Pandemia quase fez do Reino Unido cobaia de experimento irresponsável

Artigo
18 mar 2020

 

Boris Johnson by Jannes Van den Wouwer/Unsplash

Foi por pouco, mas por muito pouco mesmo, que os britânicos escaparam de se tornar cobaias de um experimento que só pode ter saído da cabeça de quem namora com uma “tese” dos fanáticos que se opõem às vacinações em geral: isolar dentro de casa os britânicos de mais de 70 anos e outros de alto risco, e permitir que o coronavírus se esbaldasse com o restante da população, para que o povo ganhasse “imunidade natural”, o tal efeito de rebanho. Assim, até segunda-feira, 16 de março, o governo do primeiro-ministro Boris Johnson simplesmente cruzou os braços diante da expansão da doença.

Mas, com 1.543 casos da doença covid-19, 152 casos novos ao dia e 55 mortes ao todo, a água começou a acariciar os glúteos do primeiro-ministro. Neste dia 16, em que o presidente americano Donald Trump finalmente reconheceu que a crise deve se arrastar até “julho e agosto, e talvez mais” e o francês Emmanuel Macron proibiu até as reuniões de família, Johnson anunciou “medidas draconianas” para conter o corona – mostrando que a educação no tradicionalíssimo Eton College não bastou para que aprendesse o significado de “draconiano”.

Por enquanto, as tais "medidas draconianas" resumem-se a manter isolados em casa os maiores de 70 anos (embora o risco aumente a partir dos 60) e os demais grupos de risco, orientar as pessoas a permanecer em casa se apresentarem sintomas leves da doença e evitar teatros, pubs, aglomerações em geral e trabalhar em home office se possível. Nesta quarta-feira, veio a ordem de fechamento de escolas a partir de sexta-feira, 20. E só. 

Inacreditavelmente, os britânicos ficaram chocados com as recomendações mais estritas, já que tinham embarcado com alegria no experimento original proposto por Johnson e seus assessores de saúde, que calmamente falavam que haveria algumas mortes, mas no fim os britânicos estariam imunizados contra o vírus. O correspondente da CNN em Londres mal conseguia esconder sua surpresa após o anúncio, enquanto a âncora nos Estados Unidos sorria, divertida com o espanto do colega.

Mau exemplo para o Brasil

Por aqui, o ministro da Economia, Paulo Guedes, foi à Câmara falar sobre economia e corona e, sem saber da mudança de rumo dos britânicos, saiu dizendo que eles têm excelentes epidemiologistas e estão recomendando que apenas idosos fiquem isolados e os demais continuem trabalhando, com a vida “mais próxima do normal possível.” Trump dizia a mesma coisa, até os casos explodirem nos EUA. Não há normalidade numa situação em que um novo vírus se espalha rapidamente.

A única coisa correta na fala de Paulo Guedes foi que, sim, os britânicos têm excelentes epidemiologistas, mas o Brasil também tem.  Por lá, 290 epidemiologistas, professores, especialistas em sistemas complexos, biólogos, imunologistas e médicos de Oxford, Cambridge, do Imperial College, da London School of Hygiene & Tropical Medicine, dp Wellcome Sanger Institute e do Francis Crick Institute assinaram documento se posicionando contra a estratégia de Johnson e pedindo que ele adotasse, urgentemente, estratégias de distanciamento social. Cerca de 245 mil britânicos apoiaram a iniciativa dos cientistas.

A carta criticava a demora na implementação o distanciamento social (só recomendado na última segunda-feira), até porque a curva do aumento de casos na Grã-Bretanha se assemelhava muito à da Itália, França, Espanha e Alemanha, com dezenas de milhares de infectados em poucos dias, levando ao colapso do National Health Service (NHS), que enfrenta redução de verba e de pessoal já há algum tempo.  Johnson chegou a falar em usar os hotéis londrinos, praticamente desocupados, como hospitais.

Imunidade adquirida

O efeito rebanho é resultado de vacinação: se uma parcela grande o suficiente da população é imunizada, garante-se que o agente infeccioso para de circular e, assim, deixa de atingir aqueles que, por algum motivo, não podem ser vacinados. Embora o mesmo efeito possa resultar da exposição ao patógeno, “não se pode confiar num vírus letal para imunizar uma população,” criticou a virologista Akiko Iwasaki, da Yale Medical School. Defensores da proposta original do primeiro-ministro alegam que houve "problemas de comunicação", e que o objetivo sempre foi atingir o chamado achatamento da curva de transmissão, de forma que o corona se dissemine ao longo de uma base de tempo de vários meses, permitindo que os serviços de saúde atendem aos doentes graves sem entrar em colapso.

Mas, na prática, a estratégia está cheia de arapucas. A primeira delas, o isolamento das pessoas com mais de 70 anos, que ou estão suas casas, onde recebem cuidadores periodicamente, ou em casas de repouso. Esses profissionais encontram-se na faixa dos 20 aos 40 anos, justamente a faixa etária menos vulnerável e que, segundo a lógica do plano original britânico, deveria ser infectada para se tornar imune. Vale lembrar que a tragédia que se desenrola na Itália começou justamente no ambiente asilar, com controle de higiene precário.

Por mais que se tenha aprendido sobre o novo coronavírus nos últimos três meses, ele segue envolto numa série de questões cuja resposta, invariavelmente, é: “ainda não sabemos”. Não sabemos, por exemplo, como ele vai se comportar em diferentes climas, não sabemos por que não é tão letal para crianças quanto boa parte dos vírus que se instalam nas vias aéreas, não sabemos quanto tempo dura a imunidade que confere a quem sobrevive à infecção. Há coronavírus que causam resfriados e conferem imunidade por menos de um ano, e coronavírus, como o SARS, onde o efeito dura muito mais tempo.

Milhares de mortos

A proposta do governo britânico foi muto criticada também por falta de clareza e transparência, já que os estudos e modelos que sustentariam a estratégia nunca foram apresentados. Edzard Ernst, dono de um olhar incisivo e um texto cirúrgico sobre medicinas alternativas e carentes de evidências, foi certeiro quando comentou a ideia: “Vamos supor que o efeito manada seja correto e estável para esta situação, e que 40 milhões de britânicos precisem ser infectados para produzi-lo. Assumindo uma taxa de mortalidade entre 1% a 2%,o primeiro-ministro estaria aceitando alegremente entre 400 mil e 800 mil mortos,” escreveu.

Foram justamente os números, ainda que bem inferiores aos da estimativa "verso do envelope" de Ernst, apresentados pelo modelo detalhado feito pelo Imperial College, que motivaram o recuo do governo britânico no início desta semana: 250 mil mortos, com o colapso do NHS. A mudança, porém, veio tarde, já que desde o início da pandemia a Organização Mundial da Saúde (OMS) defende a adoção de medidas rápidas para conter o vírus.

Longe de serem draconianas, as medidas recomendadas por Johnson parecem agora tardias e brandas demais, diante do que se assiste em países europeus. É provável que lá, como cá, essas ações endureçam rapidamente.

Há modelos, como os da Coreia do Sul e de Cingapura, que já se mostraram eficientes, mas alguns países têm relutado em adotar medidas drásticas de distanciamento social, temendo consequências econômicas. Mas é assustador ver um governo sequer cogitar usar sua população como cobaia, numa estratégia nunca antes testada contra um vírus sobre o qual ainda sabemos muito pouco.

Ruth Helena Bellinghini é jornalista, especializada em ciências e saúde e editora-assistente da Revista Questão de Ciência. Foi bolsista do Marine Biological Lab (Mass., EUA) na área de Embriologia e Knight Fellow (2002-2003) do Massachusetts Institute of Technology (MIT), onde seguiu programas nas áreas de Genética,  Bioquímica e Câncer, entre outros

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