Com tanta confusão no carnaval (chegamos a cogitar um artigo especial sobre urinoterapia, ideia ainda não descartada), uma notícia importante acabou tendo menos destaque do que deveria – a do trabalhador brasileiro do Distrito Federal que perdeu metade de uma das pernas, depois de se submeter a um tratamento “experimental” de ozonioterapia na tentativa de controlar uma osteomielite, um tipo de infecção que atinge os ossos.
Mesmo vista com sérias ressalvas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), que tolera seu uso apenas para fins de pesquisa científica, a ozonioterapia é uma das 29 “práticas integrativas e complementares” (PICs) que o Ministério da Saúde referenda por meio do Sistema Único de Saúde (SUS).
A relutância do CFM em liberar a prática certamente significa alguma coisa: como demonstram os reconhecimentos oficiais da acupuntura e da homeopatia como especialidades médicas legítimas, o órgão de classe costuma mostrar muito pouco entusiasmo quando o assunto é restringir as opções de geração de renda de seus associados. Segundo a nota do G1, no link acima, uma única sessão de ozonioterapia pode custar quase R$ 200 e um curso completo de tratamento, cerca de R$ 5 mil.
Também é importante notar a força do lobby dos ozonioterapeutas, que pediram – e ganharam – a liberação da terapia por meio de projeto de lei, em 2017.
Alguns ozonioterapeutas falam em ação terapêutica efetiva contra “mais de 250 doenças”, o tipo de alegação que deve ser encarada com doses reforçadas de ceticismo: nem canja de galinha tem tanto poder.
Promessas assim lembram muito os tratamentos “milagrosos” baseados em eletricidade e magnetismo oferecidos no século 19, quando essas forças eram misteriosas, desconhecidas e não faltavam espertalhões dispostos a usá-las para vender falsas esperanças aos doentes ou receitas de “bem-estar” aos hipocondríacos.
Definições
Mas, afinal, o que é isso, ozonioterapia? Como o nome sugere, trata-se do (suposto) uso medicinal do ozônio, gás formado por moléculas constituídas de três átomos de oxigênio, em vez dos dois átomos que compõem o gás oxigênio comum: aquele que todos conhecemos, amamos e sem o qual não podemos viver. E por que alguém acha que o ozônio teria utilidade médica? Eis aí uma bela pergunta.
O oxigênio comum é uma molécula extremamente agressiva, que corrói metais e produz combustão. Quando a concentração do gás na atmosfera da Terra tornou-se significativa, cerca de dois bilhões de anos atrás, houve um grave desequilíbrio ambiental e uma extinção em massa. O ozônio, com três átomos, é mais agressivo ainda. Se inalado, é tóxico. Na ozonioterapia, ele é aplicado de forma tópica, por meio de sondas, bolsas pressurizadas ou injeção.
Existe uma crença pseudocientífica que atribui todo tipo de doença – inclusive o câncer – à falta de oxigênio nas células, e alguns proponentes da ozonioterapia se encaixam aí, mas não é preciso ir tão longe: há também quem diga que a aplicação do ozônio tem um efeito antibiótico (seu poder corrosivo destrói fungos e bactérias) , ou que um eventual excesso de átomos de oxigênio nos tecidos do corpo deve fazer bem, porque pode destruir células danificadas ou estimular as saudáveis.
É verdade que o ozônio tem poder desinfetante, mas até aí ninguém acha (espero) que injetar Pinho Sol num osso infeccionado vai ajudar em alguma coisa. O consenso científico é de que o ozônio é perigoso e não deve ser aplicado em seres humanos.
A FDA, equivalente da Anvisa nos Estados Unidos, é bem clara a respeito. Cito diretamente da edição de 2018 do manual de normas técnicas dessa agência americana:
“O ozônio é um gás tóxico e sem nenhuma aplicação médica útil conhecida, seja como terapia específica, adjuvante ou preventiva. Para ser eficaz como germicida, deve estar presente numa concentração muito superior à que pode ser tolerada por seres humanos ou animais”.
Mas há estudos!
A primeira objeção a este tipo de crítica é a de que há estudos mostrando que a prática é útil, ou que pode ser útil, ou ainda que talvez de repente seja útil, logo faz sentido manter a mente aberta, etc. O que até parece um bom argumento, se visto de modo superficial e genérico, mas que se desmancha quando verificamos os particulares.
A primeira coisa a levar em conta é que há pelo menos uma década e meia, a pesquisa biomédica, encarregada de demonstrar a utilidade e viabilidade de novos tratamentos e terapias, passa por uma crise de resultados falsos positivos.
Basicamente, a chance de um estudo qualquer estar errado, quando alega que alguma coisa funciona contra alguma doença, é muito alta (estimativas chegam a falar em 90%). Nada disso é novidade: existem boas referências a respeito, por exemplo, aqui, aqui e aqui.
As razões para isso são várias, mas a principal é o dogma produtivista que tomou conta do mundo acadêmico em escala global. Isso gera uma pressão enorme pela publicação contínua de resultados positivos, além da complacência e cumplicidade dos pares que, reconhecendo o estresse dos colegas na busca por quantidade, deixam passar trabalhos limítrofes ou, mesmo, ruins.
Dada essa constatação inicial, qualquer estudo revelando alguma “novidade” médica deve, em princípio, ser recebido com boa dose de cautela. E quando esses resultados têm baixa probabilidade prévia, ou surgem de trabalhos de metodologia ruim ou qualidade duvidosa, a dose deveria ser ainda maior.
No ano passado, uma dupla de pesquisadoras brasileiras fez um levantamento de estudos sobre o uso de ozônio contra osteoartrite. Embora a conclusão apresentada pelas autoras tenha sido favorável, uma leitura atenta dos trabalhos coligidos sugere exatamente o oposto: os dois melhores estudos do grupo selecionado para análise apontam que o ozônio é inútil, mas acabam desconsiderados.
Dos demais, alguns cometem o erro metodológico fundamental, apontado há tempos por especialistas como o pesquisador alemão Edzard Ernst, de comparar uma somatória de tratamentos alternativo e convencional com um tratamento convencional.
Isso é um erro porque a situação criada garante que um efeito placebo extra vai aparecer no grupo que recebe a combo tradicional-alternativo, forçando um provável resultado falso positivo. Uma somatória sempre leva vantagens sobre um tratamento simples, mesmo que essa vantagem seja só um acúmulo de placebos.
Um dos artigos, por exemplo, compara a injeção de ozônio no joelho, combinada a medicação oral, com medicação oral apenas. Trabalhos desse tipo não são desenhados para investigar uma questão de pesquisa, mas para produzir a resposta que os autores já têm pré-estabelecida em mente: há pesquisas mostrando que placebos performáticos (envolvendo rituais complexos ou procedimentos invasivos, ou aparentemente invasivos) são especialmente poderosos. Também ajuda aí o fato de a osteoartrite ser altamente suscetível a esse tipo de efeito psicológico, produzido por cirurgias-placebo.
Um artigo com resultado favorável à ozonioterapia e que parece fazer tudo direito – comparando injeção de ozônio com injeção placebo – tem o grupo de tratamento com quase o dobro de participantes que o grupo controle. É preciso dar aos autores o mérito de reconhecer, nas referências, a existência de um levantamento apontando que estudos com grupos desbalanceados de pacientes produzem um número desproporcional de resultados positivos, e por isso sua “legitimidade ética deve ser questionada”.
No Distrito Federal
O caso específico que levou à amputação da perna do comerciante Leonardo do Santos envolvia osteomielite, uma infecção, e não artrose.
Sobre isso, a literatura científica é ainda mais rala: há um trabalho de autores turcos, publicado em 2018 num periódico nacional, Acta Ortopédica Brasileira, apontando resultados positivos. Mas em ratos. Vinte quatro no total. Divididos em três grupos de oito. Oito ratos.
Um grupo de animais ficou intocado, um teve osteomielite induzida e o outro, osteomielite induzida e injeção de ozônio. Chamar um resultado obtido de uma amostra tão pequena, com esse desenho experimental, de “sugestivo” ou “exploratório” é quase caridade.
Santos, a vítima da amputação, disse que o médico pelo ozônio prometeu curá-lo, recomendou que parasse de tomar antibióticos e receitou-lhe “remédios naturais”. O médico acusado nega.
Estabelecer onde está a verdade nesse conflito de versões é tarefa da Justiça do DF, mas é preciso notar que a lista de precedentes de terapeutas alternativos que recomendam, na privacidade do consultório, que seus pacientes abandonem tratamentos ou medidas preventivas com sólida evidência científica, só para depois negarem isso em público, é enorme.
Qual o perigo?
Em ensaio publicado no livro Pseudoscience: The Conspiracy Against Science, publicado pela MIT Press, a ex-médica naturopata Britt Marie Hermes – agraciada, ano passado, com o Prêmio Maddox de defesa da ciência – descreve como seus colegas nos Estados Unidos desorientam pacientes de câncer, para depois eximirem-se de qualquer responsabilidade pelas tragédias que se seguem. Ano passado, artigo publicado no periódico JAMA Oncology mostrou que a adesão a terapias alternativas por pacientes de câncer – com tumores tratáveis – está relacionada a uma recusa de tratamentos de base científica e a um índice elevado de mortalidade.
No Brasil, o médico infectologista Guido Carlos Levi menciona, em seu livro Recusa de vacinas – Causas e consequências um surto de sarampo na cidade de São Paulo onde “alguns dos acometidos eram crianças com pais e/ou pediatras antroposóficos e, em consequência, não vacinados. Foram necessários grandes esforços dos profissionais da vigilância epidemiológica do estado de São Paulo (CVE) para impedir que o surto tomasse proporções maiores”.
Artigo publicado em 2013 na revista Arte Médica Ampliada, da Associação Brasileira de Medicina Antroposófica, ao mesmo tempo em que reafirma o compromisso da associação com o calendário de vacinações infantis promulgado pelo Ministério da Saúde, aponta que, segundo a doutrina antroposófica, doenças como rubéola e sarampo podem ser benéficas para a criança.
Fica em aberto a questão de qual “benefício” receberam as 110 mil pessoas que morreram de sarampo – uma doença perfeitamente evitável – no mundo em 2017, exatamente por causa de falhas na cobertura vacinal.
Cito, ipsis litteris, a ponderação da revista:
"Segundo a antroposofia, as doenças comuns da infância cumprem uma função específica (...) de transformar e fortalecer a vitalidade (organização vital ou corpo etérico), remodelando as características herdadas e favorecendo a constituição de uma corporalidade mais individualizada. Esse processo seria especialmente válido, segundo Rudolf Steiner, para as doenças exantemáticas (como sarampo, rubéola e varicela) “.
E, um pouco mais adiante:
“Outro aspecto apontado por Steiner, é que as forças empregadas para o enfrentamento de algumas condições de saúde poderiam ser definitivamente incorporadas como uma nova capacidade/habilidade para a saúde física, anímica, espiritual. Sob este ponto de vista, vacinar a criança poderia tirar dela a possibilidade de enfrentamento de tal doença e de transformação”.
Para além dos indicadores claros de pensamento pseudo, ou mesmo pré-científico (“corpo etérico”, “saúde anímica”), fica evidente ao tensão entre o sistema de crenças propalado e a conduta recomendada (vacinar de acordo com o calendário oficial).
Muitos proponentes de uma atitude de tolerância intelectual para com as chamadas PICs pressupõem que, mesmo que ineficazes ou limitadas a um placebo, essas terapias “não fazem mal”.
Trata-se de um ponto de vista que ignora que as crenças infundadas que servem de base para essas PICs podem ter um alcance muito maior do que a situação imediata no consultório do terapeuta.
Uma das grandes necessidades psicológicas do ser humano é enxergar coerência entre seus pensamentos e ações. Se todas as doenças são causadas por “desequilíbrios energéticos”, “desarmonia das vibrações” ou mera “falta de oxigênio”, então não é lógico ou coerente recomendar e aceitar o uso de antibióticos, vacinas ou quimioterapia.
Crenças infundadas têm consequências, e quando figuras de autoridade – sejam médicos, detentores de cargos públicos ou celebridades – as apoiam, essas consequências se multiplicam. Cedo ou tarde, acabam custando dinheiro, membros e vidas.
Carlos Orsi é jornalista e editor-chefe da Revista Questão de Ciência