As curvas perigosas na estrada da pandemia de COVID-19

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30 abr 2020
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A pandemia de COVID-19 colocou em evidência para o público, gráficos que ilustram a disseminação da doença pelo mundo, bem como as projeções para seu avanço. De início, as curvas que acompanham as manchetes procuravam mostrar de modo simples e fácil de entender a ameaça representada pelo novo coronavírus – designado SARS-CoV-2 – que provoca esta síndrome respiratória potencialmente fatal, e a necessidade de “achatá-las”, para evitar um colapso do sistema de saúde.

Com o tempo, e graças às medidas de contenção e mitigação, porém, estas curvas estão mudando de forma e adquirindo novos contornos, gerando desconfiança na população sobre o real perigo da doença e dúvidas quanto à capacidade da ciência em prever os rumos da pandemia. São as curvas perigosas na estrada da COVID-19, que ainda precisamos passar para chegarmos ao fim desta atribulada viagem, e para que ela não tenha sido inútil.

 

A Curva de Alerta

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Esta talvez seja a curva que o público tem mais familiaridade. Divulgada desde o recrudescimento da pandemia, a curva com uma subida íngreme em direção a um pico alto reflete o potencial avanço exponencial de um novo vírus contagioso, numa população que não tem imunidade a ele e sem medidas de contenção.

Produzida a partir de modelos matemáticos epidemiológicos de um tipo conhecido como SEIR, a curva acompanha a passagem das pessoas da população estudada pelas condições de “suscetível”, “exposta”, “infectada” e “removida”. Assim, à medida que mais e mais pessoas são contaminadas, ficam doentes e depois supostamente se tornam imunes ao vírus – seja porque se curaram ou, paradoxalmente, morreram –, a doença chega a um auge e naturalmente começa a cair, ainda que de forma menos acentuada do que na subida.

Geralmente apresentada para o público na forma de um sino alto em gráficos marcados por uma linha representando o limite da capacidade de atendimento dos sistemas de saúde, esta curva serviu de alerta para o possível colapso desses sistemas, diante do rápido crescimento no número de doentes em um curto período de tempo, exigindo ações de contenção e prevenção, no agora proverbial processo de “achatamento da curva”.

Apesar disso, muitos governos ignoraram o alerta, derrapando já nesta primeira curva. Casos de países como Itália e Espanha, com imagens de hospitais e necrotérios lotados e comboios de caminhões militares levando dezenas de caixões, deveriam ter reforçado a cautela, mas ainda assim cenas do tipo, infelizmente, repetiram-se e se repetem em lugares como Nova York e, mais recentemente, na Suécia, com o crescente risco de também serem vistas Brasil afora diante do relaxamento na prevenção.

 

A Curva da Dúvida

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Muitos locais, no entanto, atenderam aos avisos de perigo. Foi o caso, por exemplo, do Reino Unido, onde após estudo do Imperial College de Londres (ICL), utilizando modelos SEIR, indicar a iminente explosão no número de doentes e mortos, as autoridades abandonaram plano inicial de deixar o coronavírus se disseminar livremente entre a população supostamente menos suscetível a complicações, como crianças e jovens adultos, na esperança de criar uma suposta “imunidade de rebanho”, e implantaram medidas de contenção e mitigação visando o “achatamento da curva”.

Isso se dá porque a dinâmica das epidemias, e portanto dos modelos do tipo SEIR que tentam prever sua evolução, depende de diversas variáveis. E uma das principais delas é a chamada taxa de reprodução “natural” do vírus, isto é, a quantidade de pessoas que um doente pode infectar antes, durante ou depois de apresentar os sintomas, se nenhuma medida de contenção for tomada, conhecida como R0. 

Quando este R0 é maior que 1, o microrganismo se dissemina de maneira exponencial, como observado nesta pandemia. Assim, medidas de contenção idealmente devem levar a taxa de reprodução efetiva, ou simplesmente R, de um vírus para menos de 1, de forma que ele gradualmente saia de circulação e a curva de infectados, nos modelos, caia a zero. E embora ainda não se saiba exatamente qual é o R0 do SARS-CoV-2, estudos retrospectivos com base no rápido avanço no número de casos em diversas localidades mundo afora indicam ser acima de 2, e que pode chegar a 8 ou mais.

Então, para baixar a taxa de reprodução do novo coronavírus, e tentar evitar o colapso do sistema de saúde, é preciso limitar as oportunidades dele se espalhar com medidas de contenção. A intensidade dos efeitos dessas medidas depende de variáveis como quão cedo, a partir do início da epidemia, elas são adotadas; seu rigor, que pode ir desde o fechamento de escolas e espaços públicos, proibição de aglomerações e outras estratégias de distanciamento social, até quarentena geral obrigatória ("lockdown") e proibição de circulação pelas ruas; adesão efetiva da população; e duração.

Desta forma, a curva original desenhada pelos modelos SEIR para a evolução “natural” da epidemia, sem nenhuma intervenção, começa a mudar. Com as variáveis da dinâmica da epidemia nas quais os modelos se baseiam fazendo o que hão de fazer, que é variar, semana a semana a ascensão no número de doentes e de mortos vai ficando mais “suave”, e o pico projetado, mais baixo e tardio.     

Longe de evidenciar uma falha dos modelos e incapacidade da ciência em prever os rumos da pandemia, o “atraso” e o "encolhimento" do pico e na verdade são uma vitória, refletindo justamente o efeito que se busca com o distanciamento social, ganhando um tempo precioso para que o sistema de saúde seja reforçado e se prepare para atender ao ainda crescente número de doentes.

Algo que o Brasil ainda precisa mostrar que está conseguindo fazer, e por isso arrisca repetir as tristes cenas já vistas em outros países. Estimativas do ICL para a evolução da pandemia no curto prazo apontam que, nesta semana, ainda estamos na fase de crescimento exponencial acelerado dos casos e mortes, com a maior taxa efetiva de reprodução do vírus de todas nações analisadas, R = 2,81, e previsão de somar mais 5,6 mil mortos até 4 de maio, frente a 27 de abril. 

E o sucesso destas medidas no achatamento da curva traz um novo perigo no caminho. Sem ver, ainda, a repetição das cenas de crise e tragédia observadas em outros lugares atingidos antes pela pandemia, a população começa a duvidar do real perigo da COVID-19 e da necessidade de ações tão drásticas para sua contenção, com suas severas consequências econômicas e sociais. Com isso, a adesão às medidas diminui, as pessoas descuidam da prevenção e a disseminação do vírus volta a ganhar momento, ameaçando retomar a trajetória exponencial.

 

A Curva da Negligência

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Mas não é só a população que acaba iludida pelo sucesso inicial das estratégias de distanciamento social em "achatar a curva". Animados com os resultados, preocupados com os efeitos políticos e econômicos das medidas de contenção, e pressionados por empresários ansiosos em retornar à “normalidade”, governos ao redor do planeta fazem planos ou já começam a relaxar as medidas de contenção, permitindo a reabertura de centros comerciais e serviços não essenciais, aumentando a circulação de pessoas.

O problema é que fazer isso de forma precipitada, sem mais informações sobre questões como a prevalência do vírus na população, se e por quanto tempo os expostos ficam imunes, e se a imunidade, caso exista, também impede a transmissão, é como dirigir em uma estrada sinuosa à noite, com os faróis apagados. Com isso, arrisca-se tornar sinuoso também o caminho da pandemia, com uma segunda onda de infecções, com potencial de crescimento ainda exponencial.

Fenômeno similar já foi observado em alguns surtos de gripes sazonais, e caso se repita com a COVID-19, pode pôr por terra todo o sacrifício feito até agora, além de exigir a reimplantação de medidas de contenção tão ou mais rigorosas quanto as que pretende relaxar.

Para tentar evitar que isso aconteça, uma saída do confinamento num futuro próximo deverá ser não só muito gradual, como acompanhada de perto. Uma possível estratégia para isso envolveria, primeiro, a aplicação maciça de testes confiáveis, de forma a se ter uma ideia do quanto o vírus já se disseminou. 

Só esta testagem maciça inicial, porém, não basta. Isso seria apenas algo como acender uma lanterna do carro na estrada sinuosa. Para lidar com as muitas incógnitas que ainda envolvem o vírus, sua transmissão e o curso da COVID-19, o monitoramento epidemiológico via testes e em hospitais deverá ser constante e minucioso. Assim, caso os números indiquem que a taxa efetiva de reprodução do SARS-CoV-2 na população está se aproximando de 1, com a pandemia ameaçando voltar a ganhar contornos exponenciais, as medidas de distanciamento social podem ser temporária e rapidamente reforçadas.

Esta hipotética volta à “normalidade”, no entanto, ainda seria uma rota complexa e perigosa tendo pelo caminho um vírus sabidamente mortal. Falhas na vigilância epidemiológica, hesitação na reimposição de restrições e queda na aderência às medidas de prevenção pela população, entre outros fatores, podem facilmente fazer o carro sair do controle e cair no abismo. 

 

A Curva da Estupidez

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Mas mesmo que a viagem siga o mais tranquila possível, com as medidas de contenção achatando a curva de infecção, evitando o colapso do sistema de saúde e reduzindo o número de mortes ao mínimo, ainda resta um perigo. O sucesso no combate à pandemia pode levar à crença de que o risco não era tão grande assim e, portanto, não era preciso medidas tão drásticas, sacrificar tanto a economia e a sociedade para conter o SARS-CoV-2.

A falha em aprender a lição com o cenário atual abre caminho para uma tragédia maior no futuro. Isso porque a ocorrência uma nova pandemia como esta não é uma questão de se, mas de quando, e doença infecciosa que emergir das cavernas da China, das selvas do Brasil ou das florestas da África pode ser ainda mais contagiosa e mortal que a COVID-19.

PS: Querem ver animadas ou mesmo simular muitas das curvas que menciono neste artigo e os efeitos das diferentes medidas de contenção e intervenções? Então cliquem aqui (em inglês): 

 

Cesar Baima é jornalista e editor-assistente da Revista Questão de Ciência

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