Caso Gamestop e a sabedoria das multidões

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2 fev 2021
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O mercado financeiro não é das coisas mais simples e intuitivas de se entender. Somam-se, ao jargão, conceitos matematicamente rebuscados e práticas contraintuitivas que tornam áspera a compreensão de fenômenos da área por não iniciados. Na maior parte dos casos, como na crise hipotecária de 2008 nos EUA, basta ao cidadão médio compreender que crédito imobiliário foi concedido em grande excesso a pessoas com alto potencial de insolvência e que fundos negociaram títulos baseados nessas hipotecas (que se tornaram “podres” por falta de pagamento), rotulando-os como ativos mais seguros do que de fato eram.

O excesso de demanda de crédito levou a uma bolha, que explodiu derretendo os títulos e levando um pedaço significativo de Wall Street junto. Junto com o crash, um impacto financeiro significativo na vida de milhões de americanos, com repercussões que afetaram economias nacionais por todo o mundo e, desse modo, bilhões de vidas.

No caso mais recente, da Gamestop, a situação é um pouco mais complexa que o habitual.

A Gamestop foi, durante décadas, um dos maiores varejistas de jogos eletrônicos nos EUA. Ofereceu, durante esse período, não apenas pré-reservas para lançamentos, apoio técnico e programa de trocas, mas também um programa de afiliação que garantia benefícios exclusivos para membros. Era tanto uma loja quanto um local para congregar aficionados de um tipo de entretenimento que cresceu significativamente desde os anos 90. A indústria de videogames já gera mais receita do que o mercado global de filmes e o mercado americano de esportes. Somados. A Gamestop, contudo, não acompanhou a tendência do mercado.

Os motivos são diversos, mas desponta como o principal a tendência da morte da mídia física. Os consoles de nova geração, lançados ao final de 2020, já podem ser comprados sem leitor de disco, indicando que em breve jogos serão um serviço comparado às plataformas de streaming de vídeo.

Sem a exigência de ir até uma loja comprar uma mídia, que custaria mais caro em versão física e dependeria de longas horas de fila para obtenção de um lançamento, os jogadores se habituaram a migrar para a compra de versões digitais de jogos. Isso afetou a Gamestop tanto em receitas diretas, de venda de jogos novos, quanto em seu programa agressivo de revenda de usados. Assim, as ações da empresa começaram a se desvalorizar, lembrando o caso da Blockbuster, gigante americana do mercado de aluguel de vídeo que quebrou por obsolescência.

Essa queda das ações levou a dois movimentos muito distintos pelos grandes e pelos pequenos operadores de bolsa. De um lado, grandes fundos de hedge (apostadores sofisticados de Wall Street) notaram a tendência de queda no valor das ações da empresa e apostaram seus recursos em uma posição vendida (short) em relação a esses ativos.

Como isso funciona na prática? Como creio que o preço de determinado produto vai cair no futuro, eu pego uma quantidade X desse produto emprestado. Vendo o produto que peguei emprestado a valor de mercado de hoje, confiando que, quando chegar a hora de devolver, o preço terá caído. Na data de vencimento do empréstimo, compro quantidade igual de bens que peguei emprestado e devolvo ao dono original, embolsando a diferença entre o valor recebido pela venda feita antes da queda de preço e a soma do valor do aluguel e da compra a preço menor.

Em exemplo concreto, para facilitar a visualização. Um fazendeiro possui em excedente de 100 sacas de milho que não gostaria de vender, por eventualmente precisar delas em momento futuro. Decide, portanto, alugar essas sacas por R$100,00 para alguém que precisa delas hoje, garantindo que receberá seu pagamento e a devolução de seu milho dentro de seis meses.

A pessoa que tomou as sacas emprestadas, prevendo a queda de preço do milho ao final do semestre, vende as 100 sacas a R$ 10,00 cada, colocando R$1.000,00 no bolso. Supondo que no prazo do vencimento o preço do milho tenha caído para R$5,00 a saca, o apostador gasta metade do que arrecadou com a venda comprando a mesma quantidade de milho que tomou de empréstimo e paga os R$ 100,00 de aluguel, ficando com R$ 400,00 de lucro na operação.

O problema ocorre quando o preço não cai. Suponhamos que o preço da saca de milho tenha dobrado no semestre. A dívida continua de R$ 100,00 e de 100 sacas de milho. O problema é que agora o milho custa muito mais caro e o fazendeiro exige seu milho de volta.

Na página r/WallStreetBets (WSB) do Reddit (plataforma online que a Revista Piauí erroneamente classificou como de extrema-direita, talvez confundindo-a com o 4chan) um pequeno investidor, no início de 2020, olhou relatórios trimestrais da Gamestop e não achou os números tão pavorosos para justificar a queda acentuada de valor da empresa. Além de ter uma quantidade razoável de dinheiro em caixa, possuía uma valiosa lista de membros interessados nos produtos que a loja vende. Membros estes com uma forte conexão emocional à marca.

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Esse investidor, portanto, decidiu fazer um aporte em ações da empresa ($GME) e, ao longo do tempo, criou um séquito de apostadores na valorização de longo prazo. O movimento se tornou forte o suficiente para atrair a atenção de Ryan Cohen e Michael Burry, investidores influentes. Cohen, inclusive, se tornou o maior acionista da empresa e, a partir de propostas sólidas de reestruturação e migração de modelo de negócio para comércio online, fez com que a valorização iniciada pela compra dos pequenos investidores ganhasse tração.

A valorização começou a acender sinais de alerta na Melvin Capital, fundo de investimento que estava altamente investido em posições vendidas da $GME. Os pequenos investidores da WSB viram nisso uma oportunidade de ganho e, ao mesmo tempo, uma chance inédita de uma rede distribuída de pequenos investidores colocarem uma pressão em grandes fundos que, segundo eles, usam táticas predatórias para falir empresas saudáveis para lucro fácil.

O interesse financeiro se soma ao ideológico e é coordenada uma ação de short squeeze – em termos práticos, comprar ações e opções de ações para forçar uma subida de preços de um ativo no qual uma empresa está descoberta. Voltando à analogia do milho, a população esgota o estoque de milho do mercado para ao mesmo tempo revender o milho mais caro (já que haverá uma demanda necessária para cobrir o contrato de empréstimo) e impossibilitar o especulador original de lucrar com a aposta na queda de preços. A perda em uma posição comprada é de no máximo 100% do valor investido (compro a ação pensando que ela vai valorizar e a empresa quebra); no caso de uma posição vendida, não há limites para o volume de perda, já que será necessário pagar o preço que o mercado quiser para devolver o bem alugado.

E o short squeeze funcionou. A Melvin Capital resolveu liquidar o quanto pôde de sua posição vendida, às custas de ceder parte de seu negócio a outros fundos que vieram a resgate. Mas, enquanto a turbulência tomou conta do mercado e o WSB comemorava o sucesso de sua operação (que depende de a comunidade não vender as ações e opções compradas, mantendo a oferta baixa), alguns dos principais sistemas de compra e venda de ações e derivativos (títulos baseados em outros títulos) passaram a proibir a compra da $GME e de outras empresas que também entrarem no rol de papéis que poderiam ensejar short squeezes em outros fundos, como da rede AMC de cinemas.

Houve grande revolta de pequenos investidores, de comunidades em redes sociais e até de congressistas americanos sobre a ação de plataformas de comércio bloquearem a compra de títulos que pudessem comprometer grandes fundos. O pior, segundo afirmam, é a aceitação de práticas questionáveis por parte dos fundos (manipulação de mercado, uso de operações sofisticadas para especulação predatória) e, em forte contraste, a tentativa de coibir pequenos investidores de atuarem dentro da letra da lei em atividades financeiras que possam ferir os grandes players. Mesmo jogo, regras distintas definidas a partir do poder do agente.

A SEC, equivalente à CVM nos EUA, acompanha a situação e esse acontecimento certamente ainda repercutirá por muito tempo, tanto em legislação quanto em mudança cultural. A internet e a massificação e gratuidade de aplicativos de investimento reduziu maciçamente a assimetria de informações entre os grandes de Wall Street e uma rede de investidores amadores, mas inteligentes. Reajustar as regras do jogo para favorecer os gigantes, que constantemente abusam dos limites que lhe são impostos, provavelmente não é uma possibilidade.

Portanto, apesar de haver imprevisibilidade de como a situação irá evoluir, é razoável supor que mudanças significativas estão a caminho. Há propostas, inclusive, de usar o formato criptografado de blockchain criando um stockchain, modalidade de negociação de ações que seria decentralizada e que, portanto, permitiria menos influência externa de intermediários pro-establishment.

A história toda não pode ser reduzida a uma vitória de Davi vs Golias, já que, apesar de alguns fundos estarem sob pressão por suas posições vendidas, outros se capitalizaram com a situação a partir de taxas de corretagem (potencialmente ilegais, no caso de front-running) pela venda realizada nos aplicativos aos quais são associados.

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O aplicativo Robinhood, por exemplo, favorito do WSB antes de limitar as compras de $GME, tem por trás o Citadel - curiosamente um dos grupos que salvou a Melvin da falência. Contudo, fica a lição de que a tecnologia e a descentralização, ao mesmo tempo que criam grupos negacionistas, permitem outros tipos de autorganização da sociedade que podem, com os devidos incentivos, provocar profundas mudanças na sociedade.

A lição maior, contudo, é a de que bolsas de valores, em especial nas últimas décadas, não são mercados de concorrência perfeita – compreendidos como mercados com multiplicidade de vendedores e compradores de produtos homogêneos (substitutos perfeitos entre si; bens fungíveis) no qual nenhum participante teria o poder de definir preços. O preço, indicador de oferta e demanda, nesse cenário, deveria surgir naturalmente a partir de relações dinâmicas de equilíbrio entre milhões de transações individuais.

Partir desse pressuposto, de igualdade de condições entre operadores do mercado, acaba sendo uma interpretação incorreta, já que existem grandes influenciadores que detêm mais capacidade técnica e informações privilegiadas, e se safam de sanções por conexões políticas e financeiras ou por serem grandes demais para quebrar. Ainda pior quando pequenos investidores, independentemente de motivação, são cerceados em seu direito de negociar, por interferir em posições arriscadas tomadas por investidores maiores.

O mercado costuma ser celebrado como um agregador das preferências da sociedade, um transmissor neutro de informação sobre escolhas feitas livremente por indivíduos.

Nessa óptica, se um jogador de futebol ganha mais do que um cientista, ou se um laboratório que produz tintura de cabelo é mais valorizado do que um que produz medicamentos para malária, isso não seria um problema do sistema econômico ou da ordenação política, mas da Humanidade: somos uma espécie que valoriza o esporte sobre o que conhecimento, a aparência sobre a saúde.

Mas se a regulação do mercado responde ao poder de agentes individuais, não é possível mais afirmar que seja uma ferramenta neutra de prospecção da sabedoria difusa das multidões. É, ao menos em suas operações mais sofisticadas e arriscadas, um jogo de apostas com assimetria de poder. E se há consenso entre deputados democratas e republicanos sobre problemas com Wall Street, após período recentíssimo de animosidade, há de se supor que reformas virão.

Paulo Almeida é psicólogo, advogado, doutorando em administração pública e membro do Conselho Editorial da Revista Questão de Ciência

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