Breve história da Lei de Biossegurança do Brasil

Artigo
29 jan 2019
O Congresso Nacional
O Congresso Nacional. Imagem do Senado Federal, Licença Creative Commons 2.0

Em 1995, para viabilizar o desenvolvimento da biotecnologia com segurança e regular a aplicação da engenharia genética e a liberação de transgênicos, o Brasil estabeleceu normas de biossegurança. Assim, foi criada a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), dotando o Brasil de uma matriz institucional para regular a biossegurança dos transgênicos.

Em 1998, a CTNBio analisou o pedido de liberação da soja transgênica Roundup Ready (soja RR) da empresa Monsanto – resistente ao glifosato, um herbicida, conhecido como “Roundup”-  e autorizou sua comercialização no país[1]. No entanto, “o Instituto de Defesa do Consumidor-Idec, tendo por assistente a associação civil Greenpeace, e por litisconsorte ativo o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – Ibama (que depois se retirou do feito), ajuizou uma Medida Cautelar Inominada contra a União Federal visando impedir o plantio da soja RR sem a prévia apresentação do Estudo de Impacto Ambiental (EIA). Obtida a liminar, em 1998, as primeiras cultivares de soja RR tiveram seus registros suspensos por determinação judicial (...)” [2](sic).

Dentre as diversas considerações do juiz que decidiu sobre o caso, encontra-se a seguinte frase, in verbis: “Sem contabilizar exageros, creio que a velocidade irresponsável que se pretende imprimir nos avanços da engenharia genética, nos dias atuais, guiada pela desregulamentação gananciosa da globalização econômica, poderá gestar, nos albores do novo milênio, uma esquisita civilização de ‘aliens hospedeiros’ com fisionomia peçonhenta, a comprometer, definitivamente, em termos reais, e não fictícios, a sobrevivência das futuras gerações do nosso planeta”.

Essa bizarra sentença paralisou a pesquisa em biotecnologia no Brasil por cinco anos. Decorridos 20 anos da fatídica sentença não se conseguiu identificar nenhum “alien hospedeiro com fisionomia peçonhenta” [3] (Colli, 2011).

Em face de tais desencontros, contudo, a introdução da soja RR no Brasil ocorreu de forma ilegal e, em 2003, o Governo Lula iniciou seu mandato ante uma situação conflituosa, de crescente plantio clandestino de soja transgênica, especialmente no Rio Grande do Sul. Para resolver essa questão urgente, foram enviadas ao Congresso duas Medidas Provisórias, possibilitando a comercialização das safras 2002/2003 e 2003/2004.

Ocorreu uma confusão generalizada sobre o tema. Muitos jornalistas, políticos e militantes da “Campanha por um Brasil livre de transgênicos” confundiam transgênicos no geral com a soja RR, e vice-versa. Também havia a divulgação equivocada de que, com a aprovação dessas medidas provisórias, o Governo estaria liberando todo e qualquer transgênico no Brasil.

O fato é que a soja, um produto de grande importância na exportação e no consumo interno, foi cultivada naquelas safras, principalmente no Rio Grande do Sul, a partir de sementes transgênicas trazidas da Argentina (denominada popularmente “Soja Maradona”) e possivelmente do Paraguai desde, pelo menos, 1997. Algumas ONGs exigiam que o Governo queimasse aquelas safras e decretasse moratória para todo e qualquer transgênico no Brasil.

Sob a justificativa de que era preciso evitar que esta concessão não se transformasse em meio de reprodução e expansão de novos cultivos à margem da lei, foram introduzidos mecanismos nas medidas provisórias que permitiam aperfeiçoar a ação controladora do Estado, estabelecendo várias exigências aos produtores, além de proibir, às instituições financeiras oficiais de crédito, a aplicação de recursos no financiamento da produção e plantio de variedades de soja obtidas em desacordo com a legislação em vigor.

Houve numerosas audiências públicas em Brasília e no Rio Grande do Sul, promovidas pela Câmara dos Deputados, com a presença de agricultores e representantes de ONGs contrárias aos transgênicos, para discutir diversos aspectos ligados ao caso da soja transgênica e dos transgênicos como um todo.

 Constatou-se que, a soja transgênica está presente em vários Estados, envolvendo milhares de agricultores (grandes, médios, pequenos e até assentados de reforma agrária). Os agricultores relataram que souberam da existência de uma semente de soja que estava sendo plantada na Argentina, resistente ao herbicida glifosato e que entrou no nosso país como grão. Um dos agricultores “ouviu dizer” que as sementes eram estéreis. Resolveu confirmar a informação e plantou no fundo de seu quintal.

Fez seu experimento, aplicando o glifosato e verificou que a soja era realmente resistente ao herbicida. Colheu os frutos, separou os grãos e plantou novamente para verificar se as sementes eram estéreis. A planta cresceu e frutificou mais uma vez. O agricultor concluiu que as plantas eram resistentes ao glifosato e as sementes eram férteis. Diferente de praticamente todos os demais produtos traficados em todo o mundo, sementes podem ser reproduzidas, o que significa que um punhado pode ampliar-se significativamente em algumas safras[4].

Opção do produtor

Mas, por que os produtores adotaram com tanta determinação a soja transgênica? A resposta geral sempre foi curta e direta: “por razões econômicas”. Seu custo de produção, à época, era inferior ao da soja convencional. Por utilizar apenas um herbicida, havia uma grande redução do gasto com este insumo e, consequentemente, no custo total da produção. Além da economia financeira, os sojicultores argumentavam que havia aumento da praticidade e, por consequência, economia de tempo, porque era feita somente uma aplicação de herbicida. Por fim, os agricultores afirmaram que ficaram menos expostos aos demais herbicidas, considerados mais perigosos para a saúde e para o ambiente. Ou seja, tratava-se de uma tecnologia competitiva com relação à soja não transgênica, até então plantada.

Antes da introdução dessa semente no estado do Rio Grande do Sul, os produtores eliminavam as plantas daninhas por meio de, in verbis,  “(...) diversos métodos que vão desde a capina manual ou tratorizada, cobertura de palha no plantio direto e principalmente pela utilização de herbicidas denominados seletivos, ou seja, produtos que eliminam algumas espécies e afetam pouco as outras, incluindo a soja (...) eram obrigados a recorrer a uma mistura de vários herbicidas, observando a época correta da aplicação e assim mesmo, muitas vezes, não conseguiam eliminá-las completamente, motivado por alguma deficiência desses herbicidas seletivos”[5]

O impasse jurídico ocorrido com a liberação da soja transgênica tornou evidente que seria necessária uma lei que estabelecesse clareza sobre o processo decisório em relação à liberação dos produtos transgênicos no Brasil. Era preciso clareza nas atribuições de cada órgão e uma legislação tecnicamente sólida, pois, até então, vinha prevalecendo um confuso emaranhado de preceitos legais e normas as mais diversas. Era preciso uma legislação com maior precisão e menos ambiguidade.

  Dessa forma, o Poder Executivo enviou o Projeto de Lei nº 2.401/2003 ao Congresso Nacional, com a finalidade principal de retirar a sobreposição de competências entre diversos ministérios e minimizar os conflitos judiciais. Em outras palavras, era necessário pôr um fim ao emaranhado legislativo, contexto que dificultava a adequada regulamentação do tema e a execução dos procedimentos de análise de riscos dos transgênicos para a saúde da população e para o ambiente.

O relator do Projeto de Lei foi o então líder do governo na Câmara dos Deputados, Deputado Aldo Rebelo (PC do B/SP), que estava ciente do cenário de

“(...) campos experimentais sem plantio, aguardando o cumprimento de ritos burocráticos expressados por inúmeros pareceres, licenças e autorizações das autoridades públicas que não haviam ainda sido emitidos, como se a natureza pudesse esperar pelo cumprimento de tais rituais (...) excessos burocráticos que levam a “demoras de dois anos, em condições normais, sem atraso, para a obtenção de autorizações de pesquisa” (...)”

O deputado Aldo Rebelo, de imediato, compreendeu que o excesso de exigências (tais como o “Programa de Informação aos Moradores da Área de Influência Externa” e o “Levantamento socioeconômico nas Áreas de Influência”) e de burocracia tornou-se um entrave para o desenvolvimento de pesquisas com transgênicos vegetais no Brasil. Posicionou-se, portanto, favorável à inclusão de dispositivos no texto da lei que dessem agilidade para a pesquisa, que mantivesse na CTNBio cientistas e que o parecer técnico dessa comissão fosse conclusivo. Ainda que fosse uma proposta em defesa da nossa ciência, esse texto sofreu fortíssima pressão contrária por parte de ONGs contrárias aos transgênicos, como era previsto, mas, surpreendentemente, de parte de alguns ministros, como os do Meio Ambiente e do Desenvolvimento Agrário.   

Nesse momento, alguns cientistas brasileiros se viram na obrigação de sair de seus laboratórios e fazer pressão na Câmara dos Deputados, pois não bastava que o relator apresentasse o melhor texto. Era preciso aprová-lo. Ou seja, os demais deputados precisavam compreender a importância em oferecer agilidade à pesquisa com transgênicos vegetais no Brasil.

Foi preciso divulgar as inúmeras notas oficiais e relatórios científicos preparados sob os auspícios da Royal Society de Londres, da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, da Academia Brasileira de Ciências, da Academia de Ciências da China, da Academia Nacional de Ciências da Índia, da Academia de Ciências do México e da Academia Mundial de Ciências para o Avanço da Ciência nos Países em Desenvolvimento (antigamente Academia de Ciências do Terceiro Mundo, TWAS). Todas manifestando, categoricamente, que alimentos produzidos através da engenharia genética podem ser mais nutritivos, estáveis quando armazenados e, em princípio, podem promover a saúde. São documentos que também insistem que novos esforços do setor público são necessários para criar plantações de transgênicos que beneficiem agricultores pobres, em nações em desenvolvimento.

Células-tronco

Nesse período de debate, outro grupo de cientistas, ligados à área de saúde, e vários pais de adultos e crianças portadores de doenças degenerativas, procuraram o relator ­­ para que ele incluísse um dispositivo que autorizasse a pesquisa com células-tronco embrionárias, tendo em vista que que essas células têm o potencial de gerar todos os tipos celulares e seus respectivos tecidos. Assim, a autorização para a pesquisa era vista como uma pequena esperança para aqueles portadores de doenças degenerativas.

O relator incluiu artigo autorizando a pesquisa com esse tipo de célula. Mas não foi artigo facilmente acatado pelos parlamentares, em especial pelos seguidores de algumas denominações religiosas. Dessa forma, os cientistas tiveram que explicar com detalhes o que significa a pesquisa com essas células, e apresentar inúmeros argumentos para os parlamentares.

Depois, de uma longa batalha entre a ideologia e a ciência, finalmente, a Lei de Biossegurança foi sancionada em 2005[6], sendo bastante minuciosa. É uma lei que autoriza a pesquisa com células-tronco embrionárias. Oferece também agilidade à pesquisa com transgênicos. Um dos maiores problemas das regras anteriores era que os experimentos em campo com transgênicos somente podiam ser instalados (ainda que numa área pequena de 40 m2), se o pesquisador obtivesse o EIA/Rima (Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto no Meio Ambiente), o mesmo exigido para grandes empreendimentos, como usinas hidrelétricas.

A nova Lei de Biossegurança retirou essa obrigação para o caso de pesquisa. A CTNBio passou a emitir decisão técnica, autorizando a liberação comercial de um produto transgênico, ou seu derivado, após análise caso a caso. Somente depois de cumpridos uma série de requisitos previstos na Lei, em decretos e normativas emitidas pela CTNBio (composta exclusivamente por doutores de várias áreas), é que a autorização pode ser concedida (ou negada).

A ciência venceu a ideologia no caso da Lei de Biossegurança. Mas não foi uma disputa fácil. A ideologia tem sustentação, há quase 20 anos, na “Campanha por um Brasil livre de transgênicos”, implementada por várias ONGs.. Além disso, aqueles que eram contrários às pesquisas com células tronco embrionárias tiveram sustentação nas mais diversas religiões. Muito provavelmente, novas batalhas virão entre a ideologia e a ciência no campo das políticas públicas.

Maria Thereza Macedo Pedroso é pesquisadora da Embrapa Hortaliças. Walter Colli, ex-presidente da CTNBio, é professor e pesquisador da Universidade de São Paulo

NOTAS

[1] Os riscos ambientais foram analisados com base na sua biologia reprodutiva. Vale destacar que a soja é uma espécie autógama (a taxa de realização de fecundação cruzada é menor que 5%). Trata-se de espécie exótica e sem parentes silvestres ou exóticos sexualmente compatíveis no Brasil, não sendo possível a polinização cruzada no ambiente natural brasileiro, o que diminui a possibilidade em quase cem por cento de ocorrer “contaminação gênica”.

[2]CUNHA, E. A. B. B. Organismos Geneticamente Modificados (OGMs): Obstáculos à obtenção e uso no Brasil. Brasília: Dissertação de Mestrado em Agronegócios (UNB), 2007

[3]COLLI, W. (2011) Organismos Transgênicos no Brasil: regular ou desregular? Rev USP nº 89, pp. 148-173, ISSN 0103-9989.

[4] PIMENTA, P. Transgênicos: trabalho do deputado Paulo Pimenta sobre a Medida Provisória nº 131/03. Centro de Documentação e Informação da Câmara dos Deputados, Brasília, 2004.

[5] RUEDELL, J. Cultura da Soja: a verdade sobre a transgenia. FUNDACEP, Passo Fundo, 2003.

[6] Lei N.º 11.105/05  que “estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados – OGM e seus derivados, cria o Conselho Nacional de Biossegurança – CNBS, reestrutura a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio, dispõe sobre a Política Nacional de Biossegurança – PNB”.

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