV “Good Morning America” em 9 de agosto último. “Esta variante dela é um desafio totalmente novo e inesperado”.
Enquanto isso, o Departamento de Saúde e Serviços Sociais dos EUA informou que o número de crianças internadas com COVID-19 atingiu recorde de 1.902 no país no último sábado, e respondendo por 2,4% das hospitalizações pela doença no país.
“Esta não é a COVID do ano passado. Esta é pior, e nossas crianças serão as mais afetadas por ela”, comentou Sally Goza, ex-presidente da Academia Americana de Pediatria, à rede de TV CNN.
Assim, no caso do Brasil, atrasado na vacinação, nossa “bola de cristal” para o futuro da pandemia aqui entre as crianças talvez possa ser a Louisiana ou outros estados do Sul dos EUA como a Flórida, onde a hesitação vacinal e a desinformação antivacina mantêm os índices de cobertura mais baixos, equiparáveis ao cenário atual de nosso país.
“As internações já têm aumentado, e com uma menor cobertura vacinal, corremos o risco de sofrer com uma nova grande onda de COVID-19”, alerta Fatima. “A P1 (variante surgida no Brasil no ano passado, também denominada gama) já está com variações que a aproximam da delta, e tem mais a lambda, que vem aqui do lado, do Peru, e pode entrar fácil no país. Então, estamos numa situação bastante difícil. Precisamos aumentar a cobertura vacinal e rápido, porque, se a gente não fizer isso, teremos uma onda alta de casos”.
Para as crianças, o maior perigo de uma nova grande onda reside justamente no fato de que elas continuarão sem acesso às vacinas da COVID-19, pelo menos no curto prazo. Até o momento, o único imunizante aprovado para uso em menores de 18 anos é o da Pfizer/BionTech, e mesmo sim restrito a adolescentes com 12 anos ou mais. Abaixo desta faixa etária, a única proteção com que as crianças podem contar é algum grau de imunidade coletiva, ainda que imperfeita. E, no Brasil, dificultada pela grande desigualdade socioeconômica do país.
“A P1 (variante gama) já vinha afetando fortemente nossas crianças, tanto que temos uma mortalidade infantil por COVID-19 muito alta, mesmo comparando com outros países da América Latina”, diz Fatima. “Temos um grande problema que é a exposição familiar. A maioria das crianças que morreu de COVID-19 no Brasil era formada pelas mais pobres, negras e pardas. São famílias que vivem mais aglomeradas, e diante da crise econômica da pandemia, muitas vezes não puderam manter suas casas e se juntaram ainda mais. Enquanto isso, os adultos ainda têm que sair de casa para trabalhar, expondo-se bastante, o que faz com que as crianças menores nessas casas também tenham uma exposição muito alta. Já víamos isso antes com outras doenças respiratórias. A pneumonia é historicamente uma causa importante de mortes de crianças no Brasil, assim como o vírus sincicial, e a COVID-19 veio para agravar esta desigualdade”.
E mesmo que não se mostre mais letal que as demais variantes do coronavírus já surgidas, só por ser mais transmissível a delta pode ter um grande impacto nesta população mais jovem e ainda desprotegida e, por consequência, nos próprios rumos da pandemia.
“A epidemia está se deslocando para faixas etárias mais novas, que mesmo com um risco menor de complicações, pode pressionar o sistema de saúde, porque atinge muita gente”, explica Fatima. “A faixa etária de 12 a 17 anos é muito maior que a população de mais de 80 anos. E com um grande número de pessoas atingidas, também podemos ter um grande número de casos graves. A Delta vai aumentar muito a circulação viral, e com isso vai pegar muito mais os grupos não vacinados, como as crianças menores, e os idosos. E por isso também a necessidade de pensarmos de dose de reforço da vacina para eles”.
Vacina demorada
Neste ponto, o grande desafio é disponibilizar vacinas da COVID-19 para crianças o mais rápido possível, o que ainda assim, na melhor das hipóteses, só deverá acontecer no início do ano que vem. O problema é que não se pode, nem se deve, apressar muito este processo, alertam as especialistas. Crianças não são adultos em miniatura, exigindo a realização de todas as fases dos testes para verificar a tolerância, segurança e eficácia das vacinas em separado, em pesquisas que enfrentam grandes dificuldades de recrutamento, agravadas pela disseminação da desinformação antivacina entre a população adulta.
“Inoculação de um agente biológico não é como tomar um remédio, temos que estar muito seguros para fazer isso”, conta Fatima. “As crianças têm um sistema imune ainda em formação, então precisamos ver quais reações vão ter. Essas pesquisas têm que seguir o ritmo delas, testar, publicar os resultados revisados por pares para que só então possamos usar as vacinas nas crianças. O máximo de pressa que podemos ter é a liberação para uso emergencial pela Anvisa, como já aconteceu com as vacinas para adultos”.
Maria Célia, por sua vez, cita como exemplo da diferença no tratamento de adultos e crianças neste sentido a vacina contra a gripe (influenza), da qual as crianças recebem apenas a metade da dose.
“Será que para as vacinas da COVID-19 vai ser parecido? Para isso, é preciso testar, e só começamos a fazer isso agora. Sempre vemos um grande atraso entre iniciar um tratamento em adultos e depois em crianças, e por isso precisamos ampliar estes estudos”, diz Maria Célia, dando como outro exemplo desta necessidade a notificação de miocardite, uma inflamação no coração, como raro efeito adverso da vacina da Pfizer em adolescentes. “É um efeito adverso que também pode aparecer com mais frequência em crianças menores, e para evitar isso podemos precisar dar doses diferentes ou mais espaçadas”.
É o que preocupa também a Administração para Drogas e Alimentos dos EUA (FDA). Em resposta a pedido da agência sanitária americana, o consórcio Pfizer/BionTech e a empresa Moderna expandiram os grupos de testes de fase 3 das suas vacinas de mRNA atualmente em curso em crianças de 5 a 11 anos para tentar identificar este e outros eventos raros.
Diante da natural demora nestas pesquisas, tanto Fatima quanto Maria Célia defendem a realização imediata de testes similares em crianças no Brasil com as vacinas mais utilizadas no país, a chinesa Coronavac e a Oxford/AstraZeneca, com a primeira representando uma boa aposta para aprovação rápida por usar uma plataforma “tradicional” de imunização, vírus inativados. Segundo Maria Célia, o Instituto Butantan já teria entrado com pedido na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) neste sentido com a sua Coronavac, enquanto a Oxford/AstraZeneca deverá ser objeto de pesquisa de uso em menores de 12 anos por grupo chefiado por Jorge Andrade Pinto, professor do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da UFMG.
“Com nossa população adulta já recebendo a segunda dose, são formas de o Brasil contribuir nestes estudos e acelerar a disponibilidade de vacinas da COVID-19 para crianças”, comenta Maria Célia. “Os pesquisadores brasileiros nunca trabalharam tanto quanto nesta pandemia, apesar da situação de falta de apoio à ciência no país”.
Enquanto a vacina para as crianças não vem, porém, é preciso acelerar a cobertura do restante da população, e manter o rigor com as demais medidas de prevenção, em especial o uso de máscaras e o distanciamento social, ainda mais no contexto de volta às aulas presenciais.
“As crianças já estão sendo afetadas e vão continuar a ser afetadas por esta pandemia de muitas maneiras”, diz Fatima. “Esta história já está escrita, e para mudar este destino dependemos de políticas públicas. Concordo que as crianças têm que voltar para as escolas, já teve prejuízo demais para o desenvolvimento infantil, mas como fazer é a questão”.
Segundo Fatima, para isso é preciso não só vacinar mais quem pode como adequar o ambiente escolar e sua ocupação a padrões mínimos de distanciamento e ventilação.
“As crianças passaram um ano e meio em casa, agora voltam para escolas que muitas vezes nem sequer conseguiram botar janelas nas salas”, reclama. “E também precisamos fazer muita testagem, como com testes rápidos de antígeno, que os professores mesmo podem aplicar. Resumindo, precisamos de mais vacinas e vacinar mais rápido a população, para criar uma barreira e controlar a transmissão viral, campanhas de conscientização sobre medidas de prevenção, como o uso de máscaras, pois à medida que a situação vai melhorando, as pessoas tomam menos cuidado e começam a relaxar. Tudo isso faz parte do arsenal para garantir o direito à educação de nossas crianças, que é papel do Estado”.
Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência